INTRODUÇÃOA complexa inervação da laringe tem motivado o aparecimento de grande número de pesquisas, especialmente àquelas relacionadas ao nervo laríngeo recorrente (NLR), definido nos textos e periódicos como um dos mais importantes ramos do nervo Vago, por suas relações anatômicas e funcionais1-5. As numerosas variações, a importante aplicação cirúrgica, em especial nas tireoidectomias6-8 e ainda as dificuldades na comprovação funcional dos ramos nervosos para a laringe, tornam este assunto intrigante e desafiador para o pesquisador que pretenda adentrar em seu campo.
O nervo laríngeo recorrente (NLR), predominantemente motor, desprende-se do Vago na porção superior do tórax, ascende pelo ângulo entre a traquéia e o esôfago e penetra na laringe, sob a margem inferior do músculo constrictor inferior da faringe1-5. Alcançando a face posterior da laringe divide-se em 5 ramos, todos motores, com exceção do que se reúne ao ramo descendente do nervo laríngeo superior (NLS), sobre a face posterior do músculo cricoaritenoideo posterior (CAP), formando a anastomose de Galeno9-12.
O presente estudo objetiva investigar minuciosamente o trajeto dos ramos do nervo laríngeo recorrente (NLR), destinados aos músculos cricoaritenoideos posterior (CAP) e lateral (CAL). Os resultados obtidos são de grande importância para melhor sistematização das relações anatômicas do NLR na região estudada, visto que há pouca referência na literatura sobre o comportamento anatômico desse nervo e de seus ramos.
MATERIAL E MÉTODOForam utilizadas 20 laringes de cadáveres adultos, sem patologia de laringe e identificação de sexo e idade, disponíveis no laboratório de Anatomia da Faculdade de Odontologia de Bauru (FOB) - Universidade de São Paulo (USP), no período do estudo. As mesmas foram retiradas em bloco, formolizadas a 5% e armazenadas em cubas sem papeletas de identificação. Durante as dissecções utilizou-se microscópio cirúrgico MC900 (D.F. VASCONCELLOS), com objetiva de 200mm e oculares de 12,5mm.
As dissecções referem-se às regiões posterior e posterolateral da laringe. Para facilitar o acesso aos músculos CAP e CAL, foram removidas as lâminas da cartilagem tireoidea.
O nervo laríngeo recorrente foi dissecado a partir do limite entre a cartilagem cricoidea e a traquéia, expondo-se toda sua trajetória nas paredes posterolaterais direita e esquerda da laringe. A ramificação do nervo laríngeo recorrente (NLR) foi exposta até à altura do músculo CAL, evidenciando-se a inervação característica dos músculos CAP e CAL, objetivo maior deste trabalho.
As dissecções foram descritas e documentadas fotograficamente, utilizando-se uma câmera digital Nikon Coolpix 990, e impressas em HP 840C.
RESULTADOSCom base nas quarenta dissecções do nervo laríngeo recorrente (NLR) direito e esquerdo observaram-se os seguintes resultados:
Distribuição longitudinal e paralela das fibras do músculo cricoaritenoideo posterior (CAP), ascendentes desde a lâmina da cartilagem cricoidea até o processo muscular da cartilagem aritenoidea homolateral, onde se inserem, foi observada em 34 dissecções (85%). (Figuras 1-5)
Presença de fibras do músculo cricoaritenoideo posterior (CAP) dispostas obliquamente àquelas do feixe principal, em 6 dissecções (15%). As fibras desprendem-se do feixe principal e inserem-se sob o corno inferior da cartilagem tireoidea, na face articular tireoidea da cartilagem cricoidea. Tal distribuição assemelha-se a uma "trave muscular", por sob o qual o NLR passa. (Figura 3)
Em (100%) das peças observou-se o mesmo trajeto dos (NLR)s direito e esquerdo. Caminham através do ângulo formado entre a traquéia e o esôfago e penetram a laringe, sob a margem inferior do músculo constrictor inferior da faringe, atrás da articulação cricoaritenoidea. (Figuras 1-5)
Diferentes tipos morfológicos de inervação do ramo anterior do NLR alcançam os músculos CAP e CAL: unipedicular, dipedicular e tripedicular. Observou-se que o tipo morfológico mais comum entre as dissecções foi o dipedicular.
A ramificação unipedicular foi encontrada em 13 dissecções (32.5%) para o músculo CAP e em 4 dissecções (10%) para o músculo CAL (Figura 5). O tipo morfológico bipedicular para os músculos CAP e CAL foi encontrado em 17 dissecções (42.5%) e em 27 dissecções (67.5%), respectivamente (Figura 1). Finalmente, a inervação tripedicular foi observada nos músculos CAP e CAL, respectivamente, em 9 dissecções (22.5%) (Figura 2).
Figura 1. Vista posterolateral direita da laringe: 1. Cartilagem cricóide; 2. Face articular tireóidea da cartilagem cricóide; 3. Músculo cricoaritenóideo posterior (CAP); 4. Músculo cricoaritenóideo lateral (CAL); 5. Nervo laríngeo recorrente (NLR); 6, 7, 8, 9 e 10. Ramos do nervo laríngeo recorrente; (Setas). Locais onde os ramos do NLR alcançam os músculos CAP e CAL, respectivamente.
Figura 2. Vista posterolateral esquerda da laringe: 1. Cartilagem cricóide; 2. Face articular tireóidea da cartilagem cricóide; 3. Músculo cricoaritenóideo posterior (CAP); 4. Músculo cricoaritenóideo lateral (CAL); 5. Nervo laríngeo recorrente (NLR); 6, 7, 8, 9, 10, 11 e 12. Ramos do nervo laríngeo recorrente; (Setas). Locais onde os ramos do NLR alcançam os músculos CAP e CAL, respectivamente.
Figura 3. Vista posterolateral direita da laringe: 1. Cartilagem cricóide; 2. Face articular tireóidea da cartilagem cricóide; 3. Músculo cricoaritenóideo posterior (CAP); 3´. Fibras do CAP que desprendem-se do feixe principal para inserir-se em 2, 4. Músculo cricoaritenóideo lateral (CAL); 5. Nervo laríngeo recorrente (NLR); 6, 7, e 8. Ramos do nervo laríngeo recorrente; (Setas). Locais onde os ramos do NLR alcançam os músculos CAP e CAL, respectivamente.
Figura 4. Vista posterolateral esquerda da laringe: 1. Cartilagem cricóide; 2. Face articular tireóidea da cartilagem cricóide; 3. Músculo cricoaritenóideo posterior (CAP); 4. Músculo cricoaritenóideo lateral (CAL); 5. Nervo laríngeo recorrente (NLR); 6, 7, 8, 9, 10, 11 e 12. Ramos do nervo laríngeo recorrente; (Setas). Locais onde os ramos do NLR alcançam os músculos CAP e CAL, respectivamente.
Figura 5. Vista posterolateral esquerda da laringe: 1. Cartilagem cricóide; 2. Face articular tireóidea da cartilagem cricóide; 3. Músculo cricoaritenóideo posterior (CAP); 4. Músculo cricoaritenóideo lateral (CAL); 5. Nervo laríngeo recorrente (NLR); 6, 7, 8. Ramos do nervo laríngeo recorrente; (Setas). Locais onde os ramos do NLR alcançam os músculos CAP e CAL, respectivamente.
DISCUSSÃOAs dissecções confirmaram a trajetória do nervo laríngeo recorrente direito e esquerdo descrita nos trabalhos de Spalteholz (1967), Romanes (1976), Gray (1989), Pauwels (1991) e Moore (1992). Os mesmos penetram a margem inferior dos músculos constrictores inferiores da faringe direito e esquerdo, atrás da articulação cricotireoidea, para inervar os músculos intrínsecos da laringe, exceto o cricotireoideo.
Segundo Nguyen (1989), o ramo anterior do nervo laríngeo recorrente, em sua porção hipofaríngea, inerva o músculo CAP, apresentando três diferentes tipos morfológicos: unipedicular, dipedicular e tripedicular. Em sua porção laríngea, envia ramos para o músculo CAL, observando-se também três possibilidades de inervação pedicular, sendo a unipedicular mais comum. Através das dissecções constatou-se o que esse autor mencionou; entretanto, em ambos músculos, CAP e CAL, o tipo morfológico mais comum foi o bipedicular.
Sanders, em 1994, demonstrou que o músculo CAP é composto por três comportamentos neuromusculares: vertical, oblíquo e horizontal. Observou, também, a junção dos compartimentos vertical e oblíquo, considerados como único, em virtude de sua inervação característica. O ramo principal do nervo NLR, na altura do músculo CAP, divide-se em dois ramos secundários. O primeiro ramo NLR inerva os compartimentos vertical e oblíquo e o segundo ramo o compartimento horizontal. Tais conclusões foram confirmadas. Observou-se a compartimentalização do músculo CAP, evidenciada pela ramificação do ramo principal do NLR (bipedicular), na maior parte das dissecções.
A distribuição das fibras do músculo CAP, dispostas obliquamente às do feixe principal e inseridas sob o corno inferior da cartilagem tireoidea, na face articular tireoidea da cartilagem cricoidea, não foi observada em nenhuma das descrições consultadas.
CONCLUSÃOO nervo laríngeo recorrente (NLR) penetra na laringe sob a margem inferior do músculo constrictor inferior da faringe, atrás da articulação cricotireoidea. Seu ramo anterior caminha na face posterolateral da laringe, emite ramos para o músculo CAP, em sua porção hipofaríngea, e para o músculo CAL, em sua porção laríngea. A inervação característica de ambos músculos (CAP e CAL) é bipedicular, embora apresente também os demais tipos morfológicos: unipedicular e tripedicular.
CONSIDERAÇÕES FINAISO presente trabalho baseou-se em dissecções dos ramos do nervo laríngeo recorrente, que inervam os músculos CAP e CAL, nas paredes posterolaterais direita e esquerda da laringe.
Os resultados obtidos são de grande importância para melhor sistematização das relações anatômicas no nervo laríngeo recorrente na região estudada, visto que há pouca referência na literatura sobre o comportamento anatômico desse nervo e de seus ramos.
AGRADECIMENTOVários indivíduos prestaram inestimável suporte ao autor, colocando a sua disposição material individual de pesquisa, ilustrações, opiniões e comentários. A todos agradeço, em especial ao Prof. Dr. João Adolfo Caldas Navarro que não só acreditou no projeto, mas também empenhou-se irrestritamente em sua orientação.
"Aquele que deveria ser simplesmente professor, foi mestre; que quando deveria ser só mestre, foi amigo,que em sua amizade, nos compreendeu e incentivou a seguir nosso caminho"
(Autor desconhecido)
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 1. Gray H. 1827-1861 - Gray's anatomy/edited by Peter L. Willians et al. Anatomy, descriptive and Surgical. 37th ed. Edinburgh, London, Melbourne: Churchill Livingstone; 1989.
2. Braus H, Elze C. Anatomia des Menschen. 2nd. ed. Aufl, Berlin: Springer; 1934.
3. Hollinshead WH. Anatomy for Surgeons. 1st ed. New York: Hoeber Harper International; 1966.
4. Orts-Llorca FO. Anatomia Humana. 2ª edição. Barcelona: Científico Médica; 1960.
5. Sanders I. The Innervation of the Human Posterior Cricoarytenoide Muscle: evidence for at least two neuromuscular compartments. Laryngoscope 1992; 104: 880-4.
6. Paewels W, Akesson EJ, Stewart PA. Nervios Craneanos - Anatomía y Clínica 1991; Buenos Aires, Bogotá, Madri, México, São Paulo: Editorial Médica Panamericana SA.
7. Romanes GJ. Cunningham Manual de Anatomia Prática. 13ª edição. Editora da Universidade de São Paulo; 1976.
8. Spalteholz W. Atlas de Anatomia Humana Tomo III 3ª edição. Barcelona, Madri, Buenos Aires, Rio de Janeiro: Editorial Labor SA; 1967.
9. Moore KL. Clinically Oriented Anatomy. 3rd ed. Baltimore: Willians & Wilkins; 1992.
10. Tomasoh J, Britton WA. A fibre-analysis of the laryngeal nerve Supply in man. Acta Anat 1955; 23: 396-8.
11. Brandão G, Ferraz A. Cirurgia de cabeça e pescoço/Volume I - Princípios técnicos e terapêuticos. 1.ª ed. São Paulo, SP: Copyright livraria Roca Ltda; 1989.
12. Sanders I. The Innervation of the Human Larynx. Arch Otolaryngol Head Neck Surg 1993; 119: 934-9.
13. Glendon M, Gardner MD. Posterior Glotic Stenosis and Bilateral Vocal Fold Immobility (Diagnosis and Treatment). Otolaryngol Clin North Am 2000; 33(4): 855-74.
14. Testut L, Laterjet M. Tratado de Anatomia Humana. 9ª edição. Barcelona: Salvat Editores, SA ; 1958.
15. Nguyen M, Junien-Lavillauray C, Faure C. Anatomical intra-laryngeal anterior branch study of the recurrent (inferior) laryngeal nerve. Surg Radiol Anat 1989; 11: 123-7.
1 Professor Titular de Anatomia do Departamento de Ciências Biológicas da Faculdade de Odontologia de Bauru da Universidade de São Paulo (FOB-USP).
2 Professor Associado do Departamento de Ciências Biológicas e Livre-Docente em Anatomia da Faculdade de Odontologia de Bauru da Universidade de São Paulo (FOB-USP).
3 Cirurgião-Dentista formado pela FOB-USP; Residente do Curso de Cirurgia e Traumatologia Bucomaxilofacial da Associação Hospitalar de Bauru e Colégio Brasileiro de Cirurugia e Traumatologia BMF.
4 Fonoaudiólogo, formado pela Faculdade de Odontologia de Bauru da Universidade de São Paulo (FOB-USP); Pesquisador bolsista do Centro de Pesquisas Audiológicas (CPA) do Hospital de Reabilitação de Anomalias Craniofaciais (HRAC).
Trabalho realizado no Departamento de Ciências Biológicas, Disciplina de Anatomia, da Faculdade de
Odontologia de Bauru, da Universidade de São Paulo. Trabalho financiado pela FAPESP.
Endereço para Correspondência: Alameda Octávio Pinheiro Brisolla, 9-75 Vila Universitária 17012-901 Bauru SP. Tel (0xx14) 235-8226 - Fax (0xx14) 223-8575 - E-mail: jnavarro@usp.br
Artigo recebido em 12 de dezembro de 2002. Artigo aceito em 25 de setembro de 2003.