INTRODUÇÃOMuitas crianças com alteração de linguagem ou aprendizagem são encaminhadas ao médico otorrinolaringologista por escolas, fonoaudiólogos, pedagogos, psicólogos, pediatras e neuropediatras a fim de descartar uma perda auditiva1. Isto ocorre em função da audição ser um dos sentidos essenciais no desenvolvimento da comunicação humana, sendo que qualquer alteração em qualquer parte do sistema auditivo2 pode acarretar prejuízos a esse processo3.
No entanto, nem sempre estamos preparados para lidar com a queixa de atraso no desenvolvimento da linguagem e do aprendizado quando a audição é normal. Para que se faça o diagnóstico diferencial do problema, há necessidade de uma consulta foniátrica, na qual observam-se vários aspectos da comunicação e do desenvolvimento da criança4. Este cuidadoso estudo clínico realizado durante a consulta possibilita a formulação de hipóteses diagnósticas, bem como as indicações terapêuticas mais adequadas a cada caso5.
A foniatria é a área de atuação da Otorrinolaringologia que cuida dos distúrbios da comunicação humana, concentrando-se nas funções da voz, da fala, da linguagem, da audição e da deglutição6. A complexidade do processo da comunicação humana justifica a intensa gama de possíveis diagnósticos e exige uma rede de profissionais médicos e não médicos para o processo de diagnóstico, mas também para a seleção da intervenção mais adequada. Deste modo, a constituição de um ambulatório de atendimento deve prever não só médicos otorrinolaringologistas habilitados no atendimento foniátrico, como também uma série de outros profissionais que possam participar deste atendimento, entre os quais, neurologistas, psiquiatras, geneticistas, fonoaudiólogos, psicólogos e fisioterapeutas, escolhidos em função das características da população atendida.
Este estudo foi desenvolvido com a intenção de caracterizar clínica e epidemiologicamente a população pediátrica que é atendida na consulta foniátrica na nossa clínica. Os autores esperam poder contribuir com o surgimento de novos centros de atendimento foniátrico, ainda tão escassos no nosso meio.
MÉTODO O projeto de pesquisa foi aprovado pela Comissão de Ética em Pesquisa da instituição (protocolo de pesquisa 57/10).
Foi realizado um estudo de coorte histórica com corte transversal. Foram analisados os dados de 68 pacientes examinados pela equipe de foniatras da nossa instituição. Foram incluídos somente os pacientes que tiveram o diagnóstico funcional e/ou etiológico determinado no momento da pesquisa e excluídos pacientes com idade maior ou igual a 18 anos.
A consulta foniátrica foi estruturada na forma de uma entrevista semiaberta, na qual o médico realiza alguns questionamentos e o paciente, ou acompanhante, tem a liberdade para relatos livres e para explicar o entendimento sobre suas queixas. Desta anamnese foram colhidos dados importantes que contribuíram para o diagnóstico, como: a relação da criança com a família e com o meio, o desenvolvimento neuropsicomotor, a alimentação, o aproveitamento escolar e antecedentes mórbidos pessoais e familiares.
O exame físico incluiu o brincar com a criança com jogos simbólicos, desenhos, livros infantis ou quebra-cabeças, já que o brincar libera inibições e constrói um espaço de confiança entre o médico e a criança. Foi realizado exame otorrinolaringológico completo e pesquisa das funções perceptuais auditivas e visuais, das funções motoras gerais e orais, do equilíbrio estático e dinâmico e da organização espacial nos planos corporal e gráfico, quando o quadro clínico exigiu e a idade do paciente permitiu.
As medidas de desfecho utilizadas para análise foram: idade do paciente, sexo, a origem do encaminhamento para a consulta foniátrica, o diagnóstico foniátrico, idade média em cada diagnóstico, os riscos neonatais, antecedentes familiares para distúrbios da comunicação e encaminhamentos realizados pelos médicos foniatras.
A análise estatística das idades médias para cada diagnóstico foi realizada por meio do teste ANOVA, utilizado para comparar médias de várias populações com o intuito de determinar a variabilidade da amostra7.
RESULTADOSDos 68 pacientes, 48 (70,58%) eram do sexo masculino e 20 (29,42%) do sexo feminino, com idade média de 6,85 ± 2,49 anos.
Em relação à origem dos encaminhamentos, 43 (63,23%) pacientes foram encaminhados para consulta foniátrica por serviços externos e 25 (36,76%) pacientes já estavam inseridos na nossa clínica, seja em atendimento otorrinolaringológico ou em terapias.
Da população de 43 pacientes que vieram de outros serviços, 31 (72,09%) foram encaminhados por suspeita de surdez e foram submetidos aos testes clínicos, psicoacústicos, eletrofisiológicos e eletroacústicos pertinentes para o diagnóstico. Dos 31, somente cinco (16,13%) tinham realmente perda auditiva.
Os 12 pacientes restantes encaminhados de fora da instituição e os 25 pacientes que já eram nossos pacientes, portanto 54,41% da população total do estudo, já tinham avaliação auditiva feita quando chegaram à consulta foniátrica e esta era normal.
Foram definidos 14 diagnósticos foniátricos diferentes na população estudada, os quais em conjunto com os dados de antecedentes familiares para distúrbios da comunicação e riscos neonatais estão descritos na Tabela 1. A idade média dos pacientes em função do diagnóstico foniátrico também pode ser vista na Tabela 1. Comparando-se as médias de idade dos pacientes para cada diagnóstico pelo teste ANOVA, observa-se que há diferenças estatísticas significantes entre elas (F = 4,369
p = 0,00)
Durante a avaliação foniátrica, 35 pacientes (51,47%) foram encaminhados para uma consulta neurológica e 31 (45,58%) foram encaminhados para avaliação auditiva, como citado anteriormente. Destes 31 pacientes, foi necessária somente a avaliação psicoacústica para definição do diagnóstico auditivo em 12 (38,70%) e em 19 (61,30%) necessitou-se também de avaliações eletrofisiológicas e eletroacústicas, sob sedação, para o fechamento do diagnóstico auditivo.
Após o diagnóstico foniátrico, 54 (79,41%) dos pacientes foram encaminhados para terapias de acordo com o Gráfico 1.
Gráfico 1. Encaminhamentos terapêuticos realizados.
DISCUSSÃODiversos diagnósticos são possíveis na foniatria, em função das alterações que acometem os órgãos e sistemas relacionados à comunicação humana.
Na nossa casuística, encontramos 14 tipos de diagnósticos acometendo, principalmente, pacientes do sexo masculino (70,58%), o que está de acordo com dados na literatura que indicam maior prevalência para distúrbio de linguagem neste grupo8,9. Várias hipóteses são levantadas para tentar explicar o predomínio de meninos com alterações da comunicação, entre elas, a maior vulnerabilidade a situações que prejudicam o desenvolvimento infantil10, as alterações de maturação cerebral, as questões hormonais relacionadas aos níveis de testosterona, além das questões sociais9.
Recebemos para a consulta foniátrica 43 (63,23%) pacientes vindos de outros serviços e 25 (36,76%) encaminhados por profissionais da nossa instituição. Chama a atenção o elevado número de pacientes, 31 dos 43 encaminhamentos externos, ou seja, 45,60% da população total do estudo, encaminhados por alteração no desenvolvimento da comunicação e ainda sem diagnóstico auditivo definido, tendo, portanto, ainda a surdez como uma das hipóteses para o atraso de linguagem. Destes 31, somente cinco (16,13%) apresentaram perda auditiva.
Este dado é explicado, em nossa opinião, pelo escasso número de serviços especializados em diagnóstico auditivo infantil, que atendem pelo SUS, seja por meio de avaliações psicoacústicas com fonoaudiólogos especializados e com tempo para realizar várias sessões de observação do comportamento auditivo na criança, seja por meio de avaliações eletrofisiológicas e eletroacústicas, sob sedação ou anestesia, pois essas crianças já não são tão pequenas para dormirem espontaneamente e, muitas vezes, como reflexo ou como parte do quadro de atraso de comunicação, não colaboram com o repouso necessário para os testes objetivos.
Identificamos predomínio de pacientes com o diagnóstico de Paralisia Cerebral, DEL e Transtorno Invasivo do Desenvolvimento. Estes três diagnósticos representam 50% da amostra e caracterizam-se por quadros mais graves de comprometimento de linguagem o que, provavelmente, reflete a nossa situação como referência em atendimento foniátrico, mas também pode refletir, novamente, nossa condição de referência para diagnóstico auditivo infantil, já que muitos desses pacientes têm dificuldades para realizar avaliações psicoacústicas e testes objetivos em serviços não preparados para tal.
A análise da idade média de cada diagnóstico também pode reforçar a hipótese da carência de serviços especializados em atendimento dessas crianças. Pacientes com quadros clínicos de desenvolvimento de linguagem mais complexos ou mais difíceis do ponto de vista do diagnóstico diferencial de surdez chegaram ao nosso serviço com idades significativamente mais elevadas, como é o caso dos pacientes com diagnóstico de DEL, de TDAH, de Dispraxia, de Déficit Intelectivo-Cognitivo, de Paralisia Cerebral. Pacientes com histórias clínicas mais claras, como no caso dos pacientes com quadros sindrômicos (síndromes de Down ou Velocardiofacial) ou infecciosos (meningite ou toxoplasmose congênita) chegaram mais cedo para o diagnóstico.
História familiar positiva para alterações de comunicação é bastante comum nos pacientes com distúrbios de linguagem8 e a idéia que as alterações de linguagem são parcialmente atribuídas à herança genética11 não é nova, com vários genes já descritos nos casos de surdez12, de DEL13, de Transtorno Invasivo do Desenvolvimento14,15 de Déficit Intelectivo-Cognitivo16.
O sofrimento neonatal também está entre os fatores de risco para distúrbios da comunicação17, seja pela maior incidência de surdez18, de distúrbios de linguagem e aprendizado19,20, de alterações do desenvolvimento do psiquismo21 ou, ainda, de alterações do desenvolvimento neurológico17.
Na nossa amostra, tivemos 50% da população com história familiar para distúrbios da comunicação e 51,47% com história de risco neonatal. Por outro lado, os distúrbios da comunicação são também muito frequentes na população sem riscos ou história familiar, podendo atingir 30% das crianças em idade escolar22 e podem estar ligados a fatores ambientais, tornando, assim, a gênese dos distúrbios da comunicação frequentemente multifatorial.
Em relação aos encaminhamentos, 51,47% dos pacientes foram encaminhados, durante o processo de avaliação foniátrica, para avaliação neurológica, visando esclarecer a participação de condições neurológicas no quadro clínico.
Após a formulação da hipótese diagnóstica, 79,41% dos pacientes foram encaminhados para terapias fonoaudiológica, psicológica, terapia ocupacional e/ou fisioterapia. Um ambulatório de Foniatria, portanto, deve estar relacionado a uma rede de profissionais habilitados no atendimento terapêutico dos distúrbios da comunicação, capaz de assumir a terapia dos pacientes encaminhados e que se disponibilize a fazer constante contato com o médico foniatra e com os outros profissionais que acompanham o paciente. Acreditamos que este atendimento interdisciplinar, que deve incluir discussões clínicas entre os profissionais envolvidos, é fundamental para uma boa evolução do paciente e um bom suporte à família e à escola.
CONCLUSÃOPodemos concluir que a população que nos procura é predominantemente masculina, caracterizada clinicamente por alterações mais complexas de desenvolvimento de linguagem, muitos, ainda, sem diagnóstico auditivo concluído, por provável etiologia multifatorial, sendo a idade média dos pacientes estatisticamente maior em função da complexidade do diagnóstico.
Vale ressaltar a necessidade de novos centros de atendimento foniátrico em nosso meio, que incluam não só médicos foniatras, mas também um serviço de diagnóstico audiológico infantil e uma equipe de atendimento terapêutico interdisciplinar.
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1. Doutora em Ciências pela Otorrinolaringologia pela FMUSP (Coordenadora dos Programas de Formação em Foniatria e Eletrofisiologia da Audição da DERDIC/PUCSP. Médica do HSPM-SP).
2. Especialista em Otorrinolaringologia (Aprimoramento em Eletrofisiologia da Audição da DERDIC/PUCSP).
3. Mestre em Otorrinolaringologa pela UNIFESP (Aprimoramento em Eletrofisiologia da Audição da DERDIC/PUCSP).
4. Pós-graduando em Medicina do Sono, Departamento de Psicobiologia UNIFESP. (Fellow em Otoneurologia UNIFESP, Aprimoramento em Eletrofisiologia da Audição DERDIC/PUCSP).
5. Especialista em Otorrinolaringologia (Coordenador do Setor de Foniatria e Otorrinolaringologia da DERDIC/PUCSP).
6. Mestre em Disturbios da Comunicação - DERDIC/PUCSP (Diretor Geral da DERDIC/PUCSP. Médico Foniatra da DERDIC/PUCSP e Professor da Faculdade de Fonoaudiologia da PUCSP). DERDIC/PUCSP.
Endereço para correspondência:
Mariana Lopes Fávero
Rua Itapeva, nº 378, conj 112. Bela Vista
São Paulo - SP. Brasil. CEP: 01332-000
Tel: (11) 3289-3662
E-mail: lopessquare@ig.com.br
Este artigo foi submetido no SGP (Sistema de Gestão de Publicações) do BJORL em 15 de novembro de 2011. cod. 8903.
Artigo aceito em 14 de dezembro de 2012.