INTRODUÇÃOPais e educadores dão pouca importância às alterações vocais na infância, o que faz com que a incidência da disfonia na população pediátrica seja ainda controversa na literatura.
Estudos epidemiológicos realizados em escolas referem uma incidência de disfonia infantil entre 6 e 23,4%, dependendo da localização da escola, aspectos variados e de uma série enorme de considerações metodológicas2. Entre os diferentes estudos, podemos citar Pont (1965), que encontrou uma incidência de 9,1%; Baynes (1966), com 7%; Senturia & Wilson (1968), com 6%; Silverman & Zimmer (1974), com a incidência mais elevada, em 23,4%; Yari e col. (1974), com 13% de rouquidão aguda e 5% de rouquidão crônica; e Warr-Leeper e col. (1979), com 7% de incidência de disfonia infantil.
A etiologia da disfonia infantil pode variar desde afecções autolimitadas, como as laringites agudas virais, até lesões incapacitantes e com risco de vida, como os tumores e estenose laríngea em grau variado9.
Entretanto, a observação clínica comum, praticamente com base universal, é de que em média, 70% das crianças roucas apresentam nódulo vocal. O pico de incidência ocorre entre os 5 e 10 anos de idade, sem diferença quanto ao sexo, embora se observe uma maior tendência no sexo masculino, provavelmente pela exigência social de um comportamento mais agressivo nesse sexo. Os fatores causais da disfonia podem ser agrupados em 5 grupos: hábitos de vida inadequados, fatores ambientais, físicos e psicológicos, estrutura da personalidade, inadaptação fônica e fatores alérgicos, dentre outros.
O diagnóstico das disfonias na infância tem sido facilitado, nos últimos anos, pelo desenvolvimento de métodos diagnósticos de fácil execução técnica, como a videolaringoscopia9.
O presente estudo tem o objetivo de avaliar a incidência das diversas lesões laríngeas nos exames de videolaringoscopia de crianças com queixas vocais, realizados no Setor de Laringologia do Serviço de Otorrinolaringologia do Hospital do Servidor Público Estadual de São Paulo, no período de um ano, entre março de 1999 a março de 2000. Dados concernentes à incidência quanto ao sexo e idade; ao tipo de lesão laríngea, se isolada ou associada; à coaptação glótica e à presença de sinais sugestivos de refluxo gastresofágico (RGE) apresentam interesse especial neste levantamento.
MATERIAL E MÉTODOMATERIAL
Foram reavaliados todos os exames de videolaringoscopia de crianças com queixas vocais, realizados no Hospital do Servidor Público Estadual de São Paulo, durante o período de um ano, de março de 1999 a março de 2000.
A amostra foi composta por 34 exames, sendo 18 meninos e 16 meninas, com idade variando de 4 a 13 anos, com média de 9 anos.
Os exames foram realizados por dois dos médicos pesquisadores, durante a emissão sustentada das vogais "e" e "i", sendo revistos juntamente com todos os pesquisadores. Os diagnósticos clínicos foram baseados na impressão visual das lesões, sendo o nódulo vocal caracterizados como uma lesão de massa exofítica, bilateral, simétrica em localização mas não necessariamente em tamanho, mais ou menos flexível, com certa mobilidade durante a emissão vocal. O cisto vocal é uma lesão mais intra-cordal, uni ou bilateral, podendo ser assimétrica em localização e tamanho, mais rígida e com menor mobilidade durante a emissão vocal.
Foram analisados o tipo de lesão, se isolada ou associada, a coaptação glótica e a presença de sinais sugestivos de RGE. Nesta última avaliação foram considerados como sinais sugestivos: edema retrocricóide, espessamento de mucosa interaritenóidea, hiperemia de região de cartilagens aritenóideas, úlcera e/ou granuloma de região posterior.
Para a videolaringoscopia foram utilizados os seguintes equipamentos:
- telescópio de laringe rígido de 7,0 mm de 70º (RICHARDS WOLF);
- nasofibrolaringoscópio flexível de 3,2 mm (OLYMPUS ENF Type P3);
- fonte de luz Hi-light 250 watts (RICHARDS, SMITH+NEPHEW);
- micro-camêra (RICHARDS WOLF, 5511 1CCD ENDOCAM);
- videocassete (SEMP, X682);
- monitor de vídeo (SONY HR, TRINITON PVM 145 3MD);
- microfone (LENON ML8).
Os exames videolaringoscópicos foram realizados sob anestesia tópica com lidocaína 10%; tendo-se utilizado o telescópio nas crianças colaboradoras e com o nasofibroscópio nas demais; os exames foram registrados em fita VHS.
Tabela 1. Distribuição das 34 crianças quanto a idade; sexo e lesão encontrada / São Paulo, 2001.
RESULTADOSForam reavaliados 34 exames, sendo 18 meninos (53%) e 16 meninas (47%); com idade variando de 4 a 13 anos, com média de 9,47 anos. 18 crianças foram identificadas como portadoras de nódulo vocal, 7 de cisto de prega vocal; 1 criança apresentou o diagnóstico de lesão nodular inespecífica e em 8 crianças o exame foi normal. Os achados encontram-se na Tabela 1.
Das 18 crianças portadoras de nódulo vocal, 9 (50%) eram do sexo masculino e 9 (50%) do sexo feminino, comidade variando de 4 a 13 anos, com média de 9 anos. Em 17 (94%) crianças, o nódulo apresentava-se como lesão isolada; e em 1 (6%) criança o nódulo estava associado a uma micromembrana laríngea anterior. Quanto à coaptação glótica, 12 (67%) crianças apresentavam fenda glótica, sendo 7 (39%) do tipo triangular médio-posterior; 3 (17%) dupla e 2 (11%) triangular posterior. Encontramos sinais sugestivos de RGE em apenas 1 (6%) criança com o diagnóstico de nódulo vocal.
Das 7 crianças portadoras de cisto de prega vocal, 4 (57%) eram do sexo masculino e 3 (43%) do sexo feminino; com idade variando de 10 a 13 anos, com média de 11,2 anos.Em 6 (86%) dos casos, o cisto apresentava-se como uma lesão isolada e, em apenas 1 (14%) caso, a lesão estava associada à presença de vasculodisgenesia na mesma prega vocal. Quanto à coaptação glótica, 6 (86%) das crianças apresentavam fenda glótica, sendo 5 (71%) do tipo irregular e 1 (14%) fenda em ampulheta. Não encontramos sinais sugestivos de REG em nenhuma criança com o diagnóstico de cisto de prega vocal.
DISCUSSÃOAs afecções que atingem a laringe da criança, levando a um quadro de disfonia, podem ser divididas didaticamente em causas infecciosas, inflamatórias, tumorais, paralisia de pregas vocais, congênitas, funcionais e orgânico-funcionais9.
O nódulo vocal é considerado uma lesão que caracteriza uma disfonia orgânico-funcional, sendo a principal causa de alteração vocal em crianças e adolescentes3,4,12.
A apresentação usual do nódulo é de uma lesão de massa, bilateral, simétrica em posição, mas variável em tamanho, localizada na transição do terço médio para o anterior das pregas vocais, particularmente no meio daárea vibratória, ou seja, no ponto de maior amplitude de vibração das pregas vocais, onde ocorre maior contato mecânico de superfície. O nódulo vocal é uma lesão do epitélio das pregas vocais, onde ocorre uma duplicação ou triplicação da membrana basal epitelial.
A presença do nódulo vocal determina uma série de alterações na fisiologia da dinâmica fonatória, como vibrações aperiódicas e irregulares das pregas vocais, devido ao desequilíbrio entre as forças mioelásticas da laringe e as forças aerodinâmicas pulmonares.
A laringe infantil geralmente apresenta nódulos maiores, onde as pregas vocais terão dificuldade em realizar uma coaptação completa à fonação, havendo escape de ar não sonorizado, o que, por sua vez, poderá levar a uma tentativa de compensação através do aumento de tensão muscular e de intensidade vocal.
Vários estudos apontam que o nódulo é a lesão responsável por 38 a 78% das disfonias crônicas em crianças10. O pico de incidência, segundo relatos anteriores, encontra-se entre 5 e 10 anos de idade, não havendo diferença quanto ao sexo, embora a partir dos 15 anos haja um decréscimo quase completo dessa incidência no sexo masculino, tornando-se, na idade adulta, uma doença basicamente restrita ao sexo feminino.
O nódulo vocal foi a lesão mais freqüentemente observada nas crianças com queixa vocal, presente em 18 das 34 crianças (53%) avaliadas. A idade quando do diagnóstico variou de 4 a 13 anos, com uma média de 9 anos, não havendo diferença de ocorrência quanto ao sexo.
Em 12 crianças (67%) a coaptação glótica apresentou-se incompleta, com fenda triangular médio-posterior em 7 casos (39%), triangular posterior em 2 (11%) e dupla em 3 (17%) casos. A fenda triangular médio-posterior é tida como fenda típica do nódulo, provavelmente devido a uma hipertonicidade da musculatura cricoaritenóidea posterior durante a fonação, sendo esta situação mais comum em mulheres e crianças pelo favorecimento do padrão de configuração laríngea destes indivíduos (Belhau & Pontes, 1995). Já a fenda dupla geralmente representa uma fenda triangular médio-posterior com lesão de mucosa associada a edema localizado, uni ou bilateral, que produz o aparecimento de abertura anterior, por questões mecânicas e não musculares.
Quanto à gênese do nódulo, além dos fatores genéticos e constitucionais da formação, o comportamento hiperativo e agressivo, a tendência à liderança e à fala incessante e em intensidade elevada destas crianças podem ser considerados fatores causais, predisponentes ou agravantes da disfonia infantil que deve, portanto, ser considerada sempre multifatorial.
O cisto vocal foi a segunda lesão mais freqüente em nossa casuística, ocorrendo em 7 crianças (21%). Sarfati& Auday (1996) encontraram uma incidência de 29%, em 45 crianças estudadas; já Danoy, Heuillet-Martin e Thomassin (1990), citam uma incidência de 20% de ocorrência de cistos.
O cisto é uma alteração de cobertura da prega vocal, sendo considerado um desvio embriogenético, classificado como uma alteração estrutural mínima por alguns autores3,9. A idade das crianças com cisto vocal, neste estudo, variou de 10 a 13 anos, com média de 11,2 anos, superior à média de crianças com nódulos. De modo semelhante ao nódulo, não observamos diferença na incidência quanto ao sexo.
Em 6 crianças com cisto vocal (86%), a lesão apresentava-se isolada e apenas em 1 caso (14%) estava associada à vasculodisgenesia. Quanto à coaptação glótica, em 6 casos (86%) observamos fenda glótica, sendo 5 (71%) do tipo irregular, não configurando nenhum ajuste muscular associado a esta lesão.
Os cistos localizam-se na lâmina própria da prega vocal, sendo recobertos por epitélio escamoso estratificado e apresentam-se geralmente aderidos às fibras elásticas e colágenas do ligamento vocal. O cisto vocal pode ser erroneamente diagnosticado como nódulo, principalmente quando bilateral, devido à semelhança de seu aspecto macroscópico e região de localização.
Encontramos sinais sugestivos de RGE em apenas 1 criança com queixa vocal e com diagnóstico de nódulo e em nenhuma com diagnóstico de cisto. Estes achados não correspondem aos dados recentes da literatura8,11, como o trabalho de Contencin e col. (1999), onde os autores diagnosticaram a presença de RGE, por pHmetria, em 59% de 17 crianças com disfonia crônica. Contencin e col. (1997) também identificaram, por pHmetria, a presença de RGE em 64% de 20 crianças com disfonia crônica.
CONCLUSÕESAtravés da análise dos resultados deste estudo, que avaliou 34 exames de crianças de 4 a 13 anos, com queixa vocal, através de laringoscopia, podemos concluir que:
1. A lesão mais freqüente nas crianças com disfonia foi o nódulo vocal, encontrado em 18 das 34 crianças (53%);
2. A idade das crianças com nódulo vocal variou de 4 a 13 anos, com média de 9 anos; não houve correlação da lesão com o sexo;
3. A segunda lesão mais comum foi o cisto vocal, encontrado em 7 das 34 crianças (21%);
4. A idade das crianças com cisto vocal variou de 10 a 13 anos, com média de 11,2 anos; não houve correlação da lesão com o sexo;
5. Achados sugestivos de RGE foram encontrados em apenas 1 criança, sendo esta portadora de nódulo vocal.
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1 Medico Residente do Serviço de Otorrinolaringologia do Hospital do Servidor Público Estadual de São Paulo/ FMO
2 Medico Chefe do Setor de Cirurgia de Cabeça e Pescoço do Serviço de Otorrinolaringologia do Hospital do Servidor Público Estadual de São Paulo / FMO;
Doutor em Medicina pela Escola Paulista de Medicina - UNIFESP
3 Fonoaudióloga, Doutora em Ciências Pela Universidade Federal de São Paulo - EPM; Diretora do Centro de Estudos da Voz - CEV, São Paulo
4 Médica Assistente do Serviço de Otorrinolaringologia do Hospital do Servidor Público Estadual de São Paulo / FMO;
Mestre em Otorrinolaringologia e Cirurgia de Cabeça e Pescoço pela Escola Paulista de Medicina - UNIFESP
5 Graduanda do Curso de Fonoaudiologia do Centro Universitário de João Pessoa
Trabalho realizado no Hospital do Servidor Público Estadual de São Paulo - São Paulo - SP
Endereço para correspondência: Erich Christiano Madruga de Melo - R. Borges Lagoa, 1565 Apto 10 - Vl. Clementino - São Paulo - SP - 04038-034 - Telefone: (0xx11) 5572-3764 - E-mail: erichmelo@uol.com.br
Artigo recebido em 10 de maio de 2001. Artigo aceito em 29 de junho de 2001.