ISSN 1806-9312  
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522 - Vol. 67 / Edição 5 / Período: Setembro - Outubro de 2001
Seção: Relato de Casos Páginas: 733 a 736
Transtornos factícios por procuração. Discussão de um caso
Autor(es):
Nelson Caldas 1,
Silvio Caldas Neto 2,
Clístenes R. Oliveira 3,
Mariana C. Leal 4,
Silvana Moraes 5

Palavras-chave: doenças factícias, transtornos factícios, síndrome de Münchausen

Keywords: factitious diseases, factitious disorders, Münchausen's syndrome

Resumo: Os autores descrevem um caso de síndrome de Münchausen (transtorno factício) por procuração, descrita por Meadow em 1977. Discutem os vários aspectos da síndrome e suas dificuldades diagnósticas, quando aconselham alto índice de suspeição e serenidade do médico.

Abstract: The authors presented a case of Münchausen's syndrome by proxy (factitious disorders), described by Meadow in 1977. We discussed the various aspects of the syndrome and its diagnostic difficulties, requiring deep suspicion and serenity from the physician.

INTRODUÇÃO

Em 1951, Ascher1 descreveu a síndrome a que ele deu o nome de síndrome de Münchausen. O Barão de Münchausen, Karl Friedech Hieronymus, foi um militar alemão que combateu os turcos em 1740. Ficou famoso por suas histórias exageradas e falaciosas sobre sua atuação na guerra e também de suas caçadas. Até hoje os caçadores têm fama de freqüentemente faltarem com a verdade, quando contam suas proezas, por vezes até verdadeiras e testemunhadas, devido à fama do Barão.

A síndrome congrega pacientes simuladores ou indutores de doenças em si mesmos, pelas mais variadas razões, incluindo diversos tipos de vantagem ou por pura psicopatia.

Após a publicação do referido autor, o meio médico ficou mais atento para este tipo de conduta, em verdade relatado desde a idade média. Em 1977, Meadow5 descreveu a mesma síndrome, não pela simulação de doenças em si mesmo, mas em terceiros, recebendo por isto o adicional "por procuração". Nasceu assim a síndrome de Münchausen por Procuração (SMP).

São casos raros e de diagnóstico freqüentemente difícil. Deixa de sê-lo, entretanto, se tivermos um alto índice de suspeição e enquadrarmos certas histórias suspeitas em um grupo de risco, a ser melhor avaliado, como já referiram Caldas Neto e colaboradores3, em 1992.

Outrossim, a divulgação dos casos através de publicações deve ser obrigação de todos os colegas, a fim de que eles aflorem em sua verdadeira incidência. Assim, poderíamos reduzir os dissabores para os médicos, impedir que a suposta doença se transforme em tragédia e o simulador em criminoso, talvez assassino.

Resumo bibliográfico

Após a publicação de Meadow5, várias outras se sucederam. Bourchier2 relatou caso de hemorragia auricular e Rosenberg7, em 1987, realizou revisão da literatura no assunto, mostrando grande freqüência dos casos de simulação de sangramentos pela mãe do paciente, utilizando seu próprio sangue, de carne crua ou corantes, dando uma boa dimensão do assunto.

A SMP descrita por Meadow5 foi catalogada como transtorno factício por procuração na Tabela-19-3 do DSM-IV (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders), referido por Jones4 em 1999. Psicopatia, portanto.

DiBiase6 descreveu caso dramático de SMP em um de seus pacientes, portador de colesteatoma operado, que por pouco não teve êxito letal, impondo ao cirurgião uma grande angústia e, ao leitor, suspense cinematográfico. Salienta a necessidade de afastar-se o responsável pelo paciente de sua companhia em todos os casos de suspeita de SMP, que, segundo Jones4, em cerca de 95% é a mãe, referindo-se secundariamente ao pai e a babá.

Diagnóstico diferencial

O diagnóstico diferencial é feito com a doença que o paciente pretende simular. Vai depender do índice de suspeição do médico e da performance do simulador. Jones4 chama a atenção para as histórias fantasiosas e dramáticas, repletas de detalhes exuberantes e às vezes insultuosamente inverídicos. É a chamada "pseudologia fantástica". Às vezes, o simulador inclui verdades na história do paciente, como forma de despistar desconfianças. O afastamento do suspeito do paciente, coincidindo com a melhora ou desaparecimento dos sintomas, torna o diagnóstico da SMP extremamente provável. Nem sempre isso é fácil de se conseguir, especialmente porque, na maioria dos casos são mãe e filho pequeno os protagonistas da farsa.

APRESENTAÇÃO De CASO CLÍNICO

W. W. S. B., do sexo masculino, com dois anos e cinco meses de idade. Paciente foi atendido no Hospital da Aeronáutica, trazido pelos pais, com história de otorragia bilateral, além de gengivorragia e febre, há quatro dias. Examinado pelo pediatra de plantão, este encontrou monilíase oral, não conseguindo, na circunstância, uma boa otoscopia, identificando no entanto rolha de cera e coágulos nos condutos auditivos. Com diagnóstico de suposição de OMA, o paciente foi internado e medicado com cefalexina oral e nistatina tópica.

Durante o internamento de três semanas, a mãe acompanhou o paciente na enfermaria, relatando a médicos e paramédicos otorragias alternadas entre OE e OD, acompanhadas de vômitos, sempre à noite, testemunhados por sua vigília integral. Registre-se que a referida senhora tinha o hábito de permanecer na enfermaria nessas horas, apenas vestida com roupas íntimas, chamando a atenção de médicos e paramédicos por sua inusitada conduta. A otoscopia realizada pelo otorrinolaringologista mostrava coágulos nos condutos, que, aspirados, exibiam tímpanos normais. Coagulograma, CT de ossos temporais e angioressonância foram normais, tendo o paciente recebido alta para tratamento ambulatorial.

Na manhã seguinte, quando deveria deixar o Hospital, a mãe do paciente alerta para grande quantidade de sangue encontrada nos lençóis da criança, desproporcional a qualquer otorragia espontânea jamais vista, que não fosse de origem tumoral.

O paciente foi encaminhado junto com sua genitora, ao Hospital das Clínicas da UFPE, para investigação, com suspeita de SMP.

O paciente foi internado para investigação otoscópica sob microscopia e anestesia geral. Já na ante-sala cirúrgica, a genitora convocou a equipe médica a fim de mostrar sangramento auricular bilateral no paciente. Notou-se que ambas as conchas mostravam-se repletas de coágulos escuros.

Após inalação anestésica com "máscara aberta" e sob microscopia, restos de coágulos recentes e antigos na forma de crostas foram aspirados e lavados no ouvido direito. O conduto auditivo mostrava-se absolutamente normal. A membrana timpânica dava a impressão de estar abaulada pela insuflação anestésica. Miringotomia exploradora mostrou caixa timpânica com mucosa normal e sem fluido. Um tubo de ventilação carretel tipo Shepard foi inserido. Os mesmos achados e os mesmos procedimentos foram realizados no ouvido esquerdo.

Ao sairmos da sala cirúrgica e nos dirigirmos para a genitora do paciente, a mesma nos surpreendeu com a queixa de sangramento pelo seu ouvido esquerdo, provavelmente devido à agressão antiga de seu marido, segundo informava. De imediato e com alguma relutância da nova paciente, nós a levamos para outra sala de cirurgia, onde, sob microscopia, examinamos seu ouvido esquerdo, encontrando-se apenas sangue de aspecto recente no meato acústico externo, com absoluta normalidade do conduto e membrana timpânica.

Esclarecemos à paciente que tínhamos colocado "aparelhos" nos ouvidos de seu filho, para identificar a origem de seus sangramentos e programamos seu retorno dentro de mais uma semana, o que não ocorreu até o presente, quatro meses depois. Por sinal, a paciente confundiu a nossa explicação da colocação dos tubos de ventilação com a de "microcâmeras" de filmagem e provavelmente isto ajudou em seu desaparecimento e desistência de simulações.

DISCUSSÃO

Jones4 explica a atitude do simulador por procuração, chamado também de perpetrador, pela necessidade psicológica de assumir o lugar do paciente de uma forma indireta. Vários tipos de carência o motivaria.

Estudos psiquiátricos atribuem ao perpetrador um perfil de inteligência e carinho com o paciente. Entretanto, em outras ocasiões, outras motivações, como por exemplo a financeira, poderiam estar presentes, fugindo do quadro da síndrome genuína psicótica, de acordo com a Tabela-19-3 do DSM-IV4.

Em nosso caso, a suspeita mostrava dificuldades financeiras e, aparentemente, tinha interesse na permanência da criança no hospital, com ela como acompanhante. Uma das características dos perpetradores é a de ocultar sua atuação no processo de simulação a qualquer custo. Raramente confessa; e, quando flagrado de maneira incontestável, pode cometer suicídio, especialmente se pertencer ao grupo psicótico genuíno, sem interesses materiais envolvidos.

Essa, decididamente, não era característica de nosso perpetrador. Não agia inteligentemente, exagerou na simulação dos sangramentos, de maneira absolutamentesuspeita. Andava semi-despida pela enfermaria, relacionando-se de maneira vulgar com os funcionários. Não fazia o gênero "ideológico" do psicopata que se preza. Jamais cometeria suicídio se fosse flagrada, como acabou praticamente sendo, ao explorarmos o ouvido de seu filho e o seu próprio, sem nada encontrar. Achamos ser o seu transtorno do tipo misto. Além da psicopatia, outro fator interfere.

Outra característica do perpetrador é permanecer o maior tempo possível junto ao paciente. Assim, exercerá melhor seus propósitos, além de presenciar as providências médicas tomadas monitorando a eficiência das suas. Esta característica serve exatamente para estabelecimento do diagnóstico da SMP, pois, afastando-se o suspeito do paciente, logo seus sintomas desaparecem. Não foi possível, no primeiro hospital onde o filho esteve internado, separá-lo da mãe, por recusa formal desta.

COMENTÁRIOS FINAIS

A síndrome de Münchausen clássica, descrita por Ascher1, acontece geralmente em adultos a partir dos 20 anos de idade, e o médico dever estar sempre alerta para a possibilidade de que ela ocorra. Os suspeitos devem ser tratados com inteligência e bom senso, para não perceberem que foram incluídos em um grupo de risco e não se previnam aperfeiçoando sua simulação. Na SMP, tudo deve ser conduzido de forma semelhante, mas o aspecto emocional pode interferir negativamente. Trata-se quase sempre de uma criança utilizada, e às vezes maltratada pela própria mãe, de maneira direta ou través da indução de exames desnecessários e, às vezes, invasivos, como tomografias, endoscopias e cirurgias exploradoras. Quando a suspeita diagnóstica de SMP é considerada, o aspecto de crueldade com a criança é sempre revoltante - e a psicopatia pode ser esquecida em favor da ira.

A indignação dos envolvidos no tratamento da criança pode prejudicar a investigação restante, às vezes provocando a evasão do suspeito junto com o paciente. E, melhor treinado, ele não cometerá mais o mesmo erro que cometeu e o deixou sob suspeita, quando procurar outro médico. Freqüentemente, deixa nome e endereço tão inverídicos quanto à doença que simulou. O suspeito deve ser tratado com cordialidade e respeito devido a um psicopata, não só por questão ética, mas para chegar-se com mais facilidade à comprovação diagnóstica, que se procura, sem assustá-lo, muito menos "linchá-lo" prematuramente. Transformando-se em verdadeiro detetive, o médico tem que ser criativo e prudente. Um olho no suspeito, o outro na criança. Os dois, na possibilidade de um diagnóstico equivocado, falso negativo, prejudicando a criança, ou falso positivo, complicando a vida do médico, pois o indignado, agora, será o suspeito.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. ASCHER, R. - Münchausen's syndrome. Lancet, 1:339, 1951.
2. BOURCHIER, D. - Bleending ears: case report of Münchausen syndrome by proxy. Aust. Paediatr. J. 19:256-7, 1983.
3. CALDAS NETO, S.; DUPRAT, A.C.; ALMEIRA, R.R. e CALDAS, N. - Doenças fictícias em otorrinolaringologia. Caderno de ORL e Cirurgia de Cabeça e Pescoço. Folha Médica, 104 (5):177, 1992.
4. JONES, R.M. - Transtornos Factícios. In: KAPLAN, H.J. & SADOCK. B. J. - Tratado de Psiquiatria 6ª Ed. Vol. 2, Porto Alegre, 1382-90, 1999.
5. MEADOW, R. - Münchausen by proxy: the hinterland of Child abuse. Lancet, 2:343, 1977.
6. P. DiBIASE, P.; TIMMIS, H.; BONILLA, A.J.; SZERMETA, W. & POST, C. - Münchausen syndrome by proxy complicating ear surgery. Arch. Otolaryngol. Head and Neck Surg. 122:1377-80, 1996.
7. ROSENBERG, D. - Web of deceit: a literature review of Münchausen syndrome by proxy. Child. Abuse Negl. 11:547-63, 1987.




1 Professor Titular de Otorrinolaringologia da UFPE.
2 Professor Adjunto de Otorrinolaringologia da UFPE.
3 Residente (R3) de Otorrinolaringologia HC/UFPE.
4 Residente (R2) de Otorrinolaringologia HC/UFPE.
5 Segundo Tenente - Médico da Aeronáutica - PE.

Disciplina de Otorrinolaringologia do Departamento de Cirurgia da UFPE.

Endereço para correspondência: Nelson Caldas - Avenida Boa Viagem, 2514 - Aptº 1202 - Boa Viagem - 51020-000 Recife /PE - Telefone/Fax: (0xx81) 3326-5746.

Artigo recebido em 13 de fevereiro de 2001. Artigo aceito em 22 de fevereiro de 2001
Indexações: MEDLINE, Exerpta Medica, Lilacs (Index Medicus Latinoamericano), SciELO (Scientific Electronic Library Online)
Classificação CAPES: Qualis Nacional A, Qualis Internacional C


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