INTRODUÇÃOEpistaxe é um problema comum e facilmente controlado na grande parte dos casos. A maioria das epistaxes são anteriores e apenas ocasionalmente requerem intervenção com tamponamento nasal. A epistaxe posterior, geralmente mais severa, pode ter o sítio de sangramento de difícil localização. Os fatores etiológicos mais comuns incluem: ressecamento mucoso, trauma digital e anticoagulantes, enquanto os traumas associados às anormalidades vasculares são responsáveis por epistaxe severa em menos de 5% dos casos.1
Pseudoaneurisma pós-traumático da carótida interna é uma causa incomum, porém potencialmente fatal de epistaxe. Em uma série de 87 pacientes com aneurisma intracavernoso, o trauma foi identificado como fator etiológico em 8% dos casos.2 Apesar de sua rara ocorrência, essas lesões têm uma alta taxa de mortalidade. Chambers et al.3 observaram uma taxa de 30% de mortalidade em revisão de 100 casos de pseudoaneurisma de carótida interna. A formação do pseudoaneurisma é conseqüência de uma hemorragia ou hematoma da artéria carótida interna formando uma parede de tecido fibroso, que por continuidade da pulsação sanguínea sofre enfraquecimento e alargamento, podendo levar à ruptura.4
A injúria à carótida interna intracavernosa ocorre em 1 a cada 10.000 admissões hospitalares secundária ao trauma.5 O pseudoaneurisma pode apresentar como manifestação inicial uma maciça epistaxe, cujo curso demonstra um variável período de latência.3 O diagnóstico de uma origem aneurismática para a hemorragia é freqüentemente tardio devido ao intervalo de tempo entre o trauma e a epistaxe.6
RELATO DE CASOW.F.S., sexo masculino, branco, 19 anos, estudante, procedente de Mauá. Foi admitido no setor de emergência do Hospital do Servidor Público do Estado de São Paulo em setembro de 2001 após trauma crânio-encefálico por queda de moto. Na admissão, apresentava-se com Glasgow = 15 sem comprometimento de pares cranianos. A tomografia computadorizada (TC) revelou a presença de pneumoencéfalo frontal; fratura da asa maior do esfenóide, ossos etmoidais e órbita direita; sangue em todos os seios da face e edema cerebral. Permaneceu internado no serviço para estabilização do quadro clínico, apresentando rinoliquorréia no sétimo dia, quando foi submetido à drenagem lombar e posterior resolução completa. Solicitou alta a pedido com redução da fratura zigomática em acompanhamento ambulatorial. Apresentou episódio de sangramento nasal de pequena quantidade com resolução espontânea no décimo dia após a alta hospitalar.
Retornou ao pronto-socorro em março de 2002, transferido de outro serviço, onde foi hemotransfundido e recebeu reposição volêmica após quadro de voluptuosa hemorragia nasal proveniente da fossa nasal direita. No momento da admissão, encontrava-se em bom estado geral, hipocorado, sem sangramento nasal ou orofaríngeo, sendo internado com a hipótese de pseudoaneurisma da carótida interna. Nasofibroscopia flexível mostrou presença de coágulo em recesso esfenoetmoidal à direita, sem outras lesões. Realizada tomografia computadorizada de seios da face com contraste onde foi evidenciava lesão expansiva com epicentro em seio esfenoidal à direita, com extensão para fossa média e seio cavernoso ipsilateral, com captação periférica de contraste. (Figura 1) Solicitada ressonância nuclear magnética (RNM) de encéfalo para complementar o diagnóstico. O resultado foi de imagem compatível com aneurisma gigante parcialmente trombosado da carótida interna direita associada a sinusorragia esfenoidal, além de imagens focais no território vascular carotídeo direito compatíveis com lesões isquêmicas. (Figura 2) A angiografia mostrou volumoso pseudoaneurisma originado da curvatura anterior do segmento intracavernoso da carótida interna direita e ocupando seio esfenoidal (Figura 5), sendo o teste da compressão na carótida comum à direita com boa opacificação das artérias cerebral média direita e artéria cerebral anterior direita. Presença de simetria nos tempos arterial capilar e venoso. Ausência de áreas avasculares, blushes tumoral com drenagem venosa normal. O paciente foi avaliado pela neurocirurgia com proposta de bypass entre a artéria carótida externa e a artéria cerebral média direita com ligadura da artéria carótida interna ipsilateral, sendo realizado o procedimento sem intercorrências. A angiografia de controle pós-operatório não revelou enchimento da carótida interna direita, com exclusão do pseudoaneurisma. (Figura 6)
Figura 1. Corte axial de tomografia computadorizada de seios da face evidenciando lesão com epicentro em seio esfenoidal à direita e captação periférica de contraste.
Figura 2. Corte sagital de ressonância nuclear magnética mostrando aneurisma gigante parcialmente trombosado da artéria carótida interna e sinusorragia esfenoidal.
Figura 3. Corte coronal de ressonância nuclear magnética mostrando aneurisma gigante da artéria carótida interna com extensão à fossa média craniana e seio cavernoso ipsilateral.
Figura 4. Corte axial de ressonância nuclear magnética evidenciando lesão em seio esfenoidal à direita.
Figura 5. Arteriografia evidenciando volumoso pseudoaneurisma da curvatura anterior do segmento intracavernoso da carótida interna direita.
Figura 6. Arteriografia realizada no pós-operatório: ausência de preenchimento da artéria carótida direita com exclusão do pseudoaneurisma.
DISCUSSÃOA maioria dos pseudoaneurismas traumáticos da carótida interna que resultam em epistaxe maciça estão localizados no segmento cavernoso e rompem para o interior do seio esfenóide; tipicamente ocorrem em pacientes jovens, do sexo masculino, envolvidos em acidentes automobilísticos11, como o paciente relatado. A íntima relação da carótida interna com o seio esfenóide é bem conhecida sendo descrita em estudo anatômico com dissecção de cadáveres por Renn e Rhoton.7 Nesse estudo, a carótida interna fazia saliência para a parede lateral do seio esfenóide em 71% dos casos. A cobertura óssea da carótida era menor que 1mm de espessura em 66% dos espécimes e 4% eram cobertas apenas por dura-máter e mucosa do seio com ausência de lâmina óssea. O pseudoaneurisma da porção intracavernosa da carótida interna apresenta ainda proximidade com outras estruturas cavernosas podendo estar associado com lesão dos nervos cranianos II, III, IV, V, VI e artéria oftálmica.1,2 Clinicamente, o encontro da tríade sintomática clássica de amaurose unilateral, fraturas orbitárias e epistaxe maciça é quase patognomônico de pseudoaneurisma da carótida interna.8
Pseudoaneurismas traumáticos da carótida interna resultando em epistaxe usualmente ocorrem dentro dos primeiros três meses do trauma inicial (88%), contudo, hemorragia maciça pode acontecer após meses ou anos.9 Em uma série, 54% dos pacientes tiveram o primeiro episódio de epistaxe dentro do primeiro mês e 87% dentro dos seis meses após o trauma.6 Nosso paciente apresentou epistaxe severa após seis meses do trauma inicial. Chambers et al. revisaram 100 casos descritos até 1981 de epistaxes resultantes de pseudoaneurismas e encontraram que 54% tiveram epistaxe dentro do primeiro mês, existindo uma espera de quatro meses entre a epistaxe inicial e o diagnóstico.3 A epistaxe tardia pode ser explicada pelo tempo necessário que o evento traumático leva para enfraquecer a parede do vaso e a pressão pulsátil erodir o osso íntegro do seio esfenoidal.6 Menos comumente, os pseudoaneurismas podem romper para a tuba de Eustáquio ou nasofaringe posterior.3,10 A mortalidade por hemorragia nessas lesões chega a atingir 50%.11
Apesar da angiografia carotídea ser o método ideal para a suspeita de injúrias vasculares, tomografia computadorizada e ressonância nuclear magnética são comumente realizadas incialmente após o trauma craniano. Alguns achados radiológicos encontrados na TC ou RNM geralmente necessitam ser melhor avaliados, levando à realização de uma angiografia carotídea. Na RNM, sinais de T1 hiperintenso/T2 hipointenso no seio esfenóide sugere a presença de coágulo sanguíneo e deve levar à realização de uma angiografia. Além disso, a RNM pode demonstrar a presença do pseudoaneurisma. Na tomografia, fraturas ósseas envolvendo as estruturas adjacentes como o seio esfenóide, sela túrcica e ápice orbitário devem levantar a suspeita de pseudoaneurisma da carótida interna;4 como no caso relatado anteriormente, cuja TC mostrou múltiplas fraturas, inclusive de base de crânio. Deve ser notado, contudo, que o pseudoaneurisma pode se formar mesmo na ausência de defeitos ósseos. Além disso, uma tomografia negativa não exclui o diagnóstico. Angiografia carotídea tipicamente mostra uma saída da carótida interna, que é a parede do pseudoaneurisma. O lúmen do pseudoaneurisma é geralmente opaco e se enche de contraste, contudo, angiografias em fases iniciais podem falhar em mostrar o desenvolvimento do lúmen do pseudoaneurisma.4
CONCLUSÃOQualquer paciente que apresente epistaxe posterior com uma história prévia de trauma craniano, não importando se este trauma foi remoto, deve ter considerada a presença de um pseudoaneurisma da carótida interna. Além disto, um padrão de epistaxe recorrente ou significativa com falha de resposta ao tamponamento nasal deveria ser avaliado rapidamente com uma angiografia carotídea. Outros achados como amaurose traumática, déficits de nervos cranianos e fratura orbitária ou de base de crânio aumentam a suspeita de um pseudoaneurisma da carótida interna. Durante a confirmação do diagnóstico com angiografia, o teste de oclusão da carótida interna deve ser realizado para avaliar se existe um fluxo colateral adequado. O diagnóstico e a terapêutica precoce dos pseudoaneurismas são essenciais para minimizar a morbidade e mortalidade do sangramento.
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1 Médico Residente do Serviço de Otorrinolaringologia/Cabeça e Pescoço do Hospital do Servidor Público do Estado de São Paulo.
2 Doutora em Otorrinolaringologia/Cabeça e Pescoço pela Universidade Federal de São Paulo - Escola Paulista de Medicina.
Instituição: Serviço de Otorrinolaringologia/Cabeça e Pescoço do Hospital do Servidor Público do Estado de São Paulo.
Endereço para Correspondência: Rua das Biobedas nº 39 ap. 43 Saúde São Paulo 04302-010
Tel (0xx11) 5587-4638 / 9670-8206 - E-mail: macmachado@hotmail.com
Trabalho apresentado no 36º Congresso Brasileiro de Otorrinolaringologia, realizado em Florianópolis, SC em novembro de 2002.
Artigo recebido em 18 de fevereiro de 2003. Artigo aceito em 20 de março de 2003.