INTRODUÇÃOA traqueotomia é uma cirurgia realizada pelo otorrinolaringologista em uma grande variedade de condições clínicas que acarretam obstrução respiratória alta ou doença pulmonar crônica para propiciar a higiene dos pulmões e diminuição do espaço morto. Entre elas estão: displasia broncopulmonar, doenças neuromusculares e congênitas, trauma crânio-encefálico, pacientes dependentes de ventilação mecânica, doença pulmonar obstrutiva crônica, estenoses laringo-traqueais, laringotraqueomalácia, paralisia de pregas vocais e apnéia obstrutiva do sono.
Um dos maiores prejuízos acarretados pela traqueotomia é a perda de comunicação verbal ou até o seu desenvolvimento inadequado, no caso de crianças1,2,3,4,5,6. Nesse caso a comunicação verbal é crítica para o cuidado global, condição psicológica e interação social do paciente4. Quando há uma barreira na comunicação entre o paciente e os profissionais da saúde, ocorre prejuízo na capacidade de participação do paciente no planejamento do tratamento4. Especialmente em crianças, podem ocorrer prejuízos na aquisição da linguagem e na sua articulação1,2,3,5. Estas têm dificuldade de oclusão digital da sua cânula de traqueotomia. Pode ocorrer atraso entre cinco a nove meses nas capacidades comunicativas2, tanto da linguagem receptiva quanto da expressiva, na presença de traqueotomia5. Quanto maior o tempo com a traqueotomia maior será o prejuízo5.
Outras funções desenvolvidas pela via aérea superior podem estar comprometidas nos enfermos com traqueotomia como aquecimento, umidificação, filtração do ar, tosse, espirro, paladar, olfato, deglutição3. Nesta última, demonstrou-se maior aspiração nos pacientes traqueotomizados6,7,8,9,10,11,12,13. Sua fisiopatologia não é bem determinada. É atribuída a fatores múltiplos como redução da elevação laríngea, redução do reflexo da tosse por diminuição da pressão subglótica e atrofia da musculatura da deglutição por desuso9. O mecanismo mais importante parece ser a incoordenação do fechamento glótico durante a deglutição9. Também ocorre a dificuldade de elevação laríngea pelo fato de a cânula prender a laringe à pele da região cervical14. O balão da cânula de traqueotomia insuflado de forma exagerada também pode levar a distúrbios de deglutição por compressão do esôfago14.
As válvulas fonatórias (VF) de traqueotomia minimizaram estes prejuízos associados ao procedimento. Existem as válvulas de Passy-Muir, Montgomery, Olympic e Kistner, porém a Passy-Muir apresenta melhor qualidade vocal, verificada tanto pelos ouvintes quanto pelos próprios pacientes e conforme consta da literatura4. Também, esta apresenta os menores índices de problemas mecânicos4. As VF são unidirecionais e permitem a entrada de ar na inspiração com uma pequena pressão inspiratória. Durante a fonação há seu fechamento e direcionamento do ar para a laringe. Todas são importadas, o que implica alto custo aos nossos pacientes, custo não coberto pelo Sistema Único de Saúde ou pelos convênios médicos. Desta forma desenvolvemos uma VF nacional, na Universidade Estadual de Campinas, para suprir essa falta, com melhora na qualidade de vida dos pacientes traqueotomizados e sob baixo custo. O objetivo deste trabalho é apresentar uma nova VF de traqueotomia, totalmente nacional, utilizada em dez pacientes.
MATERIAL E MÉTODOFoi realizado estudo prospectivo no Setor de Cabeça e Pescoço da Disciplina de Otorrinolaringologia da Universidade Estadual de Campinas.
Dez pacientes traqueotomizados com cânulas metálicas foram selecionados para utilização da válvula fonatória. A idade dos pacientes variou de 5 a 58 anos. Todos foram observados cerca de 30 dias após a colocação da VF. Pacientes com estenose laringotraqueal severa acima da traqueotomia, inconscientes e que necessitam ter o balão da cânula de traqueotomia insuflado permanentemente foram excluídos. Estes não iriam beneficiar-se da fonação e são contra-indicados à utilização de VF de acordo com o protocolo de Passy-Muir6, pelo risco de obstrução respiratória.
A VF desenvolvida apresenta diafragma, filtro e conexões plásticas montadas dentro de um corpo em aço inox (Figura 1). É adaptável para todas as cânulas metálicas nacionais (Figura 2) por via anterógrada, através de encaixe do adaptador da VF ao cabeçote da cânula interna da cânula de traqueotomia. Apresenta um adaptador para cada número de cânula de traqueotomia.
Figuras 1. Corpo em aço inox da válvula fonatória constituído de três peças montadas sob encaixe.
Figura 2. Válvula fonatória adaptada à cânula de traqueotomia metálica.
RESULTADOSOs dez pacientes adaptaram-se à VF por nós utilizada, com fonação adequada e sem esforço. Foram possíveis atividades físicas esportivas, caminhadas sob esforço e estão falando sem necessidade de dígito-oclusão da cânula. Houve diminuição na quantidade de secreção traqueal produzida e relataram melhores condições de higiene local, especialmente quanto à tosse e à necessidade de dígito-oclusão em ambientes públicos. Quatro pacientes estão utilizando a válvula durante o sono (Tabela 1).
Tabela 1. Avaliação de características clínicas pelo paciente, após a uitlização de válvula fonatória, comparada à situação sem a válvula fonatória.
Legenda: FASDO - fonação adequada sem dígito-oclusão, FSE - fonação sem esforço, PAE - prática de atividades esportivas, ST - secreção traqueal, TOSSE - produção de tosse, DORME - paciente dorme com a válvula fonatória, AP - atividades em público.
DISCUSSÃODesde 1975 têm sido desenvolvidas técnicas que permitem a fonação em pacientes traqueotomizados12,15,16. As VF podem ser utilizadas no período neonatal com idade mínima de até 13 dias1. As válvulas permitem fonação mais espontânea sem necessidade de oclusão digital da cânula de traqueotomia. Há melhora na condição psicológica do paciente, especialmente quanto à fonação espontânea e redução na produção de secreção traqueal, com diminuição de tosse produtiva pela traqueotomia, importante principalmente em ambientes públicos. A utilização de filtro no interior da válvula que pode ser trocado semanalmente, como ocorre na VF deste estudo, permite a entrada de ar com menos poluentes nas vias aéreas inferiores. Tem-se observado diminuição no grau de aspiração relacionada à traqueotomia após o uso das VF9,13. Porém há estudos que demonstram a ausência de influência da oclusão do orifício externo da cânula de traqueotomia com a melhora na aspiração10. Produz benefícios no reflexo da tosse e com isso melhora a higiene pulmonar dos pacientes, propiciando a ausência de formação de secreção no traqueotoma. As válvulas existentes no mercado são importadas e de difícil aquisição pelo paciente em nosso meio. A nova VF desenvolvida apresenta baixo custo e muitos pacientes poderão ser beneficiados com a mesma. Todos os pacientes notaram grande mudança quanto à sua qualidade de vida após o início da utilização da válvula fonatória. Houve possibilidade de seu uso inclusive durante o sono em quatro pacientes. Os demais pacientes tiravam a válvula durante o sono.
CONCLUSÃOA válvula fonatória desenvolvida na Disciplina de Otorrinolaringologia e Cabeça e Pescoço da Universidade Estadual de Campinas foi bem adaptada em todos os pacientes com fonação sem dígito-oclusão da cânula de traqueotomia.
AGRADECIMENTOSAo Sr. Eduardo Luiz de Carvalho, responsável técnico da Indusmed , pela cooperação no desenvolvimento e confecção das válvulas fonatórias deste estudo.
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1 - Médico Assistente Doutor da Disciplina de Otorrinolaringologia - Cabeça e Pescoço, Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP).
2 - Médico residente da Disciplina de Otorrinolaringologia - Cabeça e Pescoço, Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP).
3 - Médico Assistente da Disciplina de Otorrinolaringologia - Cabeça e Pescoço, Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP).
4 - Professor Adjunto Doutor e Chefe da Disciplina de Otorrinolaringologia - Cabeça e Pescoço, Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP).
Trabalho realizado na Disciplina de Otorrinolaringologia - Cabeça e Pescoço, Setor de Cabeça e Pescoço, Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP).
Endereço para correspondência: Carlos T. Chone - Rua Major Sólon, 685 - 13024-091 Campinas - São Paulo - Tel: (0xx19)3255-1966 - E-mail: carloschone@uol.com.br
Trabalho apresentado no II Congresso Triológico de Otorrinolaringologia, 26 de Agosto de 2001, Goiânia e no XVIII Congresso Brasileiro de Cirurgia de Cabeça e Pescoço, 06 de Setembro de 2001, Recife.