INTRODUÇÃOA presença de corpo estranho (CE) nas orelhas, nariz ou garganta é uma queixa comum em serviços de urgência/emergência em Otorrinolaringologia. Estima-se que represente cerca de 11% dos atendimentos nesses serviços
1-3. Podem ocorrer complicações graves em até 22% dos casos, o que demonstra a morbidade do problema, sendo importante o seu devido reconhecimento, estudo e manejo
4.
Apesar da remoção de CE ser comumente simples, o potencial para complicações durante esse procedimento torna fundamental a atuação do médico especialista otorrinolaringologista. O sucesso da remoção do CE depende de diversos fatores, incluindo a localização do CE, seu material, a destreza do médico, os equipamentos disponíveis e a cooperação do paciente
5,6. Muitas vezes, pode ser necessária a remoção do CE em centro cirúrgico, sob sedação ou anestesia geral
4,7. A demora no tratamento está associada à maior extensão e gravidade das lesões locais, com maior frequência de complicações
7.
O objetivo deste trabalho é avaliar características epidemiológicas dos atendimentos a pacientes com CE realizados em um pronto-socorro de Otorrinolaringologia de um hospital universitário de referência, no período de fevereiro de 2010 a janeiro de 2011.
MÉTODOFoi realizado um estudo retrospectivo de coorte histórica com corte transversal baseado nos atendimentos do pronto-socorro (PS) de Otorrinolaringologia (ORL) de um hospital universitário de referência, compreendendo o período de 1 fevereiro de 2010 a 31 de janeiro de 2011.
Foram coletados dados a partir da análise individual de cada ficha de atendimento digitalizada referente a pacientes com diagnóstico de CE. Foram levantados os seguintes dados: data de atendimento, idade, gênero; localização, tipo e tempo de permanência do CE na cavidade otorrinolaringológica; conduta médica adotada, realização de exames complementares; complicações e necessidades de uso de antibiótico, encaminhamento para outra especialidade e remoção em centro cirúrgico.
Os critérios de inclusão compreenderam todos os casos de CE atendidos pelo PS-ORL. Foram excluídos da análise os atendimentos não digitalizados e/ou com dados incompletos.
Os atendimentos foram agrupados de acordo com a localização do corpo estranho: CE otológicos; CE de fossas nasais; CE em orofaringe; CE em laringe. Os CE de esôfago não pertencem ao campo de abrangência da Otorrinolaringologia, mas são relevantes por se tratarem de um importante diagnóstico diferencial. Por isso, também foram incluídos no estudo. Os casos de miíase foram analisados separadamente, pelas suas peculiaridades. O projeto foi aceito pelo Comitê de Ética da instituição, sob número 0081/10.
RESULTADOSDurante o período observado, houve 15.640 atendimentos no PS-ORL. Foram registrados 827 atendimentos a pacientes com corpo estranho, representando 5,3% de todos os atendimentos.
A idade média dos pacientes atendidos foi de 19,8 anos, com mediana de 8 anos. A distribuição dos pacientes em idades mostrou maior incidência em menores de 8 anos, com pico na idade de 3 anos. O problema, entretanto, foi relatado em todas as faixas etárias (Gráfico 1). Dos 827 pacientes incluídos no estudo, 386 eram do gênero feminino (46,7%), e 441 do gênero masculino (53,3%), com relação de homens: mulheres de 1,14: 1,00 (Gráfico 2). CE em cavidades otorrinolaringológicas foi a queixa principal para 94,8% dos pacientes.
Gráfico 1. Perfil dos pacientes atendidos com corpo estranho - Distribuição em idades (anos).
Gráfico 2. Perfil dos pacientes atendidos com corpo estranho - Gênero.
O Gráfico 3 mostra a localização do CE para os pacientes considerados. CE otológicos foram os mais comuns (64,4% dos casos), seguidos pelos localizados nas fossas nasais (19,5%) e na orofaringe (8,9%). Em 2,9% dos atendimentos, a localização não foi especificada. A distribuição dos atendimentos ao longo do período estudado, de acordo com a localização do CE, pode ser observada no Gráfico 4.
Gráfico 3. Localização dos corpos estranhos.
Gráfico 4. Distribuição dos atendimentos a corpos estranhos ao longo do período analisado, de acordo com a localização.
Apenas 49 (5,9%) pacientes foram submetidos a exames complementares. Radiografia simples e endoscopia digestiva alta foram os exames mais realizados, em 69,4% e 20,4% dos casos para os quais exames foram solicitados, respectivamente.
Os tipos de CE encontrados variaram de acordo com a localização. A maioria dos CE otológicos eram fragmentos de algodão. Entretanto, insetos e grãos de feijão também foram encontrados com frequências importantes. Já nas fossas nasais, os CE eram objetos inanimados, em sua maioria, sendo os grãos de feijão os CE mais encontrados. Na orofaringe e na laringe, espinhas de peixe e ossos de frango foram os maiores causadores do problema. Os tipos de CE mais comuns, de acordo com a localização, estão listados na Tabela 1. O tempo de permanência dos corpos estranhos no interior das cavidades otorrinolaringológicas dos pacientes pode ser visto no Gráfico 5.
Gráfico 5. Tempo médio estimado de permanência dos corpos estranhos.
Considerando os casos de miíase, foram registrados seis atendimentos, correspondendo a 0,7% de todos pacientes com CE atendidos no PS-ORL. Apesar de no período estudado terem sido contabilizados apenas seis pacientes com diagnóstico de miíase, foram registradas 21 visitas ao PS-ORL. Desses casos, cinco eram do gênero masculino e apenas um do gênero feminino. Todos eram adultos, com idades entre 20 e 42 anos. A miíase otológica foi a mais comum, representada por cinco dos seis casos. O outro caso correspondia a miíase nasal.
As complicações foram mais observadas em pacientes com CE nas orelhas. Um total de 23 pacientes (2,8% do total de casos) apresentaram complicações otológicas: otite externa aguda (12), laceração/escoriação do meato acústico externo (5), perfuração da membrana timpânica (4) e otite média aguda (2). Apenas 14 pacientes (1,7% do total de casos) com corpo estranho nas fossas nasais apresentaram complicação, manifestada por rinossinusite aguda em 13 casos e perfuração do septo nasal, em um caso. As complicações ocorreram, portanto, em 4,5% dos pacientes estudados. Em 36 casos (4,4%), houve necessidade de anestesia geral ou sedação para retirada do corpo estranho.
DISCUSSÃOO presente estudo analisou os atendimentos a CE e a miíase realizados no PS-ORL de um hospital terciário de referência durante 12 meses consecutivos. Os 827 casos atendidos com diagnóstico de CE, no período observado, representaram 5,3% de todos os casos do PS-ORL. Essa proporção é menor do que a relatada na literatura, de acordo com a qual, esse número pode chegar a 11%
1-3. Ainda assim, o número absoluto de atendimentos a CE por ano foi consideravelmente maior do que o relatado por outros autores, refletindo o volume dos atendimentos em análise
1,2,7.
Foi observada maior prevalência de CE em crianças, tendo 50,1% dos pacientes 8 anos ou menos. Indivíduos do gênero masculino também compuseram a discreta maioria (53,3%). Esses dados estão em concordância com a literatura, que relata que a maior parte dos CE encontrados em crianças ocorre em torno dos 6 anos de idade
1,4,7. Adultos, entretanto, também foram acometidos. Segundo alguns autores, a queixa de CE também é comum para indivíduos adultos, especialmente os portadores de necessidades especiais
8,9.
A queixa principal mais comumente referida pelos pacientes foi de CE em cavidades otorrinolaringológicas (94,8%). Outros autores também encontraram proporções semelhantes dessa queixa
6,10. Esse dado se justifica, na maior parte dos casos, pela fácil identificação e comunicação do problema pelo paciente e/ou seu cuidador
1.
Os CE mais comumente encontrados foram os otológicos (64,4%), seguidos pelos nasais (19,5%) e orofaríngeos (8,9%), dado esperado e semelhante ao revelado pela literatura
3,10. Alguns autores sugerem, inclusive, que haja uma ordem definida de frequência de localização para CE, na ordem decrescente: orelhas, nariz, faringe, esôfago e árvore traqueo-brônquica
10.
Exames complementares são raramente necessários no atendimento otorrinolaringológico a pacientes com CE. A visualização direta, possibilitada pelo exame físico, é geralmente suficiente na identificação e localização do CE. No presente estudo, 49 pacientes (5,9%) foram submetidos a exames complementares, sendo 69,4% desses exames representados por radiografias simples. É importante salientar que radiografias podem ajudar na identificação de CE radiopacos, porém, não são úteis no diagnóstico de objetos radioluscentes, como espinhas de peixe e ossos de galinha. De acordo com alguns autores, para CE suspeitos na orofaringe ou na laringe, a realização dessa modalidade de exame deve ser considerada somente quando exame físico minucioso e nasofibrolaringoscopia resultarem negativos
1,5.
Os CE possuem peculiaridades sociogeográficas quanto ao seu tipo, sendo observada maior frequência de sementes e fragmentos de algodão nos países em desenvolvimento. De acordo, esses foram os objetos mais encontrados nas orelhas e no nariz no presente estudo. Em países desenvolvidos, ao contrário, observa-se maior frequência de pequenas peças plásticas
9,11.
A retirada rápida e atraumática do CE é um verdadeiro desafio para o otorrinolaringologista. O sucesso terapêutico depende de vários fatores e não existem, por exemplo, graus de evidência suficientes para que sejam feitas indicações fortes de métodos específicos de retirada
5. Sabe-se, entretanto, que a permanência do CE nas cavidades otorrinolaringológicas, especialmente por mais de 72 horas, e tentativas consecutivas de sua retirada aumentam os riscos de complicações, iatrogênicas ou não, e diminuem consideravelmente as chances de sucesso
1,2,12.
Em nosso estudo, a maioria dos CE foi retirada em até um dia (60,1%) ou na primeira semana de duração da queixa (28,5%), tempo semelhante ao observado em outros estudos
2,7,13. Somente 4,4% dos casos necessitaram de anestesia geral ou sedação para a retirada do CE, o que foi, na maioria desses casos, realizado em centro cirúrgico. A taxa de insucesso observada e, consequentemente, de necessidade de anestesia geral para retirada do CE foi menor do que aquelas relatadas na literatura, de acordo com a qual podem chegar a 30%
2,9,13. Foram observados, ainda, 37 casos de complicação, com uma baixa taxa relatada (4,5%). Esse dado também não está em concordância com outros estudos, que registram taxas de complicações tão altas quanto 22,2%
1,3,7,12,14.
Essas diferenças em relação à literatura, observadas tanto na taxa de necessidade de anestesia geral quanto na taxa de complicações, podem ser justificadas pelo fato de os casos de CE terem sido atendidos somente por otorrinolaringologistas no serviço em questão. Especialistas estão mais habituados ao problema e ao seu correto manejo, diminuindo as chances de complicação
4,7. Apesar disso, não se pode ignorar as limitações do estudo, já que é retrospectivo e baseou-se na análise de fichas digitalizadas dos atendimentos.
Os casos de miíase foram caracterizados por diversos retornos ao pronto-socorro para reavaliação e acompanhamento. O tratamento da miíase deve ser realizado com retirada mecânica de todas as larvas associado ao uso de antibióticos para a infecção secundária, frequentemente encontrada. Tratamento com ivermectina oral e iodofórmio 2% tópico também podem ser utilizados, caso julgado necessário
15,16. A ocorrência de miíase está associada a pacientes com lesões necróticas cavitárias, como colesteatomas na orelha média, tumores ou doenças úlcero granulomatosas nasais (ex. leishmaniose, hanseníase) e tumores orais, dentre outros fatores socioeconômicos e doenças psiquiátricas
15,16.
CONCLUSÃOCorpos estranhos são queixas comuns em otorrinolaringologia, sendo mais comumente encontrado nas orelhas, principalmente em crianças. Apesar das limitações metodológicas do estudo, foram demonstradas baixas taxas de complicação e pouca necessidade de utilização da anestesia geral quando os atendimentos a CE foram prestados exclusivamente por otorrinolaringologistas. Ressaltamos a importância do correto manejo realizado pelo especialista nestes casos.
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http://dx.doi.org/10.1590/S1808869420090003000081. Médico (Médico Residente em Otorrinolaringologia e Cirurgia de Cabeça e Pescoço da Universidade Federal de São Paulo - Escola Paulista De Medicina UNIFESP-EPM)
2. Graduanda em Medicina (Graduanda em Medicina da Universidade Federal de São Paulo - Escola Paulista de Medicina UNIFESP-EPM)
3. Doutor (Preceptor-Chefe dos Residentes em Otorrinolaringologia e Cirurgia de Cabeça e Pescoço da Universidade Federal de São Paulo - Escola Paulista De Medicina UNIFESP-EPM)
4. Pós-Doutora (Professora Adjunta do Departamento de Otorrinolaringologia e Cirurgia de Cabeça e Pescoço da Universidade Federal de São Paulo - Escola Paulista de Medicina UNIFESP-EPM)
Departamento de Otorrinolaringologia e Cirurgia de Cabeça e Pescoço da Universidade Federal de São Paulo - Escola Paulista de Medicina UNIFESP-EPM.
Endereço para correspondência:
Eduardo Macoto Kosugi
Av. Rouxinol, nº 84, CJ 123, Moema
São Paulo - SP. Brasil. CEP: 04615-000
Tel: +55 (011) 2597-3340
E-mail:
edumacoto@uol.com.brEste artigo foi submetido no SGP (Sistema de Gestão de Publicações) do BJORL em 24 de abril de 2013. cod. 10885.
Artigo aceito em 27 de agosto de 2013.