Comecemos por uma
OBSERVAÇÃO. E. L., moça de 20 anos, brasileira, branca, residente nesta Capital, procura-me no dia 4 de junho p. p. Queixa-se de que 11 dias antes, em seguida a um forte resfriado, experimentara dôres muito intensas no ouvido direito, dôres que se irradiavam por toda a metade da cabeça e nos olhos; febre, pouca. Procurou um especialista, o qual em 30 de Maio lhe rasgou o timpano, portanto 6 dias depois do aparecimento da dôr. Apesar-de aplicações quentes e de raios infra-vermelhos, quasi nada lhe valeu a paracentese; 5 dias depois, quando me procurou, as dôres continuavam com a mesma violencia. Não houve corrimento de exsudato algum e a temperatura subiu até 38,5. Na ocasião do meu exame, apresenta dôres fortes no ouvido e sobre a mastoide, irradiando-se pela metade da cabeça, tal como no inicio; a palpação do globo ocular provoca repulsa por parte do doente, porque é muito dolorosa. Queixa-se mais a cliente de que a alimentação é dificultada porque não abre bem a boca e na realidade o trismus é manifesto, e, observando-se, nota-se francamente asimetria do rosto em resultado de uma certa paresia do facial. Nada ha para o lado do ouvido externo, mas a palpação da mastoide é muito dolorosa principalmente em baixo, comprimindo-se a ponta para cima. A otoscopia revela um timpano macerado, sem brilho e sem reflexo; não ha congestão, edema do conduto ou corrimento de especie alguma. O exame funcional demonstra notavel diminuição da condução aerea; assim, Rinne francamente negativo e Weber lateralisado para o lado doente; Schwabach dificil de se testar devido á irritação da paciente que alega fortes dôres ao simples contato do diapasão. Prova calorica claramente favoravel ás condições do labirinto; prova rotatoria não foi realizada; aliás foi bom, e veremos porque. Não ha nistagmo expontaneo.
Com tais elementos em mão e temperatura proxima de 38, apelei para a radiografia, porque em conjunto o aspecto do quadro clinico nada tinha de banal. O relatorio radiografico do Dr. Cassio Villaça na posição de Stenvers, acusa diminuição discreta da transparencia das celulas da mastoide, mas, ao mesmo tempo chama a atenção para uma determinada celula do rochedo situada junto ao buraco auditivo interno, porque a sua luminosidade é diminuida. Este achado radiologico poderia ser de grande preciosidade porquanto o radiologista ignorava detalhes de anamnese que já estavam a exigir atenção com o rochedo. De fato, dôres oculares, trismus, paresia do facial e sombra nas celulas do rochedo é um conjunto que se articula bem. Despreza-lo é confirmar o conceito de Eves, ainda o ano passado, afirmando que antes de 1929 a maior parte das petrosites só éra diagnosticada no anfiteatro de anatomia.
E' bem conhecida a devassa produzida pelos raios X na patologia do rochedo; o progresso da radiografia teve a virtude de operar um reajustamento no complexo de Gradenigo, tal como ele foi descrito pelo notavel otologista italiano em 1904, e na atualidade ninguem vai esperar a conjuncção dos três elementos, dôr no ouvido, purgação e paralisia do abducens para se pôr em guarda contra a situação do rochedo. A triade muitas vezes aparece completa; não obstante, segundo Curtiss continua integro o 6.° par em 50% dos casos de afecções da porção petrosa do temporal. A falta de corrimento abundante, que no meu caso, era um elemento depondo contra a cumplicidade do rochedo tambem tem de ser encarada, aliás como sempre em medicina, sob certa relatividade. E exacto que Voss, Almour e Kopetzky atribuem á otorréa abundante a mais alta significação patologica. Mas o proprio Kopetzky é o primeiro a dividir as petrosites em encapsuladas, que são aquelas que mais ameaçam a meninge, e abertas em cujos casos já existe uma fistula drenando para o ouvido medio. Continuando a comentar o caso em fóco, assinalamos a oftalmalgia, que é considerada por Vail como patognomica das afecções do rochedo; tambem Eagleton, na sua imensa autoridade, dá o mais alto valor ás dôres retro-oculares, acompanhado por Kopetzky, Seydell e Curtiss. Na opinião do utlimo esta nevralgia do trigemeo é o mais constante elemento de diagnostico. No inicio tem um caracter noturno, para depois aparecer tambem durante o dia, com periodos de intermitencia, chegando mesmo a completo alivio temporariamente. A fraqueza, a paresia do facial, outro elemento constatado na minha doente, tambem merece, sob estas condições, todo relevo por parte de Eagleton, que chega mesmo afirmar que nestas contingencias se deve desconfiar de lesão profunda do rochedo, mesmo quando outro sintoma algum é presente; o Professor de Newark chega mesmo a desaconselhar nestes casos a prova rotatoria, porque a rotação póde romper o equilibrio entre a circulação do rochedo e o meio cerebro-espinal, precipitando uma meningo-encefalite evitavel. Temos mais o trismus, sintoma para o qual Roberto Oliva chamou a atenção em sua magnifica sintese sobre petrosites ainda o ano passado, e que ele muito racionalmente interpreta como congestão da cavidade glenoide do temporal, dificultando os movimentos do condilo do maxilar. O elemento Radiografia positiva, sem valor isoladamente como dizem Taylor e Law, tem toda a significação quando bem articulado; Coates, Ersner e Myers já demonstraram alterações radiologicas confirmadas pela cirurgia. Finalmente, irritabilidade do doente tal como havia no meu caso, fato para o qual chama a atenção Eves, de Philadelfia; não é uma irritação comparavel áquela de meningite ou de abcesso de cerebro, de um doente clamando por um narcotico; é apenas um doente nervoso, impaciente com tudo e com todos.
Que resolver pois a favor do paciente?
Era fóra de duvida nada haver de iminente em relação ás meninges, porque faltavam as perturbações de motilidade no globo ocular como acontece no sindroma de Gradenigo; mas si a ponta estava em bôas condicões isto não autorisava a abandonar o resto do rochedo.
O primeiro impulso seria uma mastoidectomia simples e depois esperar os acontecimentos. Mas antes de tomar uma tal atitude, seria necessario conhecer com toda a atualidade, todas as soluções para o problema das petrosites, uma vez que estamos ainda muito longe da ultima palavra sobre o assunto. Basta dizer que, emquanto Page, embora admita casos nos quais a mastoidectomia é solução, pergunta si, em outros deixar o rochedo intato não será perder a unica oportunidade de se evitar uma meningite, Eagleton em todo o seu prestigio, afirma que 80% das petrosites se curam pela simples abertura do antro, e que o ataque inoportuno ao rochedo póde provocar uma meningite fulminante. E' preciso porém seguir um pouco o raciocinio do grande otologista americano, para bem compreender o alto espirito cientifico e filosofico de suas afirmações.
Ha fatores embriologicos e de crescimento, diz Eagleton, assim como particularidades histologicas dos ossos que formam a base do craneo, que influem decisivamente no modo pelo qual eles respondem ás lesões inflamatorias, no curso que estas tomam e na nossa orientação.
Funcionalmente, o apice do rochedo lembra a extremidade epifisaria da diafise dos ossos longos durante o seu periodo de crescimento emquanto que a base do esfenoide é uma modificação espongiosa de uma vertebra cervical. Tanto a nutrição do apice do rochedo, como a da base do esfenoide são de tipo anastomosante, não são fornecidas por arterias terminais, e deste modo continuam atravez das diversas fases da vida. Primitivamente, tanto a ponta da piramide como a base do esfenoide são cheias de medula vermelha e gozam por isto de propriedades bactericidas. Esta capacidade bactericida é conservada na base do esfenoide; na ponta do rochedo, este poder desaparece, porque a medula vermelha é substituida por medula branca, gordura acelular, a qual em 35%, dos casos sofre um processo de pneumatisação. O apice do rochedo deve ser considerado como um deposito local do sistema reticulo endotelial da base do craneo, e devido a este seu especial tipo hemocitogenetico, quando provocada por algum estimulo, experimenta um processo de regressão e de novo se enche de medula vermelha, readquirindo as suas qualidades bactericidas ou reparadoras. Em resultado deste privilegio, garantido pela circulação bilateral anastomosante, proveniente da carotida interna assim como do sistema circulatorio que vem da dura mater, a base do esfenoide e em menor escala a ponta do rochedo, gozam de particular resistencia frente ás infecções, um certo gráu de imunidade e de capacidade reparativa. Dahi, a frequencia da cura expontanea das afecções do rochedo e a raridade da formação de abcessos nas lesões apicais apezar da concomitante inflamação da apofise mastoide. Isto dá-se em 80%, dos casos. São noções, diz Eagleton, muito bem conhecidas pelos cientistas, mas muito negligenciadas pelos otologistas.
Porém, si se instalar a osteomielite, por um ou outro motivo, ela terá um caracter especial requerendo assim uma orientação totalmente diversa daquela que se costuma, porque a infecção da medula provoca flebites e periarterites que pódem invadir as meninges e a substancia cerebral. Este tipo de infecção osteomielitica difusa é caracterisado pela invasão da corrente sanguinea e traduz-se por: l. Calafrios. 2. Hiperestesia da cornea. 3. Ligeira rigidez de nuca, que deve ser procurada repetidamente, sobretudo quando o doente se queixa de dores de cabeça. 4. Ausencia de reacções vestibulares. 5. Um tipo especial de paresia do facial intrameatica. Diz Eagleton, quando estamos em presença de sintomas de meningite supurada, e que aparecem dores retro-oculares, mesmo que sejam do lado oposto ou uma certa fraqueza do facial, será então necessario explorar o apice do rochedo, porque lá deve estar o fóco, causa imediata da meningite. Mas, antes disto resolver será necessario muita ponderação porque esta osteomielite poderá ser transformada em uma meningite pela operação, graças á profunda intimidade da irrigação entre o apice do rochedo e as meninges. Eis a razão porque, na opinião de Eagleton todos estes metodos classicos de esvasiamento do rochedo, Kopetzky, Kopetzky-Almour, Ramadier ou Streit deverão ser precedidos da ligadura da carotida correspondente. Este deverá ser o modo de expor suficientemente o apite do rochedo e seguir o trajeto da infecção.
Tambem Kopetzky chama a atenção para um erro que tem atrazado e complicado o problema das petrosites. Na opinião deste autor, excepção feita de Eagleton, como aliás nós estamos fazendo vêr, a imensa maioria dos otologistas têm tratado todas as lesões do rochedo como identicas e semelhantes; o valor relativo das diferentes terapeuticas, sejam cirurgicas ou conservadoras, têm, sido considerado sem uma compreensão exata do verdadeiro substractum patologico da lesão. Eis a razão pela qual lhe repugna dividir os tratamentos em conservadores e radicais; deverá apenas existir um tratamento racional e para cada caso.
No tocante á cura expontanea das petrosites, ha muitos outros autores que compartilham do otimismo de Eagleton; citaremos Voss, Baldenweck, Ruttin, Neumann, Sears, Perkins, Coates, Ersner Myers e outros.
Já em relação a Almour é preciso seguil-o muito de perto para perceber a realidade do seu pensamento. Embora ainda o ano passado no Canadá tenha tambem admitido a existencia de casos que respondem favoravelmente á simples mastoidectomia; deixa a impressão final de que a sua tendencia cirurgica tal como se externou em 1930 é ainda manifesta. Divide as petrosites, de acôrdo com Kopetzky, em nada menos de 6 grupos, segundo a sua posição dentro do rochedo e relativamente ao labirinto, aconselhando esta ou aquela técnica de alargamento de fistulas e de lavagens e injeções como o lipiodol. As apicites são separadas completamente, recomendando ora a sua propria técnica, ora a de Ramadier.
Seydell conseguiu coligir dados sobre uma serie notavel de nada menos de 41 casos de petrosite, que nos pode proporcionar bons ensinamentos. Em alguns doentes procedeu-se a uma simples mastoidectomia; para outros foi necessaria uma segunda e até mesmo uma terceira, sendo esta ultima ás vezes radical outras não. Em outros casos se foi mais longe: tambem o rochedo foi curetado por uma qualquer das técnicas classicas, Almour, Ramadier, Kopetzky ou Streit.
No balanço final do que fornece a literatura verifica-se que ainda estamos muito longe da uniformidade. A serie de Seydell demonstra concludentemente que ha casos bons e maus de um e de outro lado, seja abrindo só a mastoide ou invadindo tambem o rochedo. No fim, aceitamos plenamente o rigor do pensamento de Eagleton, que ainda em Setembro ultimo, ha dois vezes portanto, afirmou que a cirurgia dos ossos da base do craneo e o tratamento das meningites otiticas e nasais está ainda em sua infancia.
Vejamos pois como evoluiu o meu caso.
Apesar-de alguma relutancia por parte da paciente em face da indicação operatoria, tentando ainda um tratamento por mais dois dias, como continuassem a febre e as dores retro-oculares, forcei a situação, fazendo vêr o perigo porque passava a meninge, e a 9 de Junho, 1 7 dias depois do aparecimento da primeira dôr no ouvido operei-a. O aspeto da mastoide confirmou in totum a radiografia: toda a apofise congesta da ponta á base, mas sem supuração. O antro de dimensões muito dilatadas e repleto de granulações. Estas eram tão grandes que até provocaram um equivoco interessante. Suspeitando eu a presença de estreptococus mucosus e retirando por isto material, o colega do laboratorio, ignorando a necessidade de exame bacteriologico e iludido pelas dimensões da granulação inclui-a afim de realisar cortes histologicos, assim se perdendo a natureza do germen. Tanto a temperatura como as dôres oftalmicas desapareceram rapidamente; o trismus e a paresia do facial não os acompanharam nesta rapidez, mas no fim de tres dias não havia deles mais vestigio.
Convalescia a paciente em bôas condições, quando 21 dias depois da operação, para o nosso grande desapontamento volta á acena toda á sintomatologia: dôres nos ouvidos, oftalmalgias e dificuldade em abrir a boca. Apenas a temperatura não subia até 38,5 como da primeira vez, ficando em 37,6. Duas hipoteses tinham de ser admitidas: ou uma falha na primeira operação, tendo escapado á curetagem alguma celula remota, ou um recrudescimento dos fenomenos atribuidos ao rochedo. Em qualquer caso impunha-se uma revisão do campo cirurgico. Reoperei. O aspeto não permitiu criticar o que se havia feito da primeira vez; mas por via de duvida, progredi muito para tráz, curetando celulas retrosinusais talvez já no occipital completamente sãs. Tal como na primeira operação, todos os sintomas desapareceram com rapidez, com apurada curetagem do antro.
Desta feita, tomei a precaução de não fechar a ferida e não permitir uma cicatrisação muito rapida, apesar de não haver quasi corrimento algum, sempre me lembrando de que a estatistica de Seydell cita casos de tres operações e até de quatro. Os fatos vieram me dar razão, porque 20 dias depois de novo se queixava a paciente dos seus primeiros padecimentos: outra vez as dores no ouvido, e oftalmalgias. Durante muitos dias, por mais de uma semana, tentei ainda um tratamento conservador. Como entretanto aparecesse tambem alguma temperatura, 37, 5, resolvi, pela terceira vez inspeccionar internamente a mastoide, com intenção de, si necessario ampliar o que havia sido feito, realisando meio de nos certificarmos de existência ou não da fistula. Considerando porém que corrimento, si havia era insignifificante, o bom resultado das duas primeiras curetagens e o ótimo aspecto interior da ferida, pela terceira vez limitei-me a desafogar o antro. Isto passou-se a 29 de Julho, portanto mais de três meses e meio, e até a presente data continuam ótimas as condições da paciente. Espero não ter mais necessidade de ir além.
O relato destes fatos coincide com tres ou quatro das observações coligidas por Seydell.
Muito discernimento é necessario para um julgamento definitivo deste caso.
A primeira impressão será de uma antrite mal curetada e que exigiu reparações; uma segunda qualificará de precipitações as revisões do campo cirurgico.
Retrucarei á primeira delas, que de acordo com que já citei a oftalmalgia é sintoma patognomico das afecções do rochedo, nada tendo de interesse com as inflamações do antro; argumentarei mais que Eagleton, recomenda muita atenção para um facial preguiçoso sob tais contingencias; e que é dificil compreender a coincidencia de um radiologista chamar a atenção para o rochedo quando desconhece detalhes de anamnese; e o trismus, que desapparece com a operação para depois voltar?
Si se criticarem as revisões, a minha defeza é facil. Podemos ser levado a erro pelo nervosismo de uma paciente, mas febre não é elemento que se possa sofismar. Aliás, fico muito a vontade, porque encaixo a minha observação na estatistica de Seydell, rica de casos semelhantes.
Em ultima analise sou propenso a acreditar que de fato houve inflamação no rochedo, quiçá mesmo uma fistula pequena desembocando no antro; a operação com as suas duas revisões promoveram o descongestionamento e a cura. Admitida a hipotese de uma existencia de fistula, as primeiras curetagens do antro teriam aberto o seu pertuito mas a exuberancia de granulações que se formavam, de novo tornaram a drenagem insuficiente; só a terceira e ultima curetagem teve um valôr definitivo.
Seria este o meu modo de interpretar. Aliás em materia de patologia do rochedo, é de bôa prudencia ficar no campo das suposições, e quem quizer de tanto se convencer que compulse o relatorio da American Otological Society reunida em Toronto no ano passado. Esteve em conclave toda a elite da especialidade nos Estados Unidos. Os processos inflamatorios do rochedo foram lá focalisados sob todas as perspectivas imaginaveis tanto clinicas como radiologicas; mais uma vez demonstrou-se que as suas osteomielites pódem ter côres perfeitamente diversas do quadro classico de Gradenigo. No tocante porém aos alicerces da terapeutica, será fundamental conhecer as objecções de natureza embriologica opostas por Eagleton á orientação classica, articuladas com o conceito de Kopetzky: as inflamações do rochedo não são semelhantes entre si e portanto não ha uma orientação que a todas se possa aplicar. Nada de normas conservadoras ou radicais; o sucesso dependerá da observação, da experiencia e do bom senso.
(1) Trabalho apresentado á Secção de Oto-rino-laringologia da Associação Paulista de Medicina, em 17 de Novembro de 1936.
|