INTRODUÇÃOA meningite é a principal causa de deficiência auditiva neurossensorial adquirida e o paciente pode apresentar ao mesmo tempo déficit motor, distúrbio visual, distúrbio de linguagem, déficit vestibular, déficit de atenção e incapacidade para a aprendizagem1. Caracteristicamente a deficiência auditiva pós-meningite é sensorioneural, profunda, bilateral, simétrica e descendente, mais comum no sexo masculino e em crianças abaixo de 5 anos2 e traz não só graves implicações quanto ao desenvolvimento social e emocional dos sujeitos por ela afetados, como também sérias alterações na linguagem oral já adquirida e na aquisição da linguagem oral3. Dentre as causas da meningite, a pneumocócica tem o pior prognóstico auditivo causando perdas permanentes em até 30% dos sobreviventes4.
O implante coclear é uma opção de reabilitação para os pacientes com deficiência auditiva neurossensorial severa a profunda ou profunda pós-meningite, que não se beneficiam do aparelho de amplificação sonora individual (AASI). Entretanto, a ocorrência de seqüelas neurológicas centrais nos casos de deficiência auditiva pós-meningite e conseqüentes atrasos no desenvolvimento da linguagem após o implante coclear evidenciam a necessidade de formulação de estratégias reabilitadoras que englobem não só as habilidades específicas, mas também as habilidades cognitivas gerais5.
Alguns estudos têm demonstrado que a surdez secundária à meningite proporciona, em certos casos, resultados não tão satisfatórios como em pacientes implantados devido a outras patologias. Tomando por base tal constatação foi realizada a análise comparativa dos resultados de 29 adultos submetidos à cirurgia de implante coclear com surdez pós-meningite, com outro grupo de 28 pacientes com outras etiologias de perdas auditivas também submetidos a implante coclear entre os anos de 1990 e 2001, no Hospital de Reabilitação de anomalias craniofaciais, USP de Bauru. Os achados cirúrgicos e radiológicos, como grau de ossificação da cóclea e conseqüentemente, a quantidade de inserção de eletrodos do implante, tipo de implante, os resultados dos exames audiométricos pré-operatórios e, finalmente, os dados relacionados aos resultados pós-operatórios foram avaliados. A ossificação encontrada em 69% dos casos no grupo pós-meningite influenciou negativamente resultando em maior número de complicações e maior número de inserções parciais do implante, mas aparentemente não influenciou no resultado auditivo4.
A histopatologia e fisiopatologia dos ossos temporais de pacientes que tiveram meningite revelaram um envolvimento do ouvido interno e do nervo acústico, ossificação na cóclea e labirinto membranoso6 e menor número de células do gânglio espiral em ossos temporais de indivíduos com mais tempo de surdez total durante a vida7. Estudos concluíram que a ossificação é um quadro comum em crianças com surdez pós-meningite; que a ossificação do canal semicircular lateral visualizada na tomografia computadorizada é a medida mais sensível para predizer ossificação do que a evidência de envolvimento coclear e a ausência de ossificação na tomografia não é garantia de ausência da mesma durante a cirurgia8. Melhores resultados de percepção da fala com o implante coclear em crianças com deficiência auditiva pós-meningite foram encontrados quando utilizando os implantes cocleares Double Array da Nucleus e o Med-El Combi 40+ GB nos casos de ossificação da cóclea9,10.
Análise da percepção e produção da fala de crianças com deficiência auditiva congênita e crianças deficientes auditivas pós-meningite, divididas em 3 grupos: 70 crianças com deficiência congênita, 22 crianças com deficiência auditiva decorrente de meningite antes dos 2 anos de idade e 14 crianças com deficiência auditiva decorrente de meningite depois dos 2 anos de idade. O grupo de crianças com deficiência auditiva decorrente de meningite depois dos 2 anos de idade demonstraram um a percepção da fala significativamente melhor que os outros dois grupos. A produção de fala deste grupo aparentemente foi melhor, mas não estatisticamente significante quando comparada com os outros dois grupos. Não foram encontradas diferenças significativas quanto à percepção e produção de fala11.
Os resultados da avaliação da percepção da fala em 71 crianças implantadas, divididas em 3 grupos: crianças que receberam o IC com mais de 7 anos, as abaixo de 7 anos e com idade de 3 anos ou menos com deficiência auditiva decorrente de meningite, indicaram melhoras depois de 6 a 12 meses de uso do IC em toda a amostra. A velocidade de melhora diferiu entre os grupos de faixa etária. As crianças utilizavam o implante coclear Nucleus 22, Nucleus 24 ou Med-El Combi 40+ e as crianças foram avaliadas na etapa pré-cirúrgica, 2 a 5 dias após a ativação, 1 mês, 3, 6 meses de uso do IC e a cada 6 meses até completarem 24 meses de uso12.
O presente estudo objetiva realizar uma análise comparativa dos achados relativos a: grau de ossificação e conseqüente inserção dos eletrodos; índice de reconhecimento de fala e questionários MAIS (Meaningful Auditory Integratiom Scale) e MUSS (Meaningful Use of Speech Scale) entre um grupo de crianças com deficiência auditiva sensorioneural pós-meningite e um grupo de crianças com deficiência auditiva sensorioneural de etiologias diversas, implantadas no período pré-lingual, na faixa etária de 1 ano e 10 meses a 6 anos.
MATERIAL E MÉTODOEste estudo foi realizado no Centro de Pesquisas audiológicas (CPA) do Hospital de Reabilitação de anomalias Craniofaciais (HRAC) da Universidade de São Paulo (USP) - Bauru.
Foram avaliadas, 63 crianças com deficiência auditiva neurossensorial profunda bilateral pré-lingual, usuárias de implante coclear multicanal, sendo 25 (40%) do sexo masculino 38 (60%) do sexo feminino. Em 12 casos (19%) a deficiência auditiva foi decorrente da meningite e em 51 casos (81%) de outras etiologias (Tabela 1).
Na Tabela 1 visualiza-se que 67% dos casos de deficiência auditiva pós-meningite ocorreram no sexo masculino.
Na Tabela 2, observa-se os dados referentes ao tipo de implante coclear e estratégia de codificação da fala.
Os pacientes foram avaliados com seu dispositivo de implante coclear composto pelo componente interno e um componente externo (processador da fala, microfone, antena e cabos de transmissão).
Para avaliação da percepção de fala realizou-se o reconhecimento de palavras e fonemas utilizando a lista de palavras dissílabas (consoante-vogal-consoante-vogal)13 apresentada em campo livre a 70 dB NPS a viva voz, numa cabina acústica e foi aplicado aos pais ou responsável pela criança, o questionário MAIS sobre as habilidades auditivas14,15.
Para a avaliação da presença de ossificação na cóclea foi realizado tomografia computadorizada de 1mm da cápsula ótica na etapa pré-cirúrgica do implante coclear.
Os achados dos pacientes com seqüela de meningite foram comparados aos dos pacientes do grupo controle, com etiologias variadas.
Para avaliação da linguagem oral no dia-a-dia foi utilizado o questionário MUSS16.
Os dados coletados durante a análise estatística descritiva das amostras estudadas foram posteriormente resgatados para a análise estatística inferencial, feita através do teste não-paramétrico de Mann-Whitney com nível de significância de 0,05 (5%).
Tabela 1. Distribuição dos sujeitos quanto ao sexo para os casos de deficiência auditiva pós-meningite e outras etiologias.
Tabela 2. Distribuição dos sujeitos quanto ao tipo de implante coclear e estratégia de codificação da fala para os casos de meningite (N=12) e outra etiologias (N=51)
RESULTADOSNo Gráfico 1 observa-se a distribuição dos sujeitos com deficiência auditiva pós-meningite quanto ao resultado da tomografia computadorizada.
De acordo com o Gráfico 1, metade dos sujeitos com deficiência auditiva pós meningite apresentaram ossificação na cóclea.
No Gráfico 2 visualiza-se a distribuição dos sujeitos quanto a inserção dos eletrodos na cirurgia de implante coclear.
A inserção dos eletrodos foi parcial em 3 sujeitos (25%) com deficiência auditiva pós-meningite e em 2 sujeitos (4%) com deficiência auditiva de outras etiologias, evidenciando uma ocorrência maior de inserção parcial no grupo com deficiência auditiva pós-meningite (p=0,04).
A mediana, mínimo e máximo dos índices de reconhecimento de palavras e fonemas para os casos de deficiência auditiva pós-meningite e outras etiologias são mostrados nos Gráficos 3 e 4, respectivamente.
Nos Gráficos 3 e 4 observa-se a mediana e o máximo dos índices de reconhecimento da palavras e a mediana, mínimo e máximo dos índices de reconhecimento de fonemas com valores mais altos para o grupo com deficiência auditiva de etiologias diversas, mas essa diferença não foi estatisticamente significante (p>0,05).
Os resultados do questionário MAIS é mostrado no Gráfico 5, no qual nota-se que a mediana, mínimo e máximo dos escores foram mais altos para o grupo com deficiência auditiva decorrente de etiologias diversas, ma não estatisticamente significante (p>0,05).
No Gráfico 6 foi apresentado a mediana, mínimo e máximo dos valores do questionário de linguagem MUSS aplicado aos pais das crianças com deficiência auditiva decorrente de meningite e de etiologias diversas.
A mediana e o escore máximo do questionário MUSS foram mais altos para as crianças com deficiência auditiva de etiologias diversas (Gráfico 6), mas não houve uma diferença estatisticamente significante (p>0,05).
Gráfico 1. Distribuição dos casos de deficiência auditiva pós-meningite quanto aos resultados da tomografia computadorizada (N=12)
Gráfico 2. Distribuição dos sujeitos quanto a inserção dos eletrodos para os casos de deficiência auditiva pós-meningite (N=12) e outras etiologias (N=51)
Gráfico 3. Mediana, mínimo e máximo dos índices de reconhecimento de palavras para os casos de deficiência auditiva pós-meningite (N=12) e outras etiologias (N=51)
Gráfico 4. Mediana, mínimo e máximo dos índices de reconhecimento de fonemas para os casos de deficiência auditiva pós-meningite (N=12) e outras etiologias (N=51)
Gráfico 5. Mediana, mínimo e máximo dos escores do questionário MAIS para os casos de deficiência auditiva pós-meningite (N=12) e outras etiologias (N=51)
Gráfico 6. Mediana, mínimo e máximo dos escores do questionário MUSS para os casos de deficiência auditiva pós-meningite (N=12) e outras etiologias (N=51)
DISCUSSÃOA ocorrência de ossificação é alta no grupo com deficiência auditiva pós-meningite (50% dos casos) e como conseqüência a ocorrência de inserção parcial dos eletrodos foi estatisticamente significativamente p=0,05 neste grupo representando (25% dos casos). Estes achados concordam com os estudos que referem uma maior ocorrência de ossificação na cóclea e labirinto membranoso nas deficiências auditivas pós-meningite6,8.
Neste estudo não foi encontrada uma diferença estatisticamente significante quanto ao reconhecimento de palavras e fonemas e no questionário de habilidades auditivas entre o grupo com deficiência auditiva pós-meningite e o grupo com deficiência auditiva de etiologias diversas. Resultados similares quanto a percepção da fala foram relatados em crianças implantadas antes dos 3 anos com deficiência auditiva pós-meningite12, para crianças que tiveram meningite antes de 2 anos de idade11, quando estes foram comparados com o grupo de deficiência auditiva de outras etiologias.
Quanto a linguagem oral, avaliada pelo questionário MUSS, não houve uma diferença estatisticamente significante entre o grupo com deficiência auditiva pós-meningite e de etiologias diversas.
Embora não existam diferenças estatisticamente significantes quanto a percepção da fala e linguagem entre o grupo com deficiência auditiva pós-meningite e o de etiologias diversas, foram observados índices de reconhecimento mais altos para palavras e fonemas e nos questionários de avaliação das habilidades auditivas (MAIS) e de linguagem (MUSS) para o grupo com etiologias diversas.
Os autores destacam que o desenvolvimento das habilidades de percepção da fala é mais lento nas crianças com deficiência auditiva pós-meningite, mas elas se aproximaram dos resultados das outras crianças, depois de 18 meses ou mais de uso do implante coclear12. Isto justificaria um estudo a longo prazo dos resultados das crianças com deficiências auditiva pós-meningite, analisando a influência do tempo de uso do implante coclear.
A meningite tem um impacto devastador no desenvolvimento da criança. No entanto, a indicação do implante coclear possibilita o acesso ao mundo sonoro principalmente no que se refere ao reconhecimento da palavra, condição fundamental para garantir a compreensão da linguagem oral.
Os atrasos no desenvolvimento da linguagem depois do implante coclear necessitam de estratégias de reabilitação específicas5 e estudos devem ser desenvolvidos buscando estratégias mais eficientes e analisando a influência da família, do estilo cognitivo da criança e de outros fatores na reabilitação.
CONCLUSÕES A ocorrência de inserção parcial dos eletrodos foi significativamente maior no grupo com deficiência auditiva pós-meningite;
Não houve diferenças estatisticamente significantes quanto ao reconhecimento de palavras e fonemas e nos questionários de avaliação das habilidades auditivas (MAIS) e de linguagem (MUSS) entre o grupo com deficiência auditiva pós-meningite e o de etiologias diversas;
Os índices de reconhecimento de palavras e fonemas e os escores dos questionários de avaliação das habilidades auditivas (MAIS) e de linguagem (MUSS) foram mais altos para o grupo com etiologias diversas.
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16. Nascimento LT. Uma proposta de avaliação da linguagem oral [Monografia]. Bauru: Hospital de Reabilitação de Anomalias Craniofaciais, Universidade de São Paulo; 1997.
1 Livre-Docente coordenadora do Curso de Fonoaudiologia da Faculdade de Odontologia de Bauru da Universidade de São Paulo (FOB-USP) e do Centro de Pesquisas Audiológicas (CPA) do Hospital de Reabilitação de Anomalias Craniofaciais da Universidade de São Paulo (HRAC-USP).
2 Professora Doutora do Curso de Fonoaudiologia da FOB-USP.
3 Livre-Docente do Curso de Fonoaudiologia da FOB-USP e vice coordenador do CPA do HRAC-USP.
4 Mestre pelo HRAC-USP.
5 Fonoaudiólogo graduado pela FOB-USP.
Endereço para Correspondência: Dra. Maria Cecília Bevilacqua, CPA do Hospital de Reabilitação de Anomalias Craniofaciais - Rua Silvio Marchione, 3-20 Bauru SP Brasil 17043-900 caixa postal 1501
Tel (0xx14) 235800 - Fax (0xx14) 234-7818 - E-mail: hrac@edu.usp.br - home page: www.centrinho.usp.br
Pesquisa desenvolvida no Centro de Pesquisas Audiológicas (CPA) do Hospital de Reabilitação de Anomalias Craniofaciais da Universidade de São Paulo (HRAC-USP) e Faculdade de Odontologia de Bauru da Universidade de São Paulo (FOB-USP). Apresentada como conferência no 16º Encontro Internacional de Audiologia, Rio de Janeiro-RJ.
Artigo recebido em 01 de agosto de 2003. Artigo aceito em 04 de setembro de 2003.