INTRODUÇÃOA Paracoccidiodomicose, também conhecida como blastomicose brasileira, blastomicose sul americana ou moléstia de Lutz, foi observada pela primeira vez no Brasil em 1908, por Adolpho Lutz, a quem chamou a atenção as lesões encontradas na boca dos pacientes. É uma micose sistêmica causada por um fungo dimórfico, autóctone da América Latina, encontrada principalmente no Brasil, Colômbia e Venezuela.
Em nosso país, sua incidência é maior na Região Sul, Sudeste e Centro-Oeste. No Paraná, assim como em outros estados brasileiros, a doença é endêmica entre a população da zona rural, sendo importante sob o ponto de vista de saúde pública, por acometer indivíduos em sua fase de plena atividade produtiva. É mais freqüentemente encontrada em pessoas entre a quarta e quinta décadas de vida, sendo uma patologia predominantemente do sexo masculino, em indivíduos comumente ligados à atividade agrícola, podendo também ocorrer em crianças de ambos os sexos e adolescentes2,5,6,8,10,11,12,13,16.
A doença envolve primariamente os pulmões pela inalação, podendo posteriormente disseminar-se para vários órgãos e sistemas, originando lesões secundárias que ocorrem freqüentemente nas mucosas, nos linfonodos, na pele e nas adrenais5,10,19.
O conhecimento da paracoccidiodomicose apresenta grande interesse estomatológico, uma vez que até recentemente acreditava-se ser a orofaringe a porta de entrada do fungo, devido às inúmeras manifestações aí encontradas. Por essa razão, na maioria dos casos, os primeiros sinais e sintomas da doença irão conduzir o paciente ao dentista ou ao otorrinolaringologista. As regiões da boca e pescoço constituem áreas importantes da manifestação da doença, visto que a mucosa bucal fornece substrato à vida saprófita do fungo em solo unicamenterico em proteínas, em locais onde as variações climáticas são mínimas. Nesses ambientes, os fungos crescem na fase micelial, produzindo conídeos que sobrevivem por vários meses, possibilitando a dispersão aérea.
Inalados pelo homem, chegam até os alvéolos pulmonares, dando origem a uma infecção sub-clínica que poderá disseminar-se para outros órgãos por via linfo- hematogênica14,17,18,23.
A manifestação clínica mais comum é a ocorrência da doença crônica em pacientes do sexo masculino, na proporção de 10 homens para uma mulher, entre 30 e 50 anos de idade, quase sempre fumantes e/ou etilistas crônicos, de condições higiênicas, nutricionais e sócio-econômicas precárias, sendo que a baixa imunidade favorece o avanço da doença. A diferença de incidência por sexo é atribuída a fatores hormonais. O Paracoccidioides brasiliensis possui receptores de estradiol em sua membrana citoplasmática, que impede a transformação da fase filamentosa em leveduriforme. É consensual que na mulher, endocrinologicamente madura e com níveis adequados de estrogênios, haveria dificuldade de transformação dos conídeos infectantes em leveduras, devido ao efeito protetor dos hormônios femininos7,8,20,22.
As lesões da mucosa oral, faringe e laringe são muito comuns e resultam da disseminação hematogênica, a partir do foco primário pulmonar. Na boca, nota-se estomatite moriforme descrita por Aguiar Pupo15, também denominada pápulo-erosiva. Trata-se de estomatite de evolução lenta, exulcerada, com fundo de aspecto de finas granulações vermelhas e múltiplas (Foto 1). Às vezes podem apresentar-se também sob a forma de ulceração mais profunda (Foto 2). Predominam nas regiões labiais da mucosa jugal, gengivais, língua e palato, sobrevindo além das lesões exulcerdas, dores, sangramento, mobilidade dos dentes, sialorréia, edema. O acometimento da laringe e cordas vocais ocasiona diversos graus de disfonia e mesmo afonia. As lesões iniciais, principalmente na língua podem simular carcinoma.
O exame anatomopatológico é obrigatório para o diagnóstico definitivo e diferencial. A identificação do agente etiológico pode ser obtida por visualização da fase leveduriforme do fungo em material colhido por raspagem das lesões, no escarro ou por biópsia, sendo este sem dúvida - o método mais confiável. Diversas técnicas de coloração histológica são utilizadas, entre elas a Hematoxilina-Eosina (HE), Periodic Acid Schiff (PAS) e a impregnação pela prata (Gomori-Grocott1,4,9,16,21).
Devido à falta de notificação compulsória e um conhecimento completo da epidemiologia dessa doença, objetivamos comparar nosso perfil epidemiológico e demográfico, com a literatura pertinente, e analisar a sensibilidade dos corantes usados na histopatologia, HE, PAS e Grocott.
MATERIAL E MÉTODOA amostra estudada constou da revisão de 187 prontuários de pacientes do Ambulatório de Micoses Profundas do Serviço de Doenças Infecto-Contagiosas do Hospital das Clínicas da Universidade Federal do Paraná, no período de 1985 a 1988, compreendendo portadores de paracoccidioidomicose oral comprovada por biópsia das lesões.
Foram analisadas as características clínicas e demográficas dos pacientes referentes à procedência, sexo, idade, naturalidade, profissão, hábitos de higiene, tabagismo, etilismo e estado de conservação dentária, com o objetivo de traçar um perfil epidemiológico da doença. Levaram-se em consideração também o exame físico e a descrição das lesões orais.
Construídas tabelas buscando avaliar as variáveis existentes, foram revistos no Serviço de Anatomia Patológica da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Paraná os blocos de vinte casos de biópsia, corando-se as lâminas pelos métodos: HE, PAS e Grocott, para evidenciação do Paracoccidioides brasiliensis (Foto 3).
Devido à natureza dos dados coletados, procedeu-se ao seu tratamento estatístico descritivo, com a distribuição da freqüência das diversas variáveis analisadas no estudo, usando o software Epi-Info, que forneceu o resultado estatístico. Não houve necessidade de serem aplicados testes estatísticos, uma vez que os valores encontrados não mostraram diferenças significativas com relação à literatura.
Foto 1. Lesão aspecto finamente granulomatoso, com pontilhados avermelhados, em lábio superior e gengiva superior.
Foto 2. Lesão ulcerada em borda lateral de língua, observa-se também, lesão finamente granulomatosa em toda a extensão anterior do dorso lingual.
Foto 3. Corte histológico representativo de lesão granulomatosa contendo células epitelióides e células gigantes do tipo "corpo estranho" em meio à qual observam-se organismos arredondados, de diâmetros variados, com dupla cápsula refringente, e brotamento lateral (H&E, X400).
RESULTADOSDos 187 pacientes, 167 (89,30%) eram do sexo masculino, enquanto que 20 (10,70%) eram do sexo feminino. Quanto à idade, observamos que a maior freqüência situa-se na quarta e quinta décadas (Tabela 1).
Tabela 1. Distribuição por idade.
Mais de 50% dos pacientes (52,94%) eram procedentes do interior do Paraná demonstrando que esta é uma região endêmica da afecção. Dos 187 prontuários analisados, 84 (44,03%) eram de agricultores (Tabela 2), relatando 376 queixas principais, sendo que alguns pacientes apresentavam mais de uma. A mais freqüente foi perda de peso, seguida de dispnéia (Tabela 3).
Tabela 2. Distribuição por profissão.
Tabela 3. Distribuição por queixa apresentada.
Quanto à localização das lesões bucais e faríngeas (Tabela 4), houve predomínio da região labial em 58 casos (19,27%), seguida da orofaringe em 42 relatos (13,95%).
Tabela 4. Distribuição por local da lesão.
Quanto à forma da lesão, 85 (41,46%) não apresentam lesão visível. Das visíveis, as mais freqüentes foram a ulcerada (24,88%) e granulomatosa (14,15%), seguidas pela moriforme (7,80%) (Tabela 5).
Tabela 5. Distribuição por forma da lesão.
Tabela 6. Distribuição das lesões.
Dos 187 pacientes, 164 (86,77%) não apresentam patologia associada. No entanto, em cinco (2,65%) foi diagnosticada tuberculose pulmonar concomitantemente; e outros cinco (2,65%) candidiose - com 140 (72,54%) não apresentando linfonodos palpáveis; e 47 (27,46%), os apresentavam em uma ou mais regiões, principalmente em cadeias cervicais, bilateralmente.
Dos 187 pacientes, 127 (67,91%) admitiram uso de bebidas alcoólicas, enquanto que apenas 60 (32,09%) negaram o alcoolismo. Quanto ao tabagismo, 117 (62,57%) fumavam e 11 (5,88%) não responderam o quesito, não havendo informações sobre os demais 59 pacientes (31,55%).
Dos 187 prontuários, apenas 52,08% registraram as condições dentárias dos pacientes. Dessas, 23,33% apresentaram a dentição em péssimo estado, e 28,75% tinham algum problema gengival.
Quanto à distribuição das lesões provocadas pela doença, alguns apresentavam um ou mais locais de envolvimento. O envolvimento pulmonar predominou em um total de 160 (51,78%) dos casos analisados (Tabela 6).
DISCUSSÃOPor não ser uma doença de notificação compulsória, torna-se difícil estabelecer a correta prevalência da paracoccidioidomicose no Brasil. Os dados existentes sobre sua distribuição geográfica e epidemiológica são fragmentários. Sua forma clínica mais comum reside nas lesões crônicas com alteração progressiva do estado geral, afetando com freqüência os pulmões e a cavidade oral. Daí, o conhecimento adequado desta micose pela classe otorrinolaringológica e odontológica ser relevante, sendo que o polimorfismo do seu quadro clínico implica em dificuldades no diagnóstico12.
Nos resultados encontrados no presente trabalho, o sexo, a idade, a procedência e a profissão foram fatores determinantes na descrição do perfil epidemiológico e demográfico da doença, e é comparável com a literatura pertinente.
Dos 20 pacientes do sexo feminino, dois (10,00%), encontravam-se entre as idades de 13 e 14 anos, fase em que a imaturidade sexual aumenta a incidência nessa faixa.
Dos 187 casos, observamos que a maioria (52,94%) era oriunda de regiões agrícolas2,6,7,8,11, coincidente com as constatações da literatura.
A maior incidência das lesões, nos lábios, gengivas, palato e língua estão em concordância com a literatura (Tabela 4).
Nas lesões sistêmicas da forma crônica da micose, os pulmões e os linfonodos, além da mucosa oral e orofaringe, são as regiões mais envolvidas.
Em nossos casos, ocorreram 160 (51,78%) nos pulmões, 115 (37,22%) em mucosa bucal ou orofaríngea, e 53 (27,46%) envolviam um ou mais linfonodos, concordando com a literatura.
Dos 187 pacientes 117 (62,57%) eram tabagistas. A presença de tão alto número de fumantes indica uma relação desse hábito e a paracoccidioidomicose, concordando com a literatura. Porém, em relação ao etilismo, 127 (67,91%) negaram o uso do álcool, o que difere dos dados por nós consultados, e pode ter ocorrido por única falha no interrogatório ou mudanças no perfil desta amostra.
Foram revistas as lâminas de 20 casos, e a identificação morfológica com posterior contagem de fungos foi positiva em todas, com coloração pela HE, PAS e Grocott(impregnação pela prata). Esta última mostrou-se superior ao fungo da paracoccidioidomicose, concordante com os estudos realizados avaliando a sensibilidade da coloração Gomori-Grocott, em raspados de lesões bucais pelo exame citológico3.
Este método detecta a presença de glicogênio e mucina, possibilitando a liberação de grupos aldeídos, resultantes do pré-tratamento com ácido crômico. Subseqüentemente, ocorre a detecção de redução do complexo alcalino pelo nitrato de prata, já que a parede celular do fundo é rica em polissacarídeos. Esse fenômeno permite ao observador uma identificação mais clara e segura do Paracoccidioides brasiliensis4,9, constituindo-se em técnica vantajosa pela facilidade de identificação e visualização do fungo, além do baixo custo e simplicidade de execução3 (Foto 3).
Em decorrência da revisão dos prontuários, falhas podem ocorrer na descrição das lesões bucais, tanto quanto à sua localização quanto na multiplicidade e aspecto morfológico. Esse achado demonstra que existem falhas propedêuticas no exame clínico que devem ser sanadas para melhores estudos epidemiológicos. Apesar dessas falhas, não observamos mudança do perfil epidemiológico e demográfico em nosso estudo, comparado com a literatura pertinente.
Em síntese, podemos concluir que:
1) Na epidemiologia da paracoccidioidomicose, constituem grupo de risco, os lavradores do sexo masculino, com idade entre 40 e 60 anos, portadores de má higiene bucal.
2) A técnica da coloração pela prata (Grocott) mostrou, ao exame histopatológico, alto grau de sensibilidade, sendo mais efetiva que as técnicas de HE ou PAS.
3) Pela riqueza de lesões oriais encontradas na nossa amostra, sugere-se a criação de equipes médicas e odontológicas multidisciplinares, nas regiões de risco, para contribuir mais efetivamente com o diagnóstico e tratamento desta afecção.
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1 Mestre em Cirurgia de Cabeça e Pescoço, Hospital Heliópolis, Hosphel, São Paulo
2 Doutor em Moléstias Infecto-Parasitárias, Hospital das Clínicas, Universidade Federal do Paraná
3 Doutor em Medicina, Hospital Heliópolis, Hosphel, São Paulo
4 Professor Docente Livre, Hospital Heliópolis, Hosphel, São Paulo
Trabalho realizado no Serviço de Moléstias Infecto-Parasitárias do Hospital das Clínicas da Universidade Federal do Paraná
Endereço para correspondência: Prof. Dr. Abrão Rapoport, Pça. Amadeu Amaral, 47 - cj. 82 - Paraíso, CEP - 01450-020 - Telefax (0XX11) 273-8224. E-mail: cpgcp.hosphel@attglobal.net
Artigo recebido em 13 de março de 2001. Artigo aceito em 20 de abril de 2001.