IntroduçãoOs colesteatomas são lesões císticas revestidas de epitélio escamoso estratificado preenchidas por acúmulo de queratina esfoliada localizadas dentro da orelha média ou outras áreas pneumatizadas do osso temporal1. De acordo com a literatura, os mesmos podem ser classificados em congênitos e adquiridos. Os congênitos representam 2% a 5% de todos os colesteatomas, sendo mais prevalentes no sexo masculino (3:1), apresentando-se habitualmente como um tumor esbranquiçado localizado medialmente à membrana timpânica íntegra, principalmente no quadrante ântero-superior, sem história pregressa de otorréia, cirurgia otológica, perfuração da membrana timpânica ou otite média2. Sua etiologia permanece desconhecida, porém acredita-se que sua patogênese esteja ligada a migração epitelial, refluxo de debris amnióticos, metaplasia de mucosa ou permanência de remanescentes embrionários. Podem ainda ser encontrados nas regiões do ápice petroso, ângulo pontocerebelar, forame jugular, timpanomastóidea e meato acústico interno e externo2-4.
Os colesteatomas adquiridos são divididos em primários, formados a partir de uma retração da membrana timpânica decorrente de disfunção tubária concomitante ou secundários, oriundos da migração epitelial através de perfuração prévia da membrana timpânica1.
Os colesteatomas de um modo geral possuem características expansivas e de lise óssea, podendo invadir estruturas adjacentes. O mecanismo responsável pela erosão óssea ainda é controverso e algumas hipóteses têm sido aventadas como a compressão mecânica, estimulação osteoclástica, a ação de citocinas e a produção de enzimas proteolíticas como as colagenases1,5-7.
Devido ao comportamento destrutivo, muitas vezes insidioso do colesteatoma, o diagnóstico precoce e o tratamento adequado auxiliam na prevenção de suas complicações, que podem ser muito graves.
Uma das complicações mais importantes e debilitantes é, sem dúvida, a paralisia facial periférica, responsável muitas vezes por seqüelas irreversíveis, resultando em déficit significativo da qualidade de vida do paciente.
A paralisia facial periférica causada pela lesão colesteatomatosa possui uma incidência baixa e o envolvimento do nervo facial depende do modo de propagação adotado pelo colesteatoma1. Nos colesteatomas adquiridos (98% dos colesteatomas), o segmento timpânico e a região do segundo joelho são os mais afetados. Nos casos em que a doença invade o espaço epitimpânico anterior, o gânglio geniculado fica mais propenso a sofrer injúria8. O colesteatoma congênito também pode causar lesão do nervo e o segmento acometido vai depender da localização do tumor no interior do osso temporal.9
O advento da tomografia computadorizada de alta resolução e da ressonância magnética possibilitou um estudo mais detalhado da extensão e via de propagação da lesão colesteatomatosa e suas possíveis complicações10.
O objetivo deste estudo é apresentar a incidência, características clínicas, os métodos diagnósticos, a abordagem terapêutica e a evolução dos pacientes com paralisia facial periférica decorrente de lesão colesteatomatosa.
MATERIAL E MÉTODOOs autores realizaram um estudo retrospectivo dos casos de paralisia facial periférica devido a lesão colesteatomatosa através da avaliação dos prontuários de 206 pacientes submetidos à cirurgia de descompressão do nervo facial (com diferentes etiologias) no período de janeiro de 1993 a janeiro de 2002, realizadas no Hospital São Paulo, UNIFESP-EPM.
Os pacientes portadores de paralisia facial por colesteatoma foram avaliados segundo os seguintes dados: incidência, sexo, idade, lado acometido, tempo e grau de paralisia (House-Brackmann) pré-operatórios, sintomatologia e/ou complicações do colesteatoma associadas, técnica cirúrgica empregada, segmento do nervo facial acometido e resultado funcional pós-operatório (evolução da paralisia) (Quadro 1).
Quadro 1. Resumo dos casos em seus aspectos principais
ResultadosEm nosso estudo, foram encontrados 10 casos de paralisia facial periférica por colesteatoma nas 206 cirurgias de descompressão do nervo facial (por diversas causas), perfazendo uma incidência de 4,85%. A idade dos pacientes variou de 13 a 65 anos, com média de idade de 39 anos. Seis pacientes (60%) eram do sexo feminino. Sete pacientes (70%) apresentavam a paralisia facial no lado direito.
O tempo de evolução da paralisia variou de 7 dias a 8 anos, sendo que em 6 pacientes (60%) o tempo de paralisia era inferior a 2 semanas, dois pacientes (20%) estavam com paralisia há menos de 4 meses e os demais (2 pacientes) tinham paralisia há mais de 2 anos.
Em relação ao grau de paralisia facial inicial (pré-operatória), 4 pacientes (40%) apresentavam paralisia facial grau V, 3 (30%) apresentavam paralisia grau IV e 3 pacientes (30%) tinham grau VI.
Todos os pacientes tinham perda auditiva associada no lado acometido, 6 deles (60%) apresentavam perda auditiva mista (variando de moderada à severa) e 4 pacientes (40%) tinham anacusia. Um paciente relatava zumbido na orelha acometida de forte intensidade (tipo chiado). Um paciente apresentou abscesso retroauricular no lado afetado (secundário à mastoidite devido ao colesteatoma) e também quadro de meningite.
Todos os pacientes foram submetidos à mastoidectomia (técnica aberta) seguida de descompressão do nervo facial (sem a abertura da bainha). O acometimento do nervo facial pelo colesteatoma foi na maioria das vezes multisegmentar, sendo a porção timpânica do nervo facial a mais comprometida (6 pacientes (60%)) seguida pela região do 2o joelho (5 pacientes). O gânglio geniculado foi lesado em 2 pacientes (20%) e o segmento mastoídeo em apenas um (10%). A ruptura do nervo facial foi observada em 1 paciente. O mesmo tinha sido submetido à cirurgia prévia para exérese do colesteatoma e descompressão do nervo facial, apresentando melhora parcial da paralisia (grau IV). Um ano após esta cirurgia o mesmo apresentou piora do quadro (paralisia grau VI) e na reintervenção cirúrgica foi constatada a recidiva do colesteatoma juntamente com a ruptura do nervo facial na região do 2o joelho, provavelmente devido à lesão colesteatomatosa.
Dois pacientes (20%) necessitaram de interposição de enxerto do nervo auricular magno (um deles devido ruptura do nervo facial pelo colesteatoma e outro por manter o mesmo grau de paralisia 8 meses após a descompressão) e um paciente (10%) foi submetido à anastomose hipoglosso-facial (devido a grau inalterado de paralisia 1 ano após a descompressão). Foi realizado cirurgia estética (suspensão da face) em 1 paciente (10%), justamente o que tinha maior tempo de paralisia (8 anos).
Em relação ao resultado funcional após o procedimento cirúrgico, 6 pacientes (60%) evoluiram para grau II de paralisia facial 6 meses após a cirurgia (em 2 deles foi realizado o enxerto de nervo auricular magno). Um paciente (10%) evoluiu para paralisia grau III (após ser submetido à anastomose hipoglosso-facial). Dois pacientes (20%) apresentaram recuperação total da paralisia (grau I), 3 meses após a exérese do colesteatoma e a descompressão do nervo facial. No paciente submetido à cirurgia de suspensão da face, o resultado funcional permaneceu inalterado (grau V de paralisia).
Figura 1. A: Tomografia Computadorizada de ossos temporais,corte axial,evidenciando esclerose de mastóide e o preenchimento do antro,adito e atico(próximo ao primeiro joelho do nervo facial) por material com conteúdo de partes moles.Notar o alargamento da cavidade juntamente com a regularização de suas paredes,sugerindo atividade osteolítica(lesão colesteatomotosa);
B: Tomografia Computadorizada(TC) de ossos temporais,corte coronal,demonstrando o preenchimento da região atical por material com conteúdo de partes moles(colesteatoma),causando uma lateralização da cadeia ossicular.Notar a deiscência do canal de Falópio na porção timpânica.
Figura 2. TC de ossos temporais,corte coronal,evidenciando colesteatoma em região atical com provável comprometimento do nervo facial na sua porção timpânica.
Figura 3. TC de osso temporais,corte axial,demonstrando colesteatoma gigante causando extensa destruição óssea nas regioões mastoídea e epitimpânica,erodindo toda a placa óssea da fossa posterior.Notar a deiscência do canal de Falópio na região do gânglio geniculado e no segmento timpânico.
DiscussãoOs colesteatomas são caracterizados pela proliferação anormal de células, resultando em acúmulo de queratina, destruição do arcabouço ósseo adjacente, podendo deste modo invadir e comprometer estruturas nobres, como a orelha interna, nervo facial e sistema nervoso central.
Existe muita controvérsia na literatura quanto à etiopatogenia da reabsorção óssea na lesão colesteatomatosa. A teoria mais difundida é a da osteólise induzida pela compressão mecânica do tumor.9 Alguns autores acreditam que o epitélio escamoso estratificado por si só seria incapaz de erodir o osso, havendo a necessidade do tecido inflamatório de granulação concomitante para que tal fato ocorresse1,4. A estimulação osteoclástica pelo tumor também foi sugerida e em estudo realizado por Abramson (1969) foi demonstrado a atividade colagenolítica do colesteatoma (através da produção de colagenases) como responsável pela lise óssea9.
A paralisia facial periférica resultante da doença colesteatomatosa possui baixa incidência, aproximadamente 1.1%1 e provavelmente ocorre devido ao efeito compressivo do tumor com conseqüente diminuição do suprimento sanguíneo do nervo facial como também pela ação de substâncias neurotóxicas produzidas pela matrix do colesteatoma ou por bactérias geralmente presentes na massa colesteatomatosa1,8,11. É importante ressaltar que nos colesteatomas medialmente invasivos (envolvendo o ápice petroso, região supralabiríntica e meato acústico interno) a probabilidade de ocorrer uma disfunção do nervo facial aumenta, podendo alcançar uma incidência de 20%11,12.
Num paciente com otite média crônica que a partir de um determinado momento começa a apresentar paralisia facial periférica, existe a grande possibilidade de haver lesão colesteatomatosa concomitante13. Em algumas ocasiões, o primeiro sintoma associado à compressão do nervo facial pelo colesteatoma é a hiperfunção do mesmo, caracterizada por fasciculações e espasmos hemifaciais. Em nosso estudo foi realizado um levantamento das descompressões do nervo facial realizadas nos últimos dez anos, no total de 206 descompressões por diversas causas, sendo a mais comum a paralisia de Bell. O colesteatoma foi responsável pelo comprometimento do nervo facial em dez casos (descritos neste trabalho), contabilizando uma incidência de 4,85% das descompressões, o que corrobora com a literatura de que a paralisia facial periférica decorrente de lesão colesteatomatosa é pouco freqüente.
O envolvimento do nervo facial nos colesteatomas adquiridos ocorre mais freqüentemente na porção timpânica e na região do segundo joelho8. Estes locais são mais acometidos pelo fato de estarem próximos à principal via de disseminação da lesão colesteatomatosa, a via epitimpânica posterior, que segue o seguinte trajeto: espaço de Prussak®epitímpano posterior®ádito®antro mastóideo8. Em seis dos dez casos aqui estudados, nós observamos a lesão do nervo preferencialmente na porção timpânica. A região do segundo joelho foi acometida em cinco pacientes, o gânglio geniculado em dois e o segmento mastoídeo em apenas um paciente.
Nos casos em que a doença invade o espaço epitimpânico anterior, geralmente ocorre uma propagação mais medial da lesão (principalmente através da via supralabiríntica) e nestas ocasiões o gânglio geniculado fica mais susceptível à ação nociva do colesteatoma8. Em dois dos nossos casos houve extensão do colesteatoma para a região epitimpânica anterior, com compressão do nervo facial até a região do gânglio geniculado; o que chama a atenção é que se tratavam provavelmente de colesteatomas congênitos, os quais podem ter um comportamento bastante agressivo.
O colesteatoma congênito também pode ser responsável pela paralisia facial, principalmente quando localizado no ápice petroso9.
Nos casos de paralisia facial progressiva associada à perda auditiva condutiva estável sem história pregressa de otite média crônica, a hipótese de colesteatoma congênito deve ser aventada13 e o estudo por imagem (tomografia computadorizada e ressonância magnética) é essencial na investigação diagnóstica, inclusive para diferenciar de outras patologias como granuloma de colesterol (no ápice do rochedo) e o Schwannoma do nervo facial.
Apesar do colesteatoma possuir um comportamento mais agressivo na população pediátrica, o índice de complicações como a paralisia facial é maior nos adultos, devido provavelmente ao maior tempo de evolução da doença14. A maioria dos nossos pacientes nos procurou logo após a instalação da paralisia facial, porém em um paciente houve um retardo de tempo entre o início da paralisia e a primeira consulta, o que piorou muito seu prognóstico.
Embora a tomografia computadorizada de alta resolução seja o exame de imagem de eleição para a avaliação dos colesteatomas de orelha média e mastóide, o envolvimento do nervo facial nestes casos é melhor evidenciado através da ressonância magnética, principalmente nas imagens ponderadas em T1 após administração do contraste paramagnético gadolínio, ocorrendo por conseguinte uma maior impregnação do contraste no nervo4.
Ylikoski (1990) realizou um estudo histopatológico do nervo facial em pacientes portadores de paralisia facial associada ao colesteatoma, submetidos à cirurgia de reinervação e evidenciou que algumas áreas do nervo possuiam tecido fibrótico extenso, com ausência de axônios e células de Schwann15.
A ruptura do nervo facial em paciente com doença colesteatomatosa recidivante foi descrita por Waddell & Maw (2000)5. Situação similar ocorreu em um dos nossos pacientes, sendo realizado por conseguinte a colocação de enxerto do nervo auricular magno.
No diagnóstico diferencial das lesões que podem envolver o nervo facial intra-petroso estão o colesteatoma (congênito e adquirido), otite média tuberculosa, osteomielite do osso temporal, schwanoma do nervo facial, hemangiomas do canal de Falópio, meningiomas do ápice petroso, paragangliomas e tumores malignos (primários e/ou metastáticos)8.
O tratamento cirúrgico precoce é mandatório nos casos de colesteatoma que cursam com déficit funcional do nervo facial, com o intuito de promover a exérese do tumor responsável pela compressão e injúria do tecido neural. O nervo deve ser descomprimido tanto na direção proximal quanto distal em relação à lesão, numa distância de 5 a 10mm, porém a sua bainha não deve ser aberta8. Nos casos de ruptura do nervo facial e/ou substituição intensa do tecido neural por fibrose (nas paralisias crônicas) pode-se realizar alguns procedimentos para tentar restaurar a função nervosa como, por exemplo, a anastomose dos cotos proximal e distal do nervo (facial) após rerouting, enxerto de nervo (auricular magno e/ou sural) e anastomose hipoglosso-facial10.
Quanto maior o tempo de paralisia, pior é o seu prognóstico, pois a recuperação funcional pós-operatória torna-se deficitária. A perda da população de placas motoras terminais associada à denervação crônica reduzem a possibilidade de retorno significativo das funções neurais15.
Nos pacientes estudados neste trabalho pudemos observar que a duração e o grau da paralisia (inicial), juntamente com a extensão da lesão, foram fatores primordiais na determinação da recuperação funcional do nervo facial.
ConclusãoO colesteatoma é uma causa rara de paralisia facial periférica e o diagnóstico de outras patologias como o Schwannoma do nervo facial deve sempre ser lembrado, principalmente nos colesteatomas congênitos, que podem ser assintomáticos por anos. A cirurgia deve ser realizada precocemente, com o intuito de remover a lesão colesteatomatosa e conseqüentemente descomprimir o nervo facial, sem contudo abrir sua bainha, devido ao risco de infecção. As regiões do nervo mais freqüentemente acometidas pelo colesteatoma são a porção timpânica e a região do 2o joelho (transição da porção mastoídea e timpânica), muito embora nos colesteatomas medialmente invasivos (com progressão preferencialmente pela via supralabiríntica) o gânglio geniculado seja o segmento mais lesado. Deve-se ter em mente a possibilidade de ruptura do nervo, principalmente nos casos de doença colesteatomatosa recidivante em que tenha sido realizado uma descompressão do nervo facial previamente e o paciente apresente uma piora da função nervosa alguns meses ou anos após a cirurgia, sendo necessário nestas ocasiões a realização de enxerto neural. Nos casos de paralisia crônica, a possibilidade de anastomose hipoglosso-facial deve ser sempre aventada.
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1 Professor Afiliado da Disciplina de Otorrinolaringologia Pediátrica da UNIFESP-EPM.
2 Médicos pos-graduandos(nível mestrado) da Disciplina de Otorrinolaringologia da UNIFESP-EPM.
3 Médico pós-graduando(nível doutorado) da Disciplina de Otorrinolaringologia da UNIFESP-EPM.
Trabalho realizado no Setor de Otologia da Universidade Federal de São Paulo.
Artigo apresentado como Tema Livre(apresentação oral) no 36o Congresso Brasileiro de Otorrinolaringologia,realizado no período de 18 a 23 de novembro de 2002.
Artigo recebido em 23 de maio de 2003. Artigo aceito em 20 de agosto de 2003.