(Rio de Janeiro)
Compulsando o nosso arquivo de corpos estranhos da laringé, da traquéa, dos bronquios e do esofago, que alcançam um total de quasi setenta casos, pareceu-nos interessante destacar, entre os casos de corpos estranhos dos bronquios, os quatro que constituem a presente comunicação.
Merece, ainda, especial referência, um deles, pela sua longa permanência no pulmão. Cerca de 8 anos ficou localizado num bronquio esquerdo. Foi a causa de um abcesso pulmonar, de regular volume, cuja capacidade era facil de aquilatar diante da quantidade de pús trazida pela aspiração, que variava entre 300 e 400 grms. o que impediu a remoção imediata do corpo estranho. Três' investidas foram feitas sem sucesso. A inspecção visual só era possível com a prévia remoção do pús. Qualquer tentativa sé tornava inutil, pois apezar da aspiração contínua, o pús, além de mascarar o corpo estranho, tapava constantemente, a lampada do tubo, permitindo apenas uma visão intermitente.
A este obstaculo sobrepunha-se o tecido de granulação no bronquio que alojava o corpo estranho. Além desses impecilhos, tínhamos, ainda, que levar em conta o estado de enfraquecimento do paciente. A permanência do corpo estranho por tão longo tempo, restringindo a função de grande área de tecido pulmonar, acrescida da intoxicação permanente pelo pús do abcesso, tinham repercutido profundamente sobre o organismo da criança. A toxemia e a insuficiência respiratória se revelavam por uma aparência de cachexia tuberculosa e atrazo de desenvolvimento. Cabelos ralos, sem brilho, facies avelhantada, dedos hipocraticos, denunciavam a extrema miséria organica e ditavam prudência no tratamento. A um organismo em tal penúria, era preciso poupar traumatismos e esse cuidado prejudicava as nossas manobras endoscopicas, com relação ao fator tempo. As broncoscopias não podiam se prolongar dentro dos limites, habitualmente, permitidos; quasi todo o tempo se consumia no trabalho de esvasiar a cavidade do abcesso, cuja capacidade, como já vimos, era grande, e quando iniciavamos a inspecção, á procura do corpo estranho, a alteração do pulso e os suores frios nos indicavam qual o caminho a seguir.
Diante do insucesso de tres investidas, não desanimámos e resolvemos mudar de orientação. Era preciso colocar o paciente em condições de favorecer as manobras endoscopicas. Diminuir a secreção purulenta e tonifica-lo.
Com a aquiecência do pai em deixar seu filho aos nossos cuidados, por tempo indeterminado, com a assistência médica do Dr. Pedro da Cunha, e com o uso de vacinas, conseguimos, no fim de algumas semanas prepara-lo para realizar nova endoscopia, se preciso fosse, sob o controle radiografico.
Como consta da ficha o emprego desta medida não foi necessaria. Os nossos cuidados alcançaram o fim colimado, pois, logo no inicio das manobras, foi facil localizar o corpo estranho e retira-lo da primeira pegada.
No segundo caso, dente no bronquio direito, outra foi a natureza do obstaculo a vencer. O corpo estranho era localizado com a maxima facilidade; estava o embaraço na falta de uma pinça adequada. A dificuldade era apreender o dente. Nenhuma das nossas pinças conseguia agarra-lo. A superficie lisa do dente, fugia das hastes das pinças. A certeza da inutilidade dos nossos esforços e a insuficiência do material de que dispunhamos, levaram-nos a escrever, por avião, ao Prof. Chevalier L. Jackson pedindo que nos enviasse, com toda urgencia, o ultimo modelo de pinça, recentemente apresentada por seu pai para a remoção de corpos estranhos do pulmão, modelo este que nos parecia apropriado para o caso, e com o qual conseguimos na l a investida, remover o corpo extranho.
O terceiro caso tem o seu interesse no percurso que fez o corpo estranho para sair do pulmão. Localizado no lobo inferior direito foi trazido até o hipofaringe, donde escapuliu para percorrer, sem incidentes, todo o tubo gastro-intestinal. Pelas radiografias é facil constatar na primeira o prego na porção mais baixa do pulmão direito junto ao diafragma, na segunda o corpo estranho já no intestino e na terceira o pulmão direito desembaraçado do prego. Estas duas ultimas radiografias foram feitas pelo Dr. Sicupira, tres horas depois da broncoscopia, que trouxe o prego até a boca do paciente.
O ultimo caso merece referência pela rapidez de sua extração. Localizada a agulha com a sua ponta para cima, a pegada foi facil e o corpo estranho logo removido.
Deixamos aqui registrado que para o adulto não usamos nenhum meio de contenção, sómente a laringe e a faringe são anestesiadas com Néotutocaina e Adrenalina.
Na criança não usamos anestesia, e a contenção é feita simplesmente com o auxilio do lençol enrolado primeiro num dos braços e depois em volta do corpo.
Observação n.° 1PREGO NA RAMIFICAÇÃO POSTERO-INFERIOR DO BRONQUIO E.
R. B. F., 13 anos, natural do Estado do Ceará, onde reside no lugar chamado "RIACHO DO MULUNGU. Ficha da Fundação Gaffrée e Guinle, n.° 7.800, em 24 de março de 1938.
Veio trazido pelo Dr. R. F. acompanhado pelo Secretário do Rotary Club, Snr. Sardinha, que o mandou buscar no Ceará para tirar um corpo estranho do pulmão. A copia radiografica trazida do Ceará (Instituto Radiológico do Dr. Lineu Jucá) mostra um prego numa ramificação posterior e inferior do pulmão esquerdo, confirmado por outras duas radiografias feitas no Serviço. (Entre a sexta e a setima costela).
24-3-1938 - Broncoscopia, feita com auxilio de anestesia local, tendo sido aspirado cerca de 400 gramas de secreção purulenta, muito fétida. Não foi encontrado o corpo estranho, em virtude da presença de grande quantidade de tecido de granulação. Traumatismo relativamente pequeno. A intrevenção durou 50 minutos. Vacina anti-broncopneumonica. Cebion - oleo canforado.
2-4-1938 - Com a presença do Dr. R. F. foi feita nova tentativa, sem resultado. Após aspirar todo o pús foi possivel inspeccionar todas as ramificações bronquicas sem contudo localizarmos o corpo estranho. Nenhum traumatismo local. Vacina anti-bronco-pneumonica.
16-4-1938 - Nova tentativa de 20 minutos com o tubo de 7 mms., sem resultado. Pús em abundancia e fétido. Ainda desta vez não foi possivel localizar o corpo estranho. Continuar com o tratamento tonico e vacinas anti-piogenicas.
19-5-1938 - Diante do resultado obtido nas outras broncoscopias devido, certamente, á existência da cavidade do abcesso, da secreção e das granulações, que dificultavam a localização do corpo estranho, resolvemos fazer nova tentativa, desta vez, sob o controle radioscopico. Prévia radioscopia mostrou a permanência do corpo estranho no mesmo local. Introduzido o broncoscopio de Chevalier Jackson, foi o corpo estranho logo localizado e retirado (dr. Kós), com 4 minutos de inicio da intervenção sem que fosse necessário o controle radioscopico. Facilitou a extração o estado geral do paciente, muito melhorado com o tratamento tonico e uso de vacinas.
Observação n.° 2DENTE LOCALIZADO NO BRONQUIO DO LOBO MEDIO DO PULMÃ D.
R. F.., 8 anos, filho do dr. M. F., residente em Petropolis. Registro particular n.° 27.298.
No dia 7 de dezembro de 1936 aspirou o primeiro premolar inferior direito ao ser extraído pelo dentisa.
Veio neste mesmo dia para a Fundação Gaffrée e Guinle, após fazer uma radiografia no Sanatório de Nogueira perto de Petropolis, a qual revelara o corpo estranho localizado no bronquio do lobo médio do pulmão D.
As 9 horas da noite foi feita a broncoscopia com a aparelhagem de Chevalier Jackson. Localizado imediatamente o dente foram infrutiferas todas as tentativas durante uma hora para extraí-lo, os ramos da pinça apreendiam o corpo estranho, porém a superficie lisa do dente não oferecia resistência para traze-lo. Doze dias depois nova tentativa com as mesmas dificuldades. Devido á constituição do paciente e como as broncos copias eram seguidas de elevação de temperatura, alterações do pulso e Lambem do parenquima pulmonar que a natureza do corpo estranho (dente cariado) complicava e tambem por nos convencermos que as nossas pinças dificilmente permitiriam a retirada do dente, resolvemos prolongar por mais alguns dias a espectação e dirigimo-nos por telegrama a C. L. Jackson. A resposta, por avião, não se fez esperar, acompanhada de uma pinça recentemente construiria por seu Pai para remoção de parafusos e tachas, pinça esta indicada para o caso. Em menos de 8 dias chegou ás nossas mãos, e mais de dez levamos para retira-Ia da Alfandega.
No dia 18 de Fevereiro de 1938 nova broncoscopia. A localização do dente foi um pouco demorada por causa da secreção purulenta abundante e do tecido de granulação, que o mascaravam e, assim mesmo, depois de bem' limpo o campo, localizado o corpo estranho, um de nós (Dr. J. Kós) fez com a nova pinça a primeira tentativa para apreende-lo e com sucesso retirou o corpo estranho.
A modificação da nova pinça, que a argucia de Chevalier Jackson idéou está na direção dos dentes que ficam obliquos para dentro. Esta direção oferece, de fáto, uma resistência muito maior para os corpos estranhos de superfície lisa.
O paciente passou bem, decimos de elevação da temperatura, apenas o pulso, como sempre, agitou-se.
Ao retirar o dente pudemos verificar que não havia formação de abcesso. Chamamos atenção para este detalhe, porque o paciente que,
DRS. DAVID DE SANSON E JOSÉ' KOS
em tempos idos, já tivera uma pleuro-congestão tambem do lado D., fez uma convalescença muito acidentada sempre acompanhada pelo Dr. Pedro da Cunha, seu medico desde que nasceu.
Além de bronquites, com complicações pulmonares, teve hemoptises, que lançaram suspeita de uma tuberculose incipiente e a formação de um abcesso monoliforme, revelado pela radiografia, que não se beneficiou da aspiração e lipiodolagem algumas vezes praticadas. Tem estado sempre sob os cuidados do seu medico assistente e depois de muitos tratamentos e alternativas, parece, que só agora (Junho de 1938) a sua saude se equilibra.
Observação n.° 3PREGO NO PULMÃO DIREITO
A. F., 21 anos, carpinteiro, residente á rua S. Luiz de Gonzaga.
Registro da Fundação Gaffrée e Guinle n.° 4705, em 1.° de Agosto de 1936. Este doente foi recomendado pelo Dr. Gonçalves da Rocha, da Cia. Sul America, como acidentado.
Contou-nos o paciente que tinha o habito de botar pregos na boca quando trabalhava e, num acesso de tosse, um deles foi aspirado. Procurou um Serviço Público, onde tentaram, sem resultado, extrair o corpo estranho. Fomos, então procurados pelo paciente que trazia uma radiografia do Pronto Socorro, confirmando a existência de um prego, ao nivel do lobo inferior do pulmão direito. Foi feita a broncoscopia, o corpo estranho_._facilmente -localizado e apreendido pela Pinça. Infelizmente ao ser extraído desprendeu-se ao alcançar a faringe, sendo deglutido pelo paciente. A anestesia faringéa facilitou a deglutição do prego. As radiografias posteriores confirmaram a sua passagem e saída do tubo digestivo sem incidentes.
Nota. '- Na discussão da Comunicação á Sociedade admitiu, um dos seus membros, a espulsão do corpo estranho num acesso de tosse. A natureza do corpo estranho (prego) com a sua ponta voltada para cima e localizada na porção mais inferior do pulmão D. invalida de todo essa possibilidade. Falamos com a autoridade de Chevalier-Jackson - pg. 237 - Endoscopie et Chirurgie du larynx 1923 (tradução do Dr. Menier) "Les chances d'expulsion d'un corpa étranger par la toux dépendent beaucoup de na nature. (O grifo é nosso). On n'a jamais vu que dez corps aigus, tels -que dez épingles placês Ia pointe en hautoaient été expulaées de cette maniére, car 1'épingle s'enfoncera au niveau du premier angle qu'elle rencon'trerá", linhas abaixo, "Dans la troisième categorie, on peut rangér les corps lourds: fer, plomb, étain etc. Il est três rare que Ia toux les rejette, á cause de la petite surface qu'ils presentent par rapport á leur poids. Le courant d'air expiré n'a paz assez de puissance, comparativement á la surface d'application de na force pour chasser l'intrus".
Insistimos: o corpo estranho era um prego com a sua ponta voltada para cima, aliás a figura, (Ficha 4705 A), dá uma copia fiel. Ainda que Chevalier Jackson estivesse equivocado não haveria razão para o paciente engulir o prego, se um acesso violento de tosse o tivesse projetado para fóra.
Observação n.°4AGULHA DE DENTISTA PARA LIMPEZA DOS CANAIS DENTARIOS
Localizada na ramificação do bronquio inferior direito.
No dia 15 de abril de 1932, a paciente, com 32 anos de idade, residente em Minas procurou-nos muito preocupada por que tinha aspirado na cadeira do dentista uma agulha que se achava localizada no pulmão direito. O fato acontecera no dia 12 de abril e o corpo estranho atravessou a glote, sem provocar o menor reflexo.
Algumas horas depois notou que ao escarrar sem fazer esforço a secreção vinha estriada de sangue. Feita a radiografia esta confirmou de fato a existencia de uma agulha de dentista, daquelas usadas para limpeza dos canais dentarios, cuja ponta se achava voltada para cima. Pedimos nova radiografia que precisou a agulha na ramificação posterior do bronquio inferior direito. Ausculta revelou normal a permeabilidade do tecido pulmonar. Combinada a extração esta se realizou no dia seguinte, pela manhã, numa Casa de Saude, e, para acalmar a ansiedade da paciente que era enorme, lhe foi aplicada uma injecção de Pantopon com a recomendação de ficar aquietada no quarto, em semi-obscuridade. A intervenção foi feita com o material de Chevalier Jackson e prévia anestesia da faringe e da entrada da laringe com cocaína e adrenalina. A remoção foi feita em oito minutos (tempo contado desde a entrada da doente na sala) com a maior facilidade e sequencia normal.
Obs. 1 (a) Ficha F. G. Guinle: 17860 - Prego no pulmão E.
Obs. 1 (b) Ficha F. G. Guinle: 17860 - Prego no pulmão E. depois.
Obs. 2 (a) - Reg. Part.: 27298 - Dente no pulmão.
Obs. 2 (b) - Reg. Part.: 27298 - Dente no pulmão. Depois de retirado.
Obs. 3 (a) - Ficha F. G. Guinle: 4705. Prégo no pulmão D.
Obs. 3 (b) - Ficha F. G. Guinle: 4705. Prégo no pulmão e já no tubo gastro-intestinal.
Obs. 3 (c) - Ficha F. G. Guinle: 4705. Prégo no pulmão - Depois da retirada.
Obs. 4 - Reg. Particular: 19557 - Agulha de dentista no pulmão.
Obs. 4 - Reg. Particular: 19557 - Agulha de dentista no pulmão.
Comunicação feita á Sociedade de Oto-Rino-Laringologia do Rio de Janeiro, em 1." de Julho de 1938.