Escrever sobre a Revista Brasileira de Otorrinolaringologia nos seus primeiros anos, de 1933 a 1990, é quase como contar a história da especialidade no país. Na função de editor, entre 1989 e 1996, fui consolidando uma forte ligação com a publicação e passei a me interessar por tudo que representava para a ORL. No período em que fui editor, meu trabalho inicial foi impedir que o periódico deixasse de ser publicado para, posteriormente, conquistar crescimento, relevância e visibilidade nacional e internacional. Alguns anos antes, em 1989, quando embarquei no desafio, a revista tinha três artigos, geralmente de revisão ou relatos de casos, publicados em cada um dos três números anuais. Não havia anúncios e a publicação médica - que está entre as cinco mais antigas em circulação no Brasil - era bancada pela SBORL. Não foi fácil o trabalho para fazer com que os poucos brasileiros que publicavam na época confiassem e enviassem seus artigos. Já em 1996, circulavam quatro edições anuais, com dez artigos por número, em média, e oito anunciantes que rendiam R$ 80 mil de lucro por ano. Entre os principais indexadores da época, ela não só era superavitária como a principal fonte de renda da então Sociedade Brasileira de Otorrinolaringologia.
Este desafio nos motivou a pesquisar as origens e as pessoas que, como nós, também foram ligadas a esse trabalho e batalharam para a sua sobrevivência. Publiquei, em 1990, um número especial com as Memórias da Revista Brasileira de Otorrinolaringologia e seu índice remissivo de trabalhos até essa data. Recuperamos todos os números desde o primeiro. A edição especial está disponível na ABORL-CCF e seu índice remissivo de arquivos serviu de base para o resgate de todos os artigos que hoje constam no site oficial da publicação.
Fundada em 1933 com o nome de REVISTA OTO-LARYNGOLÓGICA DE SÃO PAULO, a publicação tinha como diretores e redatores os Drs. Mário Otoni de Rezende e Homero Cordeiro, que permaneceram no cargo por 30 anos, até 1963. Nessa época, não havia órgão representativo nacional da especialidade e a maioria dos profissionais praticava a Otorrinolaringologia e a Oftalmologia. A revista, entretanto, abordava somente artigos na área otorrinolaringológica, o que já acenava para a separação entre a ORL e a OFTALMO como especialidades independentes.
Em 1939, o periódico passou a se chamar REVISTA BRASILEIRA DE OTORRINOLARINGOLOGIA sem prejuízo dos volumes anteriores, dando sequência à numeração da Revista Oto-Laryngológica de São Paulo. Em 1964, o Dr. José Eugênio Rezende Barbosa se tornou o editor da publicação, sucedido pelos Drs. Rudolf Lang e Nicanor Letti, de 1970 até 1975. Lang permaneceu na função até 1985. Nesse período, a produção ficou a cargo do diretor de publicações da Sociedade Brasileira de Otorrinolaringologia, sendo diretores Dr. Arthur Octavio Kós, no biênio de 1985-1986, e Dr. Fernando Sérgio Portinho, de 1987 a 1988.
Em uma avaliação quantitativa dos artigos, observamos que foram publicados 1.461 trabalhos entre 1933 e 1990. No Gráfico 1, vemos o número de textos por década. Considerados os anos mais profícuos da revista, os períodos de 1930 a 1950 e de 1971 a 1980 contaram com os Drs. Mário Ottoni de Rezende e Homero Cordeiro (1930-1950), Rudolf Lang e Nicanor Letti (1971-1980) na coordenação.
Gráfico 1. Número de artigos nas décadas da revista.
Há de se fazer um adendo sobre a dificuldade em se publicar artigos científicos. As publicações nacionais são massacradas pelas estrangeiras, principalmente as americanas. Para corrigir essa distorção, nos últimos anos, a revista tem sido publicada também em inglês, com intuito de conseguir indexações e maior visualização, com citação no ISI. Os autores nacionais enfrentam dificuldades para conquistar espaço em periódicos de alto impacto, por conta do preconceito contra a produção em países em desenvolvimento, como China, Rússia, Índia.
O baixo incentivo governamental e privado às pesquisas científicas de ponta impedem, muitas vezes, que os artigos alcancem revistas de alto impacto como a Nature, Science e New England Journal of Medicine. Em nossa especialidade, há um agravante: os periódicos da área de Otorrinolaringologia têm os piores índices de impacto na comparação com as demais. Basta ver as principais publicações, como a Laryngoscope, Otology and Neurotology, Otolaryngology and Head and Neck Surgery, Rhinology, cujo índice de impacto médio é de 2.0.
Os órgãos universitários e governamentais de pesquisa e pós-graduação, como CAPES e CNPq, são insensíveis ao argumento de que o índice de impacto dentro da área é o mais importante e há necessidade de se publicar como os demais pesquisadores de ORL no mundo. Esses colegiados insistem em querer nos associar com outras áreas básicas e clínicas que publicam em veículos de maior impacto, inerentes às suas especialidades. Como diz o ditado, querem "comparar alhos com bugalhos". Em países da Europa, nos EUA e no Canadá essa percepção já aconteceu e, nas instituições universitárias, cada área é cobrada em relação a seus pares internacionais.
No Gráfico 2, vemos a porcentagem de artigos sobre ouvido e otoneurologia publicados em cada década. Percebemos claramente a evolução percentual dos artigos destas matérias, refletindo o interesse crescente da especialidade, a partir da década de 1960, por essas áreas. Notamos também que a otoneurologia, em separado, adquiriu curva ascendente de 1960 a 1980 e apresentou queda em 1990.
Gráfico 2. Porcentagem de artigos de ouvido e otoneurologia em cada década.
Já os chamados artigos de fonoaudiologia (Gráfico 3), que englobam a audiologia e a foniatria, apesar do pequeno número, possuem um interesse crescente com alta na década de 1970 e queda na década de 1980.
Gráfico 3. Porcentagem de artigos de fonoaudiologia com relação à década.
Nos Gráficos 4, 5 e 6, que tratam de artigos de nariz e seios paranasais, bucofaringolaringologia e cirurgia de cabeça e pescoço e miscelânia (artigos que não se enquadram nas categorias anteriores), observamos uma queda constante no período de 1930 a 1990, com uma leve recuperação para o nariz e seios a partir de 1970.
Gráfico 4. Porcentagem de artigos de nariz e seios paranasais em cada década.
Gráfico 5. Porcentagem de artigos de bucofaringolaringologia em relação a cada relação.
Gráfico 6. Porcentagem de artigos miscelânea por década.
Vale a pena ressaltar alguns pontos no exame dos autores:
Alguns colegas apresentaram, durante esse período, um fluxo contínuo de publicações, enquanto outros tiveram alto número por determinado tempo e, depois, param bruscamente, o que às vezes pode coincidir com a obtenção de algum concurso universitário ou a chegada ao auge da carreira. Outros colegas muito produtivos em termos de frequência e participação em congressos, e até famosos especialistas, são fracos quando se trata de publicações. Podemos perceber também que os colegas prolixos não estão necessariamente ligados às escolas médicas. Especialistas autônomos ou de serviços privados também contribuem com a produção científica.
Essas observações têm por objetivo estimular a produção, seja de pesquisadores de laboratório, pessoas ligadas ao ensino, alunos de pós-graduação, residentes, estagiários ou médicos autônomos. Todos devem contribuir com a sua parcela apresentando seus casos, transmitindo sua experiência e divulgando suas técnicas. Só com este procedimento é que engrandeceremos a nossa área de atuação.
A Revista Brasileira de Otorrinolaringologia, hoje
Brazilian Journal of Otorhinolaryngology, representa um patrimônio de nossa especialidade e temos orgulho de ter pertencido a sua direção. O esforço de todos os editores, que nos sucederam à frente do periódico, colaborou para o crescimento de sua credibilidade e fortalecimento diante de seus similares internacionais. Hoje alcançamos a maior indexação possível no ISI e continuamos acreditando e investindo no futuro da revista, cujo sucesso é um retrato do desenvolvimento científico da ORL brasileira.
Ricardo Ferreira Bento,
Professor Titular de Otorrinolaringologia da Faculdade de Medicina da USP.