INTRODUÇÃOAs vantagens da audição binaural são extensamente divulgadas e documentadas: a possibilidade de se utilizar funcionalmente as duas orelhas promove uma melhor compreensão da fala em um ambiente ruidoso ou reverberante; a habilidade em localizar sons é altamente dependente da possibilidade de perceber os sons simultaneamente nas duas orelhas1. A audição binaural exerce papel fundamental no monitoramento e controle de inúmeras situações de alerta e orientação na rotina de vida diária do ser humano. A interferência ou redução desta habilidade traz frequentemente consigo sentimentos de insegurança em relação ao mundo que o cerca.
A adaptação de prótese auditiva bilateral pressupõe a possibilidade de interação entre as duas vias auditivas e, desta forma, propiciar ao deficiente auditivo uma audição binaural com uma qualidade superior de som em termos de clareza, redundância, efeito de somação binaural, estereofonia, eliminação do efeito sombra da cabeça e, até mesmo, uma maior efetividade na supressão do zumbido1. Pelo acima exposto, parece coerente sugerir que a adaptação de prótese auditiva bilateral deva ser privilegiada, sempre que não houver uma contraindicação para tal1,2.
Longos períodos de privação da audição, seja ela parcial ou completa, gerada pela adaptação de prótese auditiva unilateral em indivíduos com perda auditiva bilateral são a base de um fenômeno descrito pela primeira vez em 19843 e denominado "Privação Auditiva Unilateral de Início Tardio". Ao avaliarem prospectivamente adultos com perda auditiva sensorioneural bilateral que fizeram uso prolongado de adaptação unilateral, observaram uma redução significante no reconhecimento de fala na orelha que não recebeu estimulação por meio da prótese auditiva, enquanto que na orelha protetizada os índices mantiveram-se proporcionalmente estáveis, gerando uma discrepância interaural significante3-5.
A relevância desses achados ficou ainda mais evidente desde a organização do "
1st Eriksholm Workshop" em Privação e Aclimatização Auditiva6, a partir do qual foram publicadas diretrizes, recomendações consensuais e de pesquisa futura para o tema. Na ocasião, ficou claro que a detecção dos possíveis efeitos deletérios da privação auditiva unilateral dependeria não somente da sensibilidade do instrumento utilizado na sua avaliação, como também da incorporação sistemática da sua monitorização na rotina clínica audiológica. Com este propósito, já em 1992, Gatehouse7 havia sugerido que o efeito da privação auditiva poderia ser detectado de forma mais precisa e precoce se fossem utilizados instrumentos mais sensíveis que os tradicionais testes de reconhecimento de fala no silêncio. Desde então, tem se recomendado a inclusão de testes comportamentais e eletrofisiológicos de avaliação da função auditiva periférica e central para este fim8.
Adultos com perda auditiva frequentemente se queixam da dificuldade de compreender a fala em situações de ruído. Para se obter uma estimativa mais realista no comprometimento da compreensão de fala e da comunicação, é necessário utilizar procedimentos de avaliação que foquem na habilidade do indivíduo de processar a informação auditiva em condições mais próximas daquelas da vida diária. Tendo em vista que não é possível inferir essa dificuldade a partir de testes de fala realizados em silêncio, se faz imprescindível a utilização de testes de fala na presença de ruído para a avaliação destas habilidades9.
A importância da utilização de testes eletrofisiológicos, em especial dos potenciais evocados auditivos de longa latência na investigação do funcionamento do sistema auditivo, reside não somente na possibilidade da confirmação de achados comportamentais, como também ajudam na compreensão dos mecanismos fisiológicos subjacentes e, portanto, se mostram excelentes monitores na mudança funcional8,10. Num artigo tutorial sobre a reorganização do sistema auditivo frente à amplificação, Munro8 reuniu importante seleção de estudos os quais avaliaram, na sua maioria, adultos com perda auditiva simétrica que fizeram uso de amplificação unilateral, na perspectiva de um desenho experimental que permitia uma comparação de resultados intrassujeito. Por meio de testes eletroacústicos, eletrofisiológicos e comportamentais, tais estudos evidenciaram a assimetria de respostas entre a orelha que fazia uso de prótese auditiva e a privada auditivamente, sugerindo que o sistema auditivo adulto pode sofrer mudanças perceptuais e fisiológicas frente ao uso de prótese auditiva.
São, portanto, cada vez maiores as evidências de seu uso como instrumento objetivo e não invasivo nos diagnósticos funcionais, no monitoramento das modificações no sistema nervoso auditivo central, na investigação da plasticidade da função auditiva e na avaliação da atividade neuroelétrica da via auditiva, desde o nervo auditivo até o córtex cerebral10,11. Além disso, as modificações destes potenciais a partir de situações de privação/estimulação auditiva refletiriam variações funcionais da via auditiva, trazendo consigo possíveis mudanças comportamentais, mesmo na ausência de modificações evidentes nos testes subjetivos10.
Na avaliação do potencial audiológico cortical, o componente P300 tem sido utilizado com a vantagem de poder ser registrado normalmente em indivíduos com perda auditiva desde que esta não impeça ao paciente perceber a presença dos estímulos raros e frequentes com a mesma facilidade12. A desvantagem de utilizar este componente reside na grande variabilidade intersujeitos. Para que esta variabilidade não mascare os verdadeiros resultados, alguns autores sugerem que o próprio indivíduo seja o controle dele mesmo13.
A privação ou a assimetria na estimulação auditiva parece ser responsável por gerar uma modificação na representação topográfica da via auditiva correspondente no córtex auditivo14. Sendo esta premissa verdadeira, uma hipótese aceitável, no presente trabalho, é que fosse possível registrar, nos casos de privação auditiva unilateral, em uma situação de controle (tal como em uma comparação intrasujeitos/interaural), diferenças de respostas entre a orelha estimulada auditivamente e a que sofreu privação auditiva.
O presente trabalho pretendeu comparar o desempenho auditivo em sujeitos com perda auditiva sensorioneural bilateral simétrica adquirida na idade adulta, estratificados em grupos de usuários de prótese auditiva unilateral, de usuários de prótese auditiva bilateral e não usuários de prótese auditiva por meio de avaliação comportamental e pelo P300.
MÉTODOEsta pesquisa consiste de um estudo clínico prospectivo aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa sob o número 0973/07.
Este trabalho foi desenvolvido em um serviço público de saúde auditiva. A casuística foi composta aleatoriamente por um total de 35 sujeitos que buscaram o serviço para avaliação da audição visando a dispensação e a adaptação inicial de prótese auditiva ou o acompanhamento, por aqueles sujeitos já usuários de amplificação que necessitavam a reavaliação da audição e ou do seu desempenho com prótese auditiva.
Para possibilitar as comparações pretendidas na presente pesquisa foram constituídos três grupos de pacientes: um grupo estudo denominado "Grupo Protetizado Unilateral" (GPU) composto por 15 participantes usuários regulares de prótese auditiva unilateral e dois grupos comparação denominados "Grupo Protetizado Bilateral" (GPB), que incluiu 10 participantes usuários regulares de prótese auditiva bilateral; e "Grupo Não Protetizado" (GNP), o qual incluiu 10 participantes que nunca haviam utilizado prótese auditiva anteriormente. Desta forma, participaram deste estudo 35 sujeitos adultos e idosos (24 do sexo feminino 11 do sexo masculino) com idades entre 48 e 90 anos.
Para a inclusão dos participantes no estudo, adotou-se o seguinte critério: a) indivíduos adultos maiores de 18 anos de ambos os sexos, b) presença de perda auditiva tipo sensorineural (gap aéreo ósseo
< 10 dB em qualquer frequência) bilateral, simétrica, adquirida na idade adulta; c) média dos limiares tonais (500, 1000 e 2000 Hz)
< 70 dB NA. Para o critério de simetria, utilizou-se o adotado por Silman et al.3 em que a diferença interaural em qualquer frequência ou no limiar de fala foi
< 15 dB NA e, no teste do índice de reconhecimento de palavras, a diferença foi
< do que 20% entre orelhas d) ausência de problemas cognitivo, mental, neurológico ou otológico comprovados, declarados ou evidentes. No caso dos participantes usuários de prótese auditiva (uni ou bilateral), estes deveriam fazer uso regular de, pelo menos, 6 horas diárias e contínuas de amplificação pelo período mínimo de 12 meses consecutivos.
A timpanometria foi realizada em todos os participantes que apresentaram pressão timpanométrica normal (+50 a -100 daPa), além do relato de ausência de história recente de problemas na orelha média, descartando alteração permanente ou temporária na orelha média que pudesse interferir nos resultados
A bateria de testes aplicada nos participantes dos três grupos consistiu de avaliação comportamental (audiometria tonal, índice de reconhecimento de fala no silêncio para palavras monossilábicas, teste de reconhecimento de sentenças no ruído) e de avaliação eletrofisiológica (potencial evocado auditivo de longa latência - P300) realizada sem o uso da prótese auditiva. Desta forma, a análise não incluiu dados sobre o tipo ou marca da prótese auditiva, ajustes ou algoritmos utilizados, resultados de mensuração
in situ ou limiares com próteses auditivas.
As avaliações comportamentais da audição foram realizadas em cabina com tratamento acústico atendendo à norma ANSI 3.1 de 1991. Foi utilizado o audiômetro de dois canais, marca Grason-Stadler modelo GSI-61, com fones supra-aurais TDH-50P, calibrados segundo as normas ANSI 3.6 de 1989 e IEC-1988 e caixas acústicas. Quando o teste exigia o uso de reprodução digital, utilizou-se tocador de CD portátil NS-P4113 acoplado ao audiômetro.
A audiometria tonal liminar foi realizada por via aérea nas frequências de 250 a 8000 Hz, com fones supra-aurais e, por via óssea nas frequências de 500 a 4000 Hz, por meio de vibrador ósseo.
O teste Índice de Reconhecimento de Fala (IRF) foi pesquisado por meio de palavras monossilábicas cujo nível de apresentação foi de 40 dB NS (nível de sensação), a partir da média dos limiares das frequências de 500, 1000 e 2000 Hz. No caso deste nível de apresentação causar desconforto, optou-se por utilizar o nível de maior conforto referido pelo participante (
most confortable level - MCL). O material utilizado para esta pesquisa constituiu-se de quatro listas com 25 vocábulos monossilábicos cada, desenvolvido por Pen e Mangabeira-Albernaz15 gravadas em CD.
O teste Lista de Sentenças em Português (LSP)16 foi utilizado para obtenção do Limiar de Reconhecimento de Sentenças no Ruído (LRSR) e da respectiva relação Sinal/Ruído (S/R), e encontra-se gravado em
CD. O teste contém uma lista de 25 sentenças em português brasileiro, além de outras sete listas com dez sentenças diferentes e balanceadas em cada uma. O teste contém, ainda, gravado em outro canal, um ruído formado por espectros de fala, permitindo tanto a apresentação como a variação nos níveis de apresentação das sentenças do teste e do ruído de forma independente. O teste foi aplicado em todos os participantes, sem o uso de próteses auditivas, seguindo sempre o mesmo protocolo, a saber: o LRSR foi obtido a partir do nível de identificação de 50% das sentenças apresentadas com a presença de ruído contínuo fixo numa intensidade de 80 dB NPS (nível de pressão sonora). Para obter-se a relação Sinal/Ruído (S/R) na qual o participante foi capaz de reconhecer em torno de 50% dos estímulos apresentados, subtraiu-se o NPS calculado do LRSR do nível de apresentação do ruído para, assim, obter-se a relação S/R. Desta forma, ficou estabelecido que a relação S/R é a diferença, em dB, entre a média dos níveis de apresentação das sentenças e do ruído competitivo. Primeiramente, a avaliação foi realizada em campo livre com sentenças e ruído executados por meio do mesmo alto falante, distante 1 metro do sujeito, a zero grau azimute. Em seguida, o mesmo protocolo de teste foi aplicado por meio de fones, com sentenças e ruído sendo apresentados de forma ipsilateral. Desta forma, foi possível avaliar a orelha direita e a esquerda (ou orelha protetizada e privada auditivamente, segundo o grupo) separadamente. Foram utilizadas diferentes listas de sentenças, uma para cada condição de teste, a fim de eliminar a possibilidade de melhor desempenho devido à memorização das sentenças.
A avaliação eletrofisiológica foi realizada sem o uso de próteses auditivas, por meio do Potencial Evocado Auditivo de Longa Latência (PEALL) - P300, registrado com o equipamento
Biologic Systems Corp versão 5.7, de quatro canais e os estímulos auditivos foram apresentados por meio de fones de inserção ER-3A. O posicionamento dos eletrodos seguiu o padrão do
International Eletrode System (IES) 10-2017, a saber, na fronte (Fpz) o eletrodo terra, na linha média do vértex craniano (Cz) o eletrodo ativo, e nos lóbulos das orelhas (A1 = orelha esquerda e A2 = orelha direita) os eletrodos referência. A impedância elétrica dos eletrodos esteve sempre menor do que 5 kohms e a diferença das impedâncias entre os eletrodos de, no máximo, 2 kohms. O exame foi realizado em uma sala acusticamente tratada em ambiente semiescuro, com os participantes confortavelmente sentados em uma poltrona reclinável e orientados a manterem-se imóveis, relaxados, em estado de vigília. Foi gerada uma série de estímulos alternados tipo
Tone Burst (50 mseg de duração, 10 mseg linear rise/fall, 30 mseg plateau) a uma taxa de apresentação de 1,1/seg. O nível de apresentação dos estímulos variou de 70 a 85 dB NA, de acordo com o limiar de conforto e audibilidade para tons puros, sem as próteses auditivas. Foi também solicitada a comparação e julgamento quanto ao equilíbrio das intensidades dos estímulos detectados nas duas orelhas. Para o desencadeamento da onda P300, utilizou-se o paradigma do tipo raro-frequente de dois tons de diferentes frequências (1000 e 500 Hz, respectivamente) apresentados de forma aleatória com uma probabilidade de aparecimento de 20% e 80%, respectivamente. Foi desencadeado um total de 300 estímulos, apresentados de forma binaural, tendo sido captado apenas um registro do traçado ipsilateral, o qual não foi replicado de forma a evitar interferência por cansaço. A análise do componente P300, de sua latência e amplitude, foi realizada por três juízes experientes de forma independente e sem que soubessem o propósito do estudo.
Os resultados de todos os testes foram registrados e tabulados. Foi realizada análise descritiva e estatística de todas as variáveis consideradas no estudo.
Este estudo tipo caso controle se caracteriza pela comparação interaural/intrassujeito de um mesmo grupo: no Grupo Protetizado Unilateral o desempenho da orelha com prótese auditiva é comparado ao da orelha sem prótese auditiva, situação em que, num mesmo indivíduo, a orelha estimulada com prótese auditiva atua como controle da orelha privada de estimulação auditiva no que se podem definir como uma situação de controle combinada. O mesmo procedimento é aplicado no Grupo Protetizado Bilateral e no Grupo Não Protetizado: o desempenho da orelha direita é comparado ao da orelha esquerda com o objetivo de investigar a presença de diferenças no desempenho interaural dos sujeitos nos testes IRF, reconhecimento de sentenças no ruído e P300.
Além da comparação de desempenho interaural dos sujeitos em cada um dos grupos, foi realizada a comparação de desempenho entre os três grupos (GPU
versus GPB
versus GNP) no teste de reconhecimento de sentenças no ruído aplicado em campo livre.
A análise estatística inferencial foi realizada por meio da técnica de Análise de Variância com medidas repetidas ou teste
t-pareado. O método de Tukey foi aplicado para localizar diferenças, quando necessário. Em cada teste de hipótese, foi adotado nível de significância de 0,05 (5%).
RESULTADOSA faixa etária dos participantes deste estudo foi de 48 a 90 anos (M = 70,2 anos), a média do limiar tritonal para 0,5, 1 e 2 kHz foi de 31,6 a 69,1 dB NA (M = 50 dB); o tempo de diagnóstico de perda auditiva foi de três a 20 anos (M = 8,3 anos). Nos grupos usuários de amplificação, o intervalo de tempo ocorrido entre o teste de adaptação inicial da prótese auditiva e a reavaliação atual ("tempo de uso da prótese auditiva") variou de dois a 15 anos (M = 5,8 anos); o tempo referido de uso diário da prótese auditiva ("horas de uso diário") foi de oito a 18 horas/dia (M = 12 horas/dia). A análise de variância revelou diferenças significantes (
p = 0,029) somente no tempo de diagnóstico da perda auditiva entre o grupo não protetizado e os grupos protetizados (uni e bilateral).
As Tabelas 1, 2, 3 e 4 apresentam os resultados da análise descritiva (média, desvio padrão, valor máximo e mínimo) e a comparação interaural em cada grupo por meio do teste t Student. Pôde-se perceber que tanto no Grupo Protetizado Bilateral (GPB) como no Grupo Não Protetizado (GNP) não houve diferença estatisticamente significante na média de desempenho quando comparadas as orelha direita e esquerda nos testes IRF (Tabela 1), Teste de Sentenças no Ruído S/R (fones) (Tabela 2), nem nas variáveis de latência (Tabela 3) e amplitude do PEALL- P300 (Tabela 4).
Na análise do Grupo Protetizado Unilateral (GPU) também não foram encontradas diferença interaurais na média de desempenho entre a orelha em privação e a adaptada com prótese auditiva nos testes Listas de Palavras Monossílabas (Tabela 1), no Teste de Sentenças no Ruído S/R (fones) (Tabela 2) ou na variável amplitude da onda P300 (Tabela 4). Inversamente, a análise de variância indica que a latência do P300 foi significantemente maior (
p = 0,007) na orelha com privação auditiva quando comparada à orelha com prótese auditiva do GPU (Tabela 3).
Na Tabela 5 são apresentados os resultados da comparação de desempenho entre os três grupos no teste de fala no ruído realizado em campo livre. A análise estatística demonstra que a média da relação S/R nos três grupos não são todas iguais (
p < 0,001) e que a média de desempenho no GPU é pior que o do GNP (
p = 0,001) e do GPB (
p = 0,086). A representação gráfica da Figura 1 ilustra esta diferença com valores médios e individuais na comparação de desempenho entre os três grupos.
Figura 1. Valores individuais e médios da relação S/R (em dB) no teste LSP de Reconhecimento de Sentenças no Ruído (campo livre) para os três grupos.
DISCUSSÃOEste estudo contou com a participação de 35 sujeitos e embora a falta de poder estatístico em algumas medidas possa ser atribuída ao pequeno tamanho da amostra, elas apontam para direções clinicamente importantes.
A ausência de diferenças significantes entre a orelha em privação e a adaptada com prótese auditiva no GPU não era esperada e discordou da literatura3-5, que descreve que a estimulação assimétrica ou a privação auditiva unilateral da audição pode levar a uma diminuição significante do IRF na orelha que sofreu a privação auditiva. Esta ausência de diferença entre orelhas neste grupo levanta duas questões pertinentes: primeiro quanto à utilização, na rotina clínica, de listas de 25 itens de palavras monossilábicas em contraposição às listas originais com 50 itens. O uso clínico de listas reduzidas, com a finalidade de teste-reteste, impõe uma limitação em termos estatísticos, tendo em vista que, quanto menor o número de palavras utilizadas, maior a diferença necessária para exceder os limites de confiança18. Segundo, apesar de seu incontestável valor clínico, a utilização da lista de palavras monossilábicas como instrumento exclusivo na avaliação ou detecção de uma possível mudança de status ou da deterioração na compreensão de fala frente à privação auditiva pode ficar limitada e comprometer os resultados esperados.
A análise dos resultados do teste LSP de reconhecimento de sentenças no ruído realizado na condição com fones não revelou diferença de desempenho interaural em nenhum dos três grupos. A ausência de diferenças estatísticas no desempenho entre a orelha em privação e a que faz uso de prótese auditiva do GPU não era esperada. No entanto, quando a perspectiva de análise é realizada de forma qualitativa e individual, chamou a atenção uma grande variabilidade no padrão de desempenho deste grupo, tendo sido possível observar que, enquanto um número substancial de sujeitos (10 entre 15) teve um desempenho sistematicamente pior na orelha em privação comparada à orelha protetizada, alguns poucos tiveram um ótimo desempenho individual, o que pode ter melhorado o resultado médio geral da relação S/R desta orelha. Portanto, embora esta análise não tenha se mostrado estatisticamente significante, ela trouxe revelações clinicamente importantes quanto à diferença no desempenho entre a orelha que faz uso de prótese e a privada auditivamente no GPU.
O uso do componente P300 do PEALL não tem recebido tanta atenção no monitoramento de mudanças no sistema nervoso auditivo central na área audiológica como recebe de outros campos da ciência como na psicologia e na neurologia ou no uso do componente N1-P2 deste mesmo potencial. Este uso limitado talvez se justifique devido ao registro de grande variabilidade na comparação intersujeitos nas medidas de latência e amplitude. Sua utilização neste estudo justificou-se pela possibilidade de ampliar o alcance do seu uso, na viabilidade de uso em portadores de perda auditiva e pela condição de que o próprio indivíduo seria controle dele mesmo (avaliação "intrassujeito"). Desta forma, é possível eliminar a variabilidade inerente ao teste quando da comparação entre sujeitos ou de diferentes faixas etárias, fazendo com que pequenas diferenças possam se tornar bastante consistentes do ponto de vista experimental.
A análise de variância revelou que somente no grupo que fazia uso unilateral de amplificação foi encontrada uma assimetria interaural significante. Embora somente 14 dos 15 sujeitos deste grupo tenham sido capazes de gerar o componente P300, a latência deste componente na orelha em privação revelou ser estatisticamente maior do que a registrada na orelha protetizada (
p = 0,007). A latência do P300 está diretamente relacionada ao tempo que o indivíduo necessita para perceber, processar e categorizar o estímulo que, por sua vez, está diretamente relacionado à velocidade de processamento da informação12. Uma maior latência na orelha que sofreu privação auditiva sugere uma lentificação da resposta frente a uma possível diminuição da força sináptica, resultando em pior sincronização ou ativação neuronal19. A redução (ou aumento) da latência dos potenciais evocados tem sido descrita como um correlato neurofisiológico da plasticidade neural e pode, muitas vezes, preceder a modificação comportamental, a qual necessita de maior tempo para aparecer, já que pressupõe a integração destas modificações em uma percepção consciente, além do envolvimento de processos cognitivos mais centrais11.
Este achado concorda com a literatura que sugere a possibilidade de se registrar mudanças na morfologia, latência e amplitude dos potenciais evocados auditivos corticais ocasionados pela estimulação (ou privação) do sistema auditivo7,11,13.
Embora a relação entre a observação de mudanças perceptuais e mudanças fisiológicas seja largamente aceita, ainda não está claro como e em que proporção isto possa ocorrer. A mudança da latência dos potenciais evocados auditivos tem sido descrita como um correlato neurofisiológico da plasticidade neuronal, precedendo, por vezes, uma modificação comportamental, a qual necessita de maior tempo para aparecer20. A contribuição de achados por meio de procedimentos objetivos, tais como os eletrofisiológicos, não somente confirmam e reforçam os achados comportamentais, como também ajuda na compreensão dos mecanismos fisiológicos e perceptuais subjacentes7.
O teste de reconhecimento de sentenças no ruído realizado na condição de campo livre foi aplicado com o propósito de se avaliar o uso que esses sujeitos fazem da audição binaural, e, assim como nos outros testes, foi realizado sem o uso de prótese auditiva, de forma que esta não se apresentasse como fator de viés a depender do seu grau de manutenção, tipo ou marca da prótese auditiva, ajustes ou algoritmos utilizados. Foi o único teste em que se fez uma análise comparativa de desempenho "entre grupos", em oposição aos demais testes cuja comparação foi exclusivamente "intra-aural/interssujeito", dentro de cada grupo específico. O pior desempenho médio geral da relação S/R do GPU comparado ao GNP (
p = 0,001) e GPB (
p = 0,086) revela informações importantes que merecem ser discutidas. Numa análise mais detalhada, o melhor desempenho do GNP pode ser atribuído a dois fatores determinantes para um melhor comportamento comunicativo: grau e tempo de privação auditiva geral. Tal diferença favorável a este grupo, não somente em relação ao GPU como ao GPB, se justifica pelo fato dos participantes do GNP estarem ainda em processo inicial de adaptação de prótese auditiva, evidenciando que o diagnóstico possa ter sido realizado mais recentemente e, portanto, registrem um tempo de perda auditiva menor (
p = 0,029) e que concomitantemente, embora não significante, sejam portadores de um menor grau de comprometimento da audição (
p = 0,216) na comparação com os outros dois grupos. Inversamente, o pior desempenho do GPB em relação ao GNP pode ter sido potencializado pelo fato deste grupo ter revelado um longo período médio de privação geral da audição que antecedeu a adaptação das próteses auditivas. Ainda que se leve em consideração essas importantes variáveis e características de cada sujeito, dentro de cada grupo, não se pode deixar de evidenciar o pior desempenho geral significante do GPU e as dificuldades vivenciadas por esses sujeitos em situação de fala na presença de ruído. O achado estatisticamente significante de um pior desempenho em testes controlados é uma forte evidência que o efeito desta privação é grande o suficiente para comprometer o desempenho comunicativo21.
As evidências mostram que portadores de deficiência auditiva, em uma situação de ruído, via de regra, necessitam de uma relação S/R mais favorável do que precisaria uma pessoa com audição normal22. Os resultados do presente trabalho, portanto, expandem esses achados e sugerem que indivíduos em privação auditiva unilateral necessitam de uma relação S/R ainda mais favorável do que necessitariam os portadores de perda auditiva sejam eles usuários ou não usuários de prótese auditiva bilateral.
Nossos achados reforçam os trabalhos anteriores que evidenciaram que a alteração no processamento auditivo bilateral imposto pela assimetria de estimulação auditiva na adaptação unilateral de amplificação pode provocar mudanças fisiológicas e perceptuais no sistema auditivo, capazes, por sua vez, de gerar um comprometimento nas situações de comunicação3,8.
Ao longo das últimas duas décadas, observa-se um consenso entre audiologistas de recomendar, salvo contraindicações, a adaptação de amplificação bilateral no caso de perda auditiva simétrica bilateral23. É, portanto, preferível evitar intervenções que possam comprometer o equilíbrio e benefício proporcionado pela audição binaural24, como para evitar os possíveis efeitos da privação auditiva unilateral.
É bem verdade que existem relatos de pacientes que, em certas situações de escuta adversa, parecem ter melhor desempenho de fala com uso de somente um aparelho auditivo25. Parece razoável aceitar que o uso de amplificação bilateral pode não ser ideal para todos os pacientes e em todas as situações de comunicação, principalmente se este usuário é idoso e o faz em determinadas situações de escuta difícil, tal como na presença de ruído competitivo. No entanto, a decisão pela recomendação de uso unilateral de prótese auditiva deve estar baseada em evidências clínicas, de forma a não sacrificar os benefícios da estimulação bilateral da audição por problemas possivelmente contornáveis, nem sempre relacionados a fatores audiológicos. Isto inclui investir em protocolos e avaliações clínicas específicas com o objetivo de esclarecer a real natureza das eventuais dificuldades de desempenho apresentadas; garantir um período mínimo de experiência domiciliar, garantir o acompanhamento sistemático de forma a vencer problemas iniciais na adaptação e aclimatização; garantir condições acústicas satisfatórias da prótese auditiva, investir na orientação e aconselhamento ao paciente quanto às vantagens da audição binaural e de um possível comprometimento no desempenho comunicativo futuro decorrente da privação unilateral da audição.
CONCLUSÃOOs resultados deste estudo nos permitem concluir que indivíduos com perda auditiva sensorioneural bilateral e simétrica que fazem uso de prótese auditiva unilateral:
Não apresentaram diferenças interaurais no reconhecimento de fala no silêncio (IRF) ou no reconhecimento de sentenças no ruído (LSP) quando aplicados por meio de fones.
Apresentam pior desempenho na relação sinal/ruído do limiar médio do teste de sentenças no ruído (LSP) realizado em campo livre quando comparados aos indivíduos usuários de prótese auditiva binaurais e não usuários de próteses auditivas.
Apresentam maior latência do potencial P300 na orelha privada auditivamente quando comparada à orelha que faz uso da prótese auditiva.
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1. Doutorado (Professora Instrutora - Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo).
2. Doutorado (Professora - livre docente - Universidade Federal de São Paulo - UNIFESP).
Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo.
Endereço para correspondência:
Margarita Bernal Wieselberg
Rua Itapicuru, nº 203, apto 171. Perdizes
São Paulo - SP. CEP: 05006-000
Fax: (11) 3367-7785.
Este artigo foi submetido no SGP (Sistema de Gestão de Publicações) da BJORL em 21 de março de 2012. cod. 9115.
Artigo aceito em 2 de setembro de 2012.