IntroduçãoTodo médico que dedica seu tempo para o atendimento de crianças já se questionou sobre as razões pelas quais são indicadas as adenoamigdalectomias. Várias complicações são sabidamente resultado direto da obstrução causada pela hipertrofia adenoamigdaliana, como por exemplo: respiração bucal de suplência, alterações no desenvolvimento crânio-facial, apnéia obstrutiva do sono, dificuldade de alimentação, entre outros, sendo todas as condições supracitadas possíveis indicações cirúrgicas. Entre as complicações mais graves decorrentes do processo obstrutivo crônico decorrente do aumento exagerado das vegetações adenoideanas e amígdalas palatinas, incluem-se a hipertensão pulmonar e cor pulmonale. Embora não se saiba com exatidão sua prevalência, esta condição clínica é considerada uma indicação incontestável para a realização da adenoamigdalectomia.
Registros hindus de cerca de 3.000 anos relatam um ato cirúrgico que seria posteriormente descrito como amigdalectomia. Este procedimento envolvia o descolamento da cápsula mucosa com o dedo e a enucleação da amídala palatina. Celsius e Paulo de Algena também realizavam procedimento semelhante há aproximadamente 2.000 anos. Acredita-se que a primeira adenoidectomia foi realizada no fim do século XIX, quando Wilhem Meyer de Copenhagem sugeriu que as vegetações adenóides seriam responsáveis pela deficiência auditiva assim como pelos sintomas nasais apresentados por inúmeros pacientes.
Sendo a adenoamidalectomia um procedimento com pequena morbi-mortalidade, houve um grande entusiasmo pela realização da cirurgia, principalmente na primeira metade do século passado. Esta era, muitas vezes, indicada para pacientes com sintomatologia mínima ou portadores de moléstias não relacionadas às amígdalas palatinas e vegetações adenoideanas. Na década de 1970, nos EUA, foram realizadas proporcionalmente 1.200 adenoamigdalectomias para cada 100.000 intervenções cirúrgicas gerais1. As décadas seguintes, no entanto, foram marcadas por um ceticismo quanto à indicação da adenoamigdalectomia, observando-se uma redução de aproximadamente 30% no número de cirurgias realizadasl.
Apesar desta diminuição significativa, a adenoamigdalectomia ainda é o procedimento cirúrgico mais realizado na faixa etária pediátrical. A obstrução crônica das vias aéreas, seguida de hipertensão pulmonar e cor pulmonale, é uma indicação incontestável para a realização da adenoamigdalectomia.
O objetivo deste estudo foi avaliar a prevalência de hipertensão pulmonar em pacientes com hipertrofia adenoamigdaliana.
Material e MétodoEste estudo prospectivo foi realizado nos Departamentos de Otorrinolaringologia (Otorrinopediatria) e Ecocardiografia do Hospital Professor Edmundo Vasconcelos, no período de março a outubro de 2002. Foram incluídos 14 pacientes, com idade inferior a 15 anos, de ambos sexos, com indicação formal para adenoamigdalectomia por hipertrofia adenoamigdaliana. Foram excluídos do presente estudo pacientes com má-formação crânio-encefálica, síndromes genéticas, discrasias sanguíneas, e outras indicações para adenoamigdalectomia que não a hipertrofia adenoamigdaliana. Todos os pacientes tiveram o termo de consentimento escrito em relação aos procedimentos clínico-cirúrgicos assinado por um maior responsável.
Todos os pacientes foram submetidos à avaliação pré-operatória contendo: questionário, avaliação clínica otorrinolaringológica, Rx simples de cavum, vídeo-nasofibroscopia e ecocardiograma.
Um questionário contendo perguntas relacionadas às queixas obstrutivas apresentadas pelo paciente foi respondido por um maior responsável durante o pré-operatório, objetivando estimar o impacto da hipertrofia adenoamigdaliana na qualidade de vida do paciente. Em caso de positividade da queixa, esta era, posteriormente, classificada em relação à sua gravidade (pouca, intermediária ou elevada).
Durante o exame otorrinolaringológico, pôde-se avaliar o tamanho das amígdalas palatinas. As amígdalas foram, então, classificadas em 4 diferentes graus, dependendo do grau de obstrução proporcionado ao nível da orofaringe. Convencionou- se como grau I as obstruções amigdalianas de até 25% da orofaringe; grau II, obstrução de 25-50%; grau III, obstrução de 50-75% e grau IV, obstrução maior que 75% da luz da orofaringe.
A avaliação da hipertrofia adenoideana foi avaliada tanto pelo Rx simples de cavum quanto pela vídeo-nasofibroscopia. Estas variáveis também foram classificadas em quatro diferentes níveis, dependendo da obstrução evidenciada ao exame. Os mesmos critérios utilizados para se avaliar o grau de obstrução produzido pela hipertrofia amigdaliana foram empregados para a avaliação da obstrução promovida pelo aumento do tecido adenoideano. O grau de hipertrofia adenoideana evidenciado à vídeo-nasofibroscopia foi posteriormente correlacionado à obstrução proporcionada pela vegetação adenoideana ao Rx simples de cavum. A vídeo-nasofibroscopia foi realizada com endoscópio flexível (Machida 3.2 mm®), câmera de vídeo (Toshiba®), vídeo cassete (Sony®), monitor de vídeo, fonte de luz (Storz®) e sistema para captação de imagem ("Laudo & Imagem"); após utilização de vasoconstritor tópico nasal (cloridrato de nafazolina) e spray anestésico (neotutocaína a 5%).
O ecocardiograma foi realizado no setor de Ecocardiografia do Hospital, com ecocardiógrafo modelo HP ImagePoint HX®. Durante o ecocardiograma pôde-se avaliar a presença de sinais sugestivos de hipertensão pulmonar, através da estimativa da pressão sistólica da artéria pulmonar (refluxo tricuspídeo e/ou regurgitação pulmonar). Pacientes portadores de hipertensão pulmonar evidenciada ao ecocardiograma pré-operatório foram submetidos a um novo exame no 7º pós-operatório. Todos os exames foram realizados pelo mesmo examinador.
Todos os pacientes foram submetidos à adenoamigdalectomia em decúbito dorsal horizontal, sob anestesia geral e intubação orotraqueal. A adenoidectomia foi realizada pela técnica convencional, com curetas de Beckman de três tamanhos diferentes. Utilizou-se a técnica de dissecção submucosa para a realização da amigdalectomia. Todos os pacientes foram operados pelo mesmo otorrinolaringologista.
Utilizou-se para análise estatística o cálculo do coeficiente de correlação entre duas variáveis.
Resultados Foram incluídos dez (71,43%) pacientes do sexo feminino e 4 (28,57%), do sexo masculino (Gráfico 1). A idade média dos pacientes foi de 6,78 anos, tendo o mais novo 2 anos e o mais velho, 14 anos. O ronco foi a queixa mais comumente observada, sendo relatada por todos os maiores responsáveis (100%) e considerada de elevada gravidade por 64,28% destes. A respiração bucal (92,86%) foi o segundo sintoma em freqüência observado durante o preenchimento do questionário. Apnéia e obstrução nasal foram relatados em dez pacientes (71,43%). Os resultados obtidos através do questionário encontram-se na Tabela 1.
Tabela 1. Freqüência dos sintomas observados ao preenchimento do questionário pré-operatório por um maior responsável.
Queixa / N (%)
Ronco - 14 (100)
Respiração bucal - 13 (71,43)
Obstrução nasal - 10 (71,43)
Apnéia - 10 (71,43)
Sono agitado - 09 (64,29)
Halitose - 07 (50)
Despertares noturnos - 05 (35,71)
Hipersonolência diurna - 03 (21,43)
Voz hiponasal - 03 (21,43)
Enurese noturna - 02 (14,29)
Pesadelos - 02 (14,29)
Dificuldade de deglutição - 01 (7,14)
A análise do grau do tamanho da amídala palatina através do exame otorrinolaringológico demonstrou sete (50%) crianças com hipertrofia amigdaliana grau IV; cinco (35,71%), grau III e dois (14,29%), grau II. Não foi observado nenhum paciente com obstrução menor que 25% ao nível da orofaringe.
Dos quatorze pacientes incluídos no estudo, doze (85,71%) realizaram o Rx de cavum. Cinco pacientes (41,67%) apresentaram obstrução adenoideana grau IV; seis (50%), grau III e um paciente (8,33%), grau II. Nenhum paciente apresentou hipertrofia adenoideana grau I, ou seja, obstrução menor que 25% da luz da rinofaringe.
Todos os 14 pacientes foram submetidos à avaliação do tamanho das vegetações adenoideanas por vídeo-nasofibroscopia. Nove (64,28%) pacientes apresentaram obstrução proporcionada pela vegetação adenoideana maior que 75% da luz ao nível da rinofaringe; três (21,43%), obstrução entre 50-75% da luz do órgão e dois (14,29%) pacientes, obstrução entre 25-50% (Gráfico 2).
Um (7,14%) paciente apresentou alteração ao exame ecocardiográfico, evidenciando-se sinais de hipertensão pulmonar. Foi evidenciado grau IV de obstrução para o paciente em questão, tanto para as amígdalas palatinas quanto as vegetações adenoideanas. Após sete dias do procedimento cirúrgico, observou-se regressão dos sinais ecocardiográficos sugestivos de hipertensão pulmonar.
Gráfico 1. Distribuição dos pacientes conforme o sexo.
Gráfico 2. Distribuição dos pacientes conforme o grau de obstrução amigdaliana evidenciado à oroscopia e o grau de obstrução adenoideana observado ao Rx simples de cavum e à vídeo-nasofibroscopia.
Discussão Apesar de a hipertrofia adenoamigdaliana ser uma condição clínica reconhecida desde os primórdios, foi somente descrita como causadora de hipertensão pulmonar e cor pulmonale em 1965 por Menashe e Farrehi2-5. Subsequentes autores (Noonan, 1965; Luke et al., 1966) também descreveram a hipertensão pulmonar originária do aumento excessivo das amígdalas palatinas e vegetações adenoideanas. Goodman creditou o atraso na documentação da hipertensão pulmonar decorrente da hipertrofia adenoamigdaliana a dois principais fatores: ao grande número de adenoamigdalectomias realizadas no passado e à incapacidade diagnóstica6.
A hipertrofia adenoamigdaliana é a principal causa de obstrução crônica de vias aéreas em crianças, principalmente naquelas entre 2-6 anos de idade, faixa etária caracterizada por aumento do tecido linfóide e subseqüente estreitamento da coluna aérea. A idade média de nossos pacientes foi de 6,78 anos, compatível com a faixa etária apresentada pela literatura de maior tamanho do tecido do anel linfático de Waldeyer.
Dentre toda a exuberante sintomatologia apresentada por crianças portadoras de hipertrofia adenoamigdaliana, o ronco é o grande motivador da procura por um especialista (otorrinolaringologista ou pediatra), destacando-se como a mais preocupante queixa apresentada pelos pais destas crianças6. Entretanto, outras queixas são observadas nestes pacientes, como: apnéia obstrutiva, hipersonolência diurna, enurese noturna, sono agitado, despertares noturnos, pobre desempenho escolar, diminuição das funções cognitivas (atenção e memória), pesadelos, irritabilidade, entre outros; inclusive a hipertensão pulmonar e o cor pulmonale. Em nosso estudo, o ronco (100%) foi a queixa mais comumente observada entre os pais destas crianças. Porém não foi observado relação proporcional entre a gravidade relatada do sintoma e o grau de hipertrofia adenoamigdaliana. Respiração bucal, apnéia obstrutiva e obstrução nasal foram também queixas freqüentemente encontradas nestes pacientes com hipertrofia adenoamigdaliana.
Apesar da ocorrência de discordância entre as indicações e contra-indicações para a realização da adenoamigdalectomia, parece-nos bastante razoável a indicação deste procedimento cirúrgico para pacientes portadores de hipertrofia adenoamigdaliana, principalmente aqueles classificados como grau III ou IV. Em nosso estudo, doze (85,71%) pacientes apresentavam hipertrofia amigdaliana grau III ou IV, não sendo evidenciado nenhum paciente com grau I de hipertrofia amigdaliana. De modo semelhante, nenhum paciente apresentou grau I de obstrução adenoideana evidenciada ao Rx de cavum ou à vídeo-nasofibroscopia. Houve correlação positiva entre o grau de obstrução amigdaliana evidenciado à oroscopia e o grau de hipertrofia adenoideana observado à vídeo-nasofibroscopia. Esta correlação positiva deve-se provavelmente ao crescimento uniforme e proporcional do tecido linfóide do anel de Waldeyer. Observou-se também correlação entre a obstrução promovida pelas vegetações adenoideanas ao Rx de cavum e à vídeo-nasofibroscopia.
A fisiopatologia da hipertensão pulmonar desencadeada pela hipertrofia adenoamigdaliana encontra-se fundamentada na obstrução crônica das vias aéreas por um aumento exagerado da massa linfóide, promovendo um estreitamento da coluna aérea. Dessa forma, ocorre hipoventilação pulmonar e conseqüente retenção de CO2 (aumento da PaCO2) e hipoxemia (diminuição da PaO2). A retenção de CO2 acarreta broncoconstrição pulmonar, aumentando o esforço respiratório. Paralelamente, a hipoxemia produz vasoconstrição pulmonar e, por conseguinte, aumento da pressão da artéria pulmonar, caracterizando a hipertensão pulmonar. Assim como já demonstrado por outros autores2-5, pudemos comprovar a hipertensão pulmonar com base fisiopatológica na hipertrofia adenoamigdaliana. Dessa forma, acreditamos que para pacientes com importante hipertrofia adenoamigdaliana e sintomatologia exuberante o ecocardiograma pode ser bastante útil na determinação da hipertensão pulmonar; especialmente por se tratar de um exame seguro, prático e não invasivo8.
A prevalência de hipertensão pulmonar em pacientes com hipertrofia adenoamigdaliana observada em nosso estudo foi de 7,14%, sendo o quadro totalmente revertido após a adenoamigdalectomia, como evidenciado ao ecocardiograma pós-operatório. Dessa forma, acreditamos que a continuação deste estudo é de fundamental importância, pois apesar da pequena casuística, pudemos comprovar a existência desta condição clínica em crianças atendidas em nosso Hospital.
Conclusão Com base em nosso estudo, concluímos que a hipertrofia adenoamigdaliana também é causa de hipertensão pulmonar, sendo o ecocardiograma um exame bastante útil na determinação desta patologia, especialmente por se tratar de um exame seguro, prático e não invasivo.
Dessa forma, crianças em idade pré-escolar, apresentando sintomatologia obstrutiva exuberante (roncos, respiração bucal, apnéia e obstrução nasal) e hipertrofia adenoamigdaliana importante têm indicação potencial para adenoamigdalectomia, podendo reverter e eventualmente prevenir o aparecimento de hipertensão pulmonar decorrente do processo obstrutivo crônico desencadeado por aumento exagerado do tecido adenoamigdaliano.
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1 Residente do terceiro ano de Otorrinolaringologia do Hospital Prof. Edmundo Vasconcelos - Centro de Otorrinolaringologia e Fonoaudiologia de São Paulo.
2 Otorrinolaringologista responsável pelo setor de Otorrinolaringologia Pediátrica do Hosp. Prof. Edmundo Vasconcelos - Centro de Otorrinolaringologia e Fonoaudiologia de São Paulo; Professora Adjunta da Disciplina de Otorrinolaringologia Pediátrica da Universidade Federal de São Paulo.
3 Cardiologista responsável pelo setor de Ecocardiografia do Hosp. Prof. Edmundo Vasconcelos.
4 Otorrinolaringologista do Hosp. Prof. Edmundo Vasconcelos - Centro de Otorrinolaringologia e Fonoaudiologia de São Paulo; pós-graduando em Cirurgia de Cabeça e Pescoço do Hospital Heliópolis.
5 Diretor do setor de Otorrinolaringologia do Hosp. Prof. Edmundo Vasconcelos - Centro de Otorrinolaringologia e Fonoaudiologia de São Paulo.
Endereço para Correspondência: Centro de Otorrinolaringologia e Fonoaudiologia de São Paulo -
Hospital Prof. Edmundo Vasconcelos - Rua Borges Lagoa, 1450 Vila Clementino 04038-905 São Paulo SP. Tel (0xx11) 5080-4357 - E-mail: centrodeorl@osite.com.br
Artigo recebido em 11 de agosto de 2003. Artigo aceito em 04 de setembro de 2003.