ISSN 1806-9312  
Quinta, 26 de Dezembro de 2024
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611 - Vol. 69 / Edição 5 / Período: Setembro - Outubro de 2003
Seção: Artigo Original Páginas: 664 a 670
O BERA como instrumento de avaliação funcional do tronco cerebral em cirurgias com hipotermia profunda e parada circulatória total
Autor(es):
Luiz Carlos Alves de Sousa1,2,
Marcelo Ribeiro de Toledo Piza1,
Marcus Ferez3,
Luciano da Silveira Rodrigues4,
Danielle Barbosa Ruiz4,
Viviane Bom Schmidt4

Palavras-chave: potenciais evocados auditivos de tronco cerebral, BERA, cirurgia cardíaca, parada circulatória total, hipotermia profunda, monitoramento de tronco cerebral

Keywords: brainstem auditory evoked potentials, ABR, heart surgery, total circulatory arrest, deep hypothermia, brainstem monitoring

Resumo: Objetivo: Monitoramento do tronco cerebral através da análise dos traçados do BERA em cirurgia cardíaca com hipotermia profunda e parada circulatória total (PCT), registrando a recuperação funcional (eletrofisiológica) do tronco cerebral. Forma de estudo: Coorte Longitudinal. Material e método: Foram estudados o comportamento do traçado do BERA de 8 pacientes submetidos a cirurgia cardíaca com hipotermia profunda e PCT para correção de aneurisma de aorta torácica. Etapas: resfriamento corporal até 18ºC C; PCT por até 60 minutos; reaquecimento. Registros do BERA: 35ºC, 32ºC, 26ºC, 18ºC, 27ºC, 35ºC. Resultados: Os traçados iniciais (35ºC) se apresentavam normais. Aos 26ºC há o desaparecimento de todas as ondas. Aos 18ºC o traçado do BERA mostrava um padrão isoelétrico. Aos 27ºC, recuperação das ondas I, III e V. A partir de 35ºC as latências das ondas retornam ao normal. Conclusão: O BERA constitui-se em competente instrumento de monitoramento da integridade funcional do tronco cerebral em cirurgia cardíaca com hipotermia profunda e PCT. As ondas desaparecem no período de resfriamento corporal, atingem um padrão isoelétrico a 18ºC, e reaparecem durante o reaquecimento. No final do procedimento, os médicos anestesistas não dispõem de exame clínico fidedigno para acessar a integridade funcional do tronco cerebral, devido ao uso de drogas depressoras do SNC. O reaparecimento das ondas do BERA é o parâmetro proposto para este fim. A manutenção do padrão isoelétrico após o reaquecimento corporal sugere grave comprometimento funcional do tronco cerebral.

Abstract: Aim: The authors propose the use of ABR as an instrument for the detection of brainstem dysfunction in the trans- and post-operatory period of surgeries with total circulatory arrest (TCA) and deep hypothermia for correction of aneurysms of the thoracic aorta. Study design: Longitudinal Cohort. Material and method: Eight adult patients that underwent surgery for correction of aneurisms of thoracic aorta had their brainstem monitored through ABR. The patients had their body temperature lowered to 18ºC. At this moment, TCA was performed for a period of up to 60 minutes. The recordings were done at the following: before lowering the body temperature, during the cooling process, at the time of TCA (18ºC), and during the re-warming process. Results: The initial tracings (35ºC) were normal. At 26ºC, ABR waves disappeared. At 18ºC and TCA, ABR showed isoelectric tracings. Waves I, III and V reappeared at 27ºC, although with prolonged latencies. When temperature reached 35ºC, latencies were back to normal. Conclusions: The ABR seems to be a useful monitor for evaluating brainstem function during surgeries with TCA and deep hypothermia. Our experience showed the extreme usefulness of the evoked auditory potentials in such procedures as a noninvasive, reliable and objective method for the monitoring of variations in the neurophysiological pattern of the brainstem. This can be of great value in presuming the patient's neurological outcome in a moment when the neurological status cannot be clinically accessed due to the several drugs used during surgery.

INTRODUÇÃO

O tronco cerebral comanda a maioria das funções vitais de nosso organismo (pressão arterial, batimento cardíaco, temperatura corporal etc.), sendo responsável pelos reflexos mais primitivos, como os corneanos, pupilares, faríngeos, tendinosos e plantares.1

O colapso da função do tronco cerebral requer documentação da ausência dos reflexos pupilares à luz, corneanos, oculocefálico, oculovestibular, orofaríngeo e respiratório. Em determinadas situações como, por exemplo, quando o paciente encontra-se sob o efeito de altas doses de drogas depressoras do sistema nervoso central (SNC) ou em hipotermia profunda induzida, não se dispõe de exames clínicos fidedignos que possibilitam acessar a integridade funcional do tronco cerebral.2

O BERA (potenciais evocados auditivos de tronco cerebral) constitui-se em competente instrumento para monitorar a função do tronco cerebral. As vias auditivas ascendentes, devido à sua complexidade e origem filogenética, fazem numerosas conexões com núcleos do SNC como parte de um intrincado sistema auditivo reflexo. Desta maneira, decussações e comunicações internucleares fazem com que as vias auditivas ocupem ou estejam representadas nos segmentos do tronco cerebral (ponte e mesencéfalo).3

O BERA apresenta-se como um método objetivo na aferição do perfil eletrofisiológico do tronco cerebral sendo praticamente resistente à hipotermia moderada (temperaturas superiores a 30ºC), às altas doses de barbitúricos e outros depressores do sistema nervoso central.4-6 O BERA inscreve-se como alternativa relativamente simples e confiável na avaliação da integridade neurofisiológica do tronco cerebral. Starr utilizou-se deste método pela primeira vez nos meados da década de 70 para o diagnóstico da morte cerebral.7 Este método tem se revelado de grande utilidade no estadiamento do coma e suas implicações no diagnóstico da morte cerebral.8-10. O BERA resume uma série de vantagens incluindo o seu caráter não invasivo, a sua baixíssima morbidade e a sua confiabilidade e reprodutibilidade mesmo dentro de ambientes eletricamente carregados, como por exemplo centros cirúrgicos e unidades de terapia intensiva (UTI).11,12

A hipotermia profunda e a parada circulatória total (PCT) são técnicas algumas vezes utilizadas para o tratamento cirúrgico de pacientes portadores de aneurismas da aorta torácica, uma vez que se obtém temporariamente ausência de batimentos cardíacos e circulação sanguínea, promovendo desta maneira campo cirúrgico adequado para a correção destes aneurismas. Nestes procedimentos o paciente é submetido a um processo de resfriamento corporal, até atingir-se a temperatura de 18ºC. Nesta temperatura instala-se a PCT, que pode durar até 1 hora, tempo necessário para o cirurgião executar a correção do aneurisma em condições ideais.

A hipotermia profunda tem por objetivo proteger o sistema nervoso central dos efeitos deletérios do período de anóxia que ocorre durante a PCT quando se interrompe a perfusão cerebral.13,14

Alguns trabalhos relataram os efeitos da hipotermia profunda e da parada circulatória total sobre o BERA. Através da análise dos traçados durante o período de resfriamento (aumento das latências e dos intervalos interpicos e diminuição da amplitude das ondas) e reaquecimento corporal (recuperação dos padrões do traçado aos níveis de pré-resfriamento), foi demonstrado que o BERA constitui-se útil instrumento na avaliação da função do tronco cerebral durante estes procedimentos cirúrgicos.15-22

Desde que o BERA retrata as condições eletrofisiológicas das vias auditivas de tronco cerebral e seu padrão normal representa a integridade neurofisiológica do tronco cerebral, ficamos motivados a monitorar a função do tronco cerebral durante estes procedimentos cirúrgicos, através da análise do comportamento do BERA, com o intuito de avaliar se a anóxia ao qual o paciente foi submetido durante o período de PCT trouxe prejuízos ao SNC, mais precisamente ao tronco cerebral.

Os autores fazem uma correlação entre os BERAs obtidos nos pacientes durante o período de resfriamento máximo (18ºC) e PCT, cujos traçados mostravam-se com padrões isoelétricos, com BERAs que também apresentavam-se isoelétricos, de pacientes em coma em estudo realizado por Sousa et al.8, comparando o prognóstico destes dois grupos de pacientes.

OBJETIVO

Monitorar a função do tronco cerebral através da análise dos traçados do BERA por ocasião de cirurgia cardíaca com hipotermia profunda e parada circulatória total, de modo a oferecer subsídio objetivo à equipe de médicos cirurgiões, anestesiologistas e intensivistas sobre a recuperação funcional do tronco cerebral.

PACIENTES E MÉTODO

Este estudo baseou-se na análise dos traçados do BERA de 8 pacientes adultos, 5 do sexo masculino e 3 do sexo feminino, sendo o mais jovem de 52 e o mais velho de 67 anos, que foram submetidos à cirurgia com hipotermia profunda e PCT. Os traçados foram registrados no período de resfriamento, durante a PCT que se instalava quando a temperatura atingia 18ºC e durante o período de reaquecimento corporal.
Registrou-se o BERA de 20 indivíduos normais, da primeira a nona década de vida, em ambiente extra-hospitalar (consultório) utilizando-se uma unidade portátil de registro de potenciais evocados auditivos de tronco cerebral, marca Grason Stadler, modelo GSI 55 ABR Screener. Estes mesmos pacientes foram re-examinados, desta vez com o uso de uma unidade de potenciais evocados da marca Amplaid, modelo MK-10 Multisensory System, comparando-se a morfologia dos traçados obtidos, as latências e as amplitudes das ondas. Não foram detectadas diferenças entre os exames realizados com os dois equipamentos.

A seguir aferiu-se a confiabilidade e a reprodutibilidade do GSI 55 em ambiente intra-hospitalar (centro cirúrgico, sala de cirurgia cardíaca), comparando-se os BERAs de 5 indivíduos adultos jovens do grupo anterior obtidos no consultório com aqueles obtidos no centro cirúrgico sob condições normais de monitorização em ambiente de cirurgia cardíaca (oxímetro, termômetro, ECG etc.). Não foram observadas alterações entre os exames realizados no consultório e no centro cirúrgico.

As interferências causadas pela eletricidade estática (ruído de fundo) foram identificadas através da observação da linha de base, sem a deflagração dos estímulos auditivos, sendo o exame somente realizado após o controle deste ruído de fundo através da supressão temporária de sua fonte geradora.

Os exames foram realizados pelo autor, utilizando-se uma unidade portátil de registro de potenciais auditivos de tronco cerebral, marca Grason Stadler, modelo GSI 55 ABR Screener, com mediador (averager) de um canal e duas memórias, com janela de tempo de análise de 12 mseg e taxa de repetição de 10Hz. Os estímulos foram clicks breves (100 mseg) com polaridade alternada e de 85 dBnHL de intensidade, deflagrados em um dos ouvidos, através de plugs de inserção, perfazendo um total de 1024 estímulos. Foram registrados para cada ouvido dois traçados nas memórias disponíveis, fazendo-se a sobreposição das ondas, de modo a demonstrar-se a consistência e reprodutibilidade do traçado. O aparelho foi alimentado por baterias, diminuindo assim a possibilidade de interferência por ruídos elétricos de fundo.

Os eletrodos de superfície foram aplicados após tênue escarificação da pele com gaze embebida em éter, utilizando-se creme marca Med-TraceT(Buffalo, Nova York, EUA), e fixados com MicroporeT.
Os traçados foram obtidos obedecendo o padrão clássico: (a) linha de implantação dos cabelos (Fpz+); (b) lóbulo da orelha do ouvido teste (negativo) e; (c) lóbulo da orelha do ouvido contralateral (terra).

Os traçados do BERA foram registrados nas seguintes etapas: antes do início da hipotermia (35ºC), durante o processo de resfriamento (32 e 26ºC), durante o período de PCT (18ºC), durante o processo de reaquecimento (27ºC) até atingir-se a temperatura inicial do paciente
(35ºC).

Os pacientes foram resfriados lentamente. Demorava-se em média 1 hora até atingir-se a temperatura corporal de 18ºC, medida através de termômetro esofágico. Neste momento dava-se início à parada circulatória total que poderia chegar a se estender por até 60 minutos. A seguir iniciava-se o processo de reaquecimento do paciente, que também durava em torno de 1 hora.

Utilizou-se técnica de circulação extra corpórea (máquina de CEC Macchi modelo BM-6 e oxigenadores adulto de membrana marca Macchi-OXIM II-34 e Brailer-MRX-Biomédica). O sangue era bombeado para o oxigenador e resfriado ou aquecido pelo termopermutador, pelo qual circula água gelada ou quente. Um saco de plástico contendo gelo moído era colocado sobre a cabeça do paciente para ajudar no processo de resfriamento.



Tabela 1- Traçados do BERA dos pacientes 1 e 2



RESULTADOS

Foram estudados o comportamento dos traçados do BERA de 8 pacientes submetidos à cirurgia para correção de aneurisma da aorta torácica, com hipotermia profunda e parada circulatória total.
Os traçados iniciais (35ºC) se apresentavam dentro dos padrões da normalidade (morfologia, sincronia, latências das ondas I, III e V). Quando a temperatura corporal atingia a marca de 26ºC, observa-se somente sinais de atividade elétrica do traçado e desaparecimento de todas as ondas do BERA. Durante o período de resfriamento máximo (18ºC) e parada circulatória total, o traçado do BERA mostrava um padrão isoelétrico.

No processo de reaquecimento, quando a temperatura corporal atingia 27ºC, observava-se recuperação das ondas I, III e V, com suas latências aumentadas e intervalos interpicos prolongados. As ondas III e V se atrasaram mais do que a I. A partir de 35ºC os valores absolutos das latências das ondas se aproximavam daqueles do traçado inicial.

Na Tabela 1 observamos o comportamento dos traçados do BERA nas diversas fases que compreenderam o processo de resfriamento (fases A, B e C), parada circulatória total quando atingia-se a temperatura mínima de 18ºC (fase D) e reaquecimento corporal (fases E e F). Na fase A (35ºC) o BERA encontrava-se normal; na fase B (32ºC) observava-se discreta irregularidade do traçado, com sincronia das ondas preservada; na fase C (26ºC) notava-se ausência das ondas e somente atividade elétrica presente; na fase D (18ºC) o traçado apresentava-se isoelétrico; na fase E (27ºC) observava-se a recuperação de todas as ondas, com aumento de suas latências e; na fase F (35ºC) observou-se a plena recuperação das ondas do BERA.

Dos oito casos estudados, 1 evoluiu para óbito no final do procedimento cirúrgico, ainda na sala de cirurgia e 7 deram entrada na UTI (pós-operatório imediato) em boas condições clínicas.
Apresentamos em seguida dois casos que tiveram evoluções completamente distintas. O primeiro evoluiu para óbito no final do processo de reaquecimento, em decorrência de complicações cirúrgicas e da coagulação sanguínea; o segundo recebeu alta da UTI em boas condições clínicas.
Paciente 1: ARG, 62 anos, feminino. Tratamento cirúrgico para correção de aneurisma dissecante de aorta torácica. No final do procedimento cirúrgico apresentou hemorragia em anastomoses, que culminou em choque hipovolêmico e parada cardio-circulatória. Na ocasião a temperatura corporal era de 35ºC, e o BERA que já havia demonstrado plena recuperação do padrão normal, começava a se degenerar (Tabela 1 - fases F e G). O último registro ocorreu um minuto após a parada cardio-circulatória (em atividade elétrica, sem pulso). Neste momento o BERA se mostrava isoelétrico (Fase H).

Vale a pena notar os 2 momentos eletrofisiológicos distintos do tronco cerebral, ambos com temperatura corporal de 35ºC. No primeiro momento, com estabilidade cardio-circulatória o BERA está normal; no segundo, em estado de choque hipovolêmico grave e atividade elétrica sem pulso, nota-se nítido comprometimento da sincronia do traçado assim como aumento das latências das ondas (fase G). A fase H mostra o traçado isoelétrico que foi registrado 1 minuto após a parada cardio-circulatória (assistolia).

Paciente 2: MSL, 56 anos, masculino. Tratamento cirúrgico para correção de aneurisma dissecante de aorta torácica. O procedimento cirúrgico ocorreu sem nenhuma intercorrência. Observou-se plena recuperação das latências e morfologia do traçado ao final do reaquecimento corporal (Tabela 1- fase F) Paciente recebeu alta da UTI em boas condições clínicas.

DISCUSSÃO

O BERA (potenciais evocados auditivos de tronco cerebral) tem-se mostrado útil instrumento na detecção de diferentes tipos de doenças que acometem o sistema nervoso central. Nos últimos anos, trabalhando conjuntamente com intensivistas, neurologistas e neurocirurgiões, os autores adquiriram experiência utilizando-se do BERA como método de avaliação da função do tronco cerebral.8,9,23

A literatura é extensa ao relatar a extrema utilidade do BERA como método não invasivo, fidedigno, confiável e objetivo, no acompanhamento das variações do padrão eletrofisiológico do tronco cerebral. Este método tem sido empregado na monitorização dos estados de coma e no prognóstico da morte cerebral desde 1976.7

O BERA constitui-se em um competente instrumento para o monitoramento da função do tronco cerebral uma vez que as vias auditivas ascendentes ocupam todos os segmentos desta nobre estrutura do sistema nervoso central, responsável pela maioria das funções vitais de nosso organismo. Seu colapso funcional é sinônimo de morte encefálica.

A avaliação da integridade neurofisiologia do tronco cerebral através do BERA segue um raciocínio eletrofisiológico, que se baseia fundamentalmente na avaliação da sincronia do elemento neural (vias auditivas periféricas e de tronco cerebral). Em indivíduos normais, observa-se a completa sobreposição dos traçados das duas memórias. São deflexões idênticas da linha de base sem discrepâncias temporais entre as ondas I, III e V.

Acreditamos que o padrão do traçado do BERA, levando-se em conta elementos tais quais morfologia, sincronia, latências das ondas e intervalos interpicos retrata a integridade neurofisiológica do tronco cerebral. A reprodutibilidade do padrão de onda é a qualidade mais marcante do BERA, encontrando-se na morfologia do traçado, nas latências das ondas e seus intervalos interpicos, índices excepcionalmente fiéis.

Alguns trabalhos têm demonstrado o comportamento dos traçados do BERA por ocasião de cirurgias com hipotermia profunda e parada circulatória total. Durante o processo de resfriamento, há um aumento das latências das ondas I, III e V e dos intervalos interpicos. Quando a temperatura corporal atinge 25ºC todas as ondas desaparecem. A onda V começa a reaparecer durante o processo de reaquecimento também aos 25ºC, restabelecendo-se o padrão normal do traçado com 34ºC15. Segundo Markand et al., todas as ondas do BERA estavam presentes em temperaturas acima de 23ºC e ausentes abaixo de 20ºC. Com o reaquecimento as alterações se reverteram e retornaram aos níveis pré-hipotermia.17 Resultados semelhantes foram obtidos por Rodrigues, Rosenblum e Hayashi.18-20. As atividades do eletroencefalograma estão ausentes entre temperaturas cerebrais de 19 a 26ºC.24

Nossos resultados obtidos da análise do comportamento do BERA foram semelhantes àqueles relatados pela literatura. Durante o processo de reaquecimento corporal, quando a temperatura atingia 27ºC, observava-se o reaparecimento de todas as ondas do BERA com suas latências aumentadas e intervalos inter-picos prolongados, principalmente às custas do atraso das ondas III e V. O aumento das latências das ondas III e V foi maior do que o observado em relação à latência da onda I, quando comparado ao traçado inicial do paciente (35ºC). Hayashi et al. demonstraram que a onda I era a primeira a reaparecer no período de reaquecimento (24ºC).20 A análise do comportamento das latências das ondas do BERA nos leva a crer que o reaquecimento das vias auditivas se processa da periferia para o SNC. A cóclea e o VIII par (onda I) retomam suas funções antes do que as vias centrais, na ponte (onda III) e mesencéfalo (onda V).

No período de resfriamento parece ocorrer o inverso, o processo é rostro-caudal, ou seja, primeiro esfria (deprime) o mesencéfalo, depois a ponte e por último o VIII par e a cóclea. Hayashi et al. registraram somente a presença da onda I, durante o resfriamento corporal a 22ºC, em 6 de sua série de 22 pacientes submetidos à hipotermia profunda e PCT.20

A proposta deste trabalho é realizar o monitoramento eletrofisiológico do tronco cerebral (BERA) durante cirurgia cardíaca com hipotermia profunda e PCT, tendo como objetivo primordial a constatação da recuperação aos padrões iniciais do traçado do BERA durante o processo de reaquecimento, mostrando desta maneira o retorno à normalidade funcional do tronco cerebral (Tabela 1), o que nos permite informar à equipe cirúrgica do sucesso do procedimento de proteção do sistema nervoso central através do resfriamento corporal. Avaliamos se o sistema nervoso central sofreu danos decorrentes do período de anóxia pela ausência de perfusão ao qual foi submetido.

Em trabalho recente, Sousa et al. analisaram os traçados do BERA de 100 pacientes em coma. Dentre os 100 pacientes estudados, 64 apresentavam traçados com padrão isoelétrico e portadores de escore 3 da escala de Glasgow (ausência de resposta verbal, motora e abertura ocular). Todos estes 64 pacientes cujos traçados do BERA se mostravam isoelétricos evoluíram para óbito. O traçado isoelétrico do BERA revelou-se índice eficiente de auxílio na decisão de predição de óbito (morte cerebral) na UTI.8

A escolha das temperaturas corporais nas quais realizou-se o registro dos traçados, principalmente as do período de reaquecimento, baseou-se no fato de que não nos importava detectar o despertar das ondas (seu real instante de reaparecimento), mas sim, se elas voltariam a reaparecer. Decidimos então escolher a temperatura corporal de 27ºC para este fim, pois nesta temperatura a literatura é unânime em demonstrar que todas as ondas já deveriam ter reaparecido. Se as ondas do BERA não reaparecerem, ou seja, se o padrão isoelétrico se mantiver após o reaquecimento corporal, tal fato pode estar relacionado à injuria grave do tronco cerebral.

Nossa preocupação maior foi o período de reaquecimento corporal, quando o traçado mudava de um padrão isoelétrico (18ºC) até alcançar padrões da normalidade (35ºC). Nossa atenção estava voltada para este período que julgamos crucial. Nesta fase de reaquecimento observa-se a retomada da função do tronco cerebral, a recuperação da sua integridade eletrofisiológica. Acreditamos que a manutenção do padrão isoelétrico do BERA durante o período de reaquecimento corporal pode ser traduzida clinicamente em lesões isquêmicas irreversíveis do tronco cerebral.

Após completar a fase de reaquecimento, o paciente persiste sob efeito de altas doses de drogas depressoras do SNC. Os médicos anestesistas e intensivistas não têm, portanto, como acessar clinicamente a integridade funcional do tronco cerebral. O parâmetro que propomos para este fim é o reaparecimento das ondas do BERA após o processo de reaquecimento corporal.

Katbamna et al. registraram as alterações do BERA na Marmota monax e constataram que os potenciais de tronco cerebral desapareciam ao se atingir temperaturas corporais mais baixas durante seu período de hibernação e reapareciam ao despertar, quando a temperatura atingia níveis normais.25

A obtenção de um traçado isoelétrico em temperaturas corporais normais, em pacientes em coma, segundo Sousa et al., relaciona-se com a morte encefálica.8,9 Este mesmo padrão de traçado do BERA durante o período de hipotermia profunda relaciona-se a um estado de hibernação induzida do SNC, quando o metabolismo da célula nervosa atinge níveis muito baixos, tornando-se isenta aos efeitos deletérios da anóxia prolongada durante o período de parada circulatória total.

Norwood et al. demonstraram que os estoques de adenosina trifosfato (ATP) e fosfocreatina não são consumidos durante a hipotermia profunda e PCT.13 A hipotermia é o componente primário da proteção do sistema nervoso central, aumentando consideravelmente a tolerância cerebral à isquemia durante o período de PCT.14

Julgamos o BERA competente instrumento de detecção de eventuais comprometimentos da integridade funcional do tronco cerebral, em decorrência do período de isquemia durante cirurgias cardíacas com hipotermia profunda e PCT.

CONCLUSÃO

O BERA constitui-se em competente instrumento de monitoramento da integridade funcional do tronco cerebral em cirurgias cardíacas com hipotermia profunda e parada circulatória total.

As ondas I, III e V desaparecem no período de resfriamento corporal, o traçado atinge um padrão isoelétrico a 18ºC e as ondas reaparecem durante o processo de reaquecimento.

Após o término do período de parada circulatória total e do reaquecimento corporal, os médicos anestesistas e intensivistas não dispõem de exame clínico fidedigno para acessar a integridade funcional do tronco cerebral. O BERA se inscreve como método não-invasivo, confiável e objetivo no encaminhamento desta questão. O reaparecimento das ondas do BERA após o reaquecimento corporal é nosso parâmetro para se averiguar a retomada da função do tronco cerebral.

A manutenção do padrão isoelétrico após o reaquecimento corporal pode ser traduzida em comprometimento grave da integridade funcional do tronco cerebral, em decorrência do período de isquemia durante cirurgias cardíacas com hipotermia profunda e PCT.

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1 Associação Paparella de Otorrinolaringologia, Hospital Santa Lydia, Ribeirão Preto.
2 Docente de Otorrinolaringologia da Faculdade de Medicina da Universidade de Ribeirão Preto (UNAERP).
3 Diretor Médico do Centro de Terapia Intensiva do Hospital São Francisco de Ribeirão Preto.
4 Estagiário do Serviço de ORL do Hospital Santa Lydia.

Endereço para correspondência: Luiz Carlos Alves de Sousa - Rua Bernardino de Campos, 1503 Ribeirão Preto SP 14015-130 - Fone/Fax (0xx16) 610-6755/ 610-6515 - E-mail: lcarlos@clinicapaparella.com.br

Trabalho apresentado como tema livre no II Congresso Triológico de ORL, Goiânia, 26 de Agosto, 2001.
Este trabalho foi realizado com apoio da Associação Paparella de Otorrinolaringologia, Hospital Santa Lydia de Ribeirão Preto.

Artigo recebido em 26 de junho de 2003. Artigo aceito em 20 de agosto de 2003.
Indexações: MEDLINE, Exerpta Medica, Lilacs (Index Medicus Latinoamericano), SciELO (Scientific Electronic Library Online)
Classificação CAPES: Qualis Nacional A, Qualis Internacional C


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