ISSN 1806-9312  
Quarta, 30 de Outubro de 2024
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429 - Vol. 68 / Edição 3 / Período: Maio - Junho de 2002
Seção: Artigo de Revisão Páginas: 417 a 423
Surdez infantil
Autor(es):
Pedro Oliveira(1),
Fernanda Castro(2),
Almeida Ribeiro(3)

Palavras-chave: surdez infantil, otoemissões acústicas, potenciais evocados, rastreio

Keywords: childhood hearing impairment, otoacoustic emissions, auditory brainstem responses, screening

Resumo: A Surdez Infantil é considerada actualmente um verdadeiro problema de Saúde Pública devido não só à sua elevada prevalência, mas sobretudo às múltiplas conseqüências que acarreta sob os mais variados prismas. Trata-se de um tema em constante evolução, sendo necessárias freqüentes actualizações por forma a acompanhar os avanços da técnica e do conhecimento. Este trabalho visa abordar de uma forma global mas sucinta o problema Surdez Infantil, dando particular ênfase aos Modelos de Rastreio e aos Métodos utilizados com esse fim.

Abstract: Childhood Hearing Impairment is nowadays considered as a Health Care matter due to its high prevalence and to its multiple consequences. As a developing subject, frequent updates are justified to keep up with the evolution of techniques and knowledge. This paper aims to discuss the matter from a global point of view, paying particular attention to the Screening Models and Instruments available.

Introdução

A Surdez Infantil exerce um importante impacto sobre a comunidade, seja do ponto de vista económico, envolvendo altos custos na sua detecção e reabilitação, seja do ponto de vista psicossocial, não apenas para o próprio indivíduo, como também para a sua família e mesmo para a sociedade em geral. De facto, interfere de forma definitiva no desenvolvimento das capacidades verbais e de linguagem da criança, o que acarreta dificuldades de aprendizagem e efeitos deletérios sobre a evolução social, emocional, cognitiva e académica. Torna-se assim fundamental conseguir um diagnóstico precoce, por forma a aproveitar a plasticidade do Sistema Nervoso Central nas idades mais jovens.

A Surdez Profunda Bilateral atinge cerca de 1 em cada 1000 recém-nascidos, valor que se eleva para 20 a 40 por cada 1000 se considerarmos apenas as crianças internadas em Unidades de Cuidados Intensivos Neo-natais (UCIN). Se entrarmos também em conta com os casos de menor gravidade ou unilaterais de surdez (3 a 6 por 1000 RN) e com as situações de deficiência auditiva adquiridas durante a infância, apercebemo-nos da verdadeira magnitude do problema.

Definição e Classificação

A Surdez Infantil Bilateral Permanente é definida como uma perda auditiva bilateral, caracterizada por limiares auditivos superiores a 40 Decibéis (dB) no melhor ouvido, considerando as freqüências de 500, 1000, 2000 e 4000 Hz, sem recurso a prótese auditiva. Pode ser classificada quanto ao seu grau, à data do seu aparecimento e ao nível da lesão auditiva.

No que diz respeito à classificação segundo o grau de surdez (Quadro 1), temos a considerar em primeiro lugar os casos de surdez ligeira em que a palavra é percebida pela criança, apesar de alguns fonemas lhe escaparem. Por outro lado, nos casos de surdez moderada, os limiares de compreensão e de aprendizagem são superiores ao limiar auditivo, o que condiciona várias dificuldades. Nestas situações, a utilização de prótese auditiva e a ortofonia permitem uma aprendizagem quase normal. O mesmo já não acontece quando a surdez é severa ou profunda, pois a palavra não é entendida, o que torna a educação especial e a amplificação indispensáveis.

Quanto ao momento de aparecimento da Surdez, as deficiências auditivas são classificadas de acordo com a aquisição da linguagem e da capacidade de leitura. A Surdez Pós-lingual surge quando a criança já fala e lê, não se acompanhando praticamente de regressão devido ao suporte da leitura. A Surdez Peri-lingual surge nas crianças que falam mas que ainda não lêem, situação em que, se não existir um acompanhamento eficaz, se dá uma rápida degradação da linguagem. A Surdez Pré-lingual é caracterizada pela total ausência de memória auditiva, sendo por isso extremamente difícil a estruturação da linguagem.

Por último, podemos classificar a Surdez Infantil segundo o nível lesional. A Surdez de Transmissão constitui um problema de intensidade insuficiente, não estando associada a distorção auditiva. Trata-se de uma situação extremamente freqüente nas crianças, dez vezes mais comum que as hipoacusias de percepção, e que, quando pura, não provoca uma perda superior a 60 dB, ou seja, não ultrapassa a classificação de moderada. As etiologias mais importantes são adquiridas, nomeadamente as otites seromucosas, os rolhões de cerúmen, os corpos estranhos e as otites crónicas. Quanto às situações congénitas, estas não representam mais de 1% dos casos, podendo indiciar anomalias do ouvido interno.

A Surdez de Percepção ou Neurossensorial deve-se a lesão cóclear ou retro-cóclear e está associada a uma distorção dificilmente compensável da sensação auditiva. Conseqüentemente, constitui uma causa mais freqüente de surdez profunda, sendo necessária uma readaptação específica, de cuja precocidade depende o sucesso da actuação terapêutica. Este tipo de hipoacusia é habitualmente subdividida em genética e não-genética. As situações de causa genética são responsáveis por um terço a metade dos casos e, de acordo com a data de aparecimento, podem ser congénitas (pré-natais) ou pós-natais (Quadro 2). Por outro lado, as situações de causa não genética compreendem as pré-natais, peri-natais e pós-natais (Quadro 3). Existem ainda 2 a 30% de situações em que não é possível classificar a surdez de percepção em nenhuma das categorias expostas, sendo então denominadas de Surdez Neurossensorial de Etiologia Desconhecida.

Por último, a Surdez Infantil Mista surge quando coexistem componentes de condução e de percepção. É necessário estar atento a estas situações, pois o componente de transmissão agrava a deficiência neurossensorial, motivo pelo qual deverá ser sistematicamente procurado e corrigido.

Rastreio

A Surdez Infantil compromete de forma definitiva a aquisição da linguagem e a evolução social, emocional e académica do indivíduo, na medida em que os 3 primeiros anos de vida são os mais importantes para a aprendizagem da fala.

No entanto, antes do início dos programas de Rastreio Universal em alguns estados dos EUA, a idade média de diagnóstico de hipoacusia bilateral profunda rondava os 18 meses a 3 anos de vida, o que é sem dúvida tardio. De facto, o Joint Comittee for Infant Hearing (1994) e o Consenso Europeu de Milão (1998) defendem o diagnóstico até aos 3 meses e a intervenção terapêutica até aos 6 meses de idade, o que justifica a necessidade de rastreio.

Hoje em dia é consensual que a simples observação médica e a suspeita parental não são suficientes para a detecção de surdez no primeiro ano de vida. Assim, na impossibilidade de estudar todos os recém-nascidos, foram definidos por diversas entidades critérios para Rastreio de crianças em risco de surdez (Quadro 4). Devemos, no entanto, ter consciência de que a atenção não se deve limitar aos recém-nascidos, pois cerca de 10 a 20% das crianças que desenvolvem deficiência auditiva profunda o fazem após os 3 meses de idade.

Este tipo de screening, realizado apenas em crianças de risco, é positivo sobretudo do ponto de vista económico, pois obriga à realização de testes em apenas 10% dos recém-nascidos. Assim, é útil na impossibilidade de rastrear todas as crianças e como início de um programa de rastreio mais abrangente. A sua grande desvantagem consiste no facto de detectar apenas metade dos casos de Surdez significativa.

Daí o NIH Consensus Statement e o Consenso Europeu de Milão terem definido como objectivo o Rastreio Universal dos recém-nascidos através de métodos rápidos, fiáveis e de fácil execução. De facto, a Surdez Infantil preenche todos os critérios para ser alvo de Rastreio Universal pois trata-se de uma doença dificilmente detectável por parâmetros clínicos, existem testes de fácil utilização e com altas sensibilidade e especificidade, existem possibilidades de intervenção terapêutica de cuja precocidade depende um melhor prognóstico e a relação custo/eficácia conseguida é boa. Na verdade, o Rastreio da Surdez infantil é até mais económico que os rastreios da fenilcetonúria, do hipotiroidismo e da anemia falciforme.

Com esse propósito, foi então criado nos EUA o Marion Downs National Center for Infant Hearing, em que participam 19 Estados, e que tem como meta a implementação do Rastreio Universal, abrangendo mais de 95% dos RN.

Métodos de Rastreio

De uma forma geral, os métodos de rastreio considerados hoje em dia mais importantes são os Testes Comportamentais, os Potenciais Evocados Auditivos do Tronco Cerebral e as Otoemissões Acústicas.

Testes comportamentais

Os métodos comportamentais de rastreio e de avaliação auditiva de que se dispunha até há alguns anos eram considerados rudimentares e pouco fiáveis. No entanto, a aquisição de novo material e a utilização de novos métodos permite encarar a Audiologia Comportamental como útil, sobretudo quando associada aos métodos electrofisiológicos.

Audiometria de Observação Comportamental

Este teste utiliza-se sobretudo entre o nascimento e os 6 meses de idade, consistindo numa estimulação em campo livre através de um som ou ruído de grande intensidade cuja freqüência é controlada pelo operador. A resposta a procurar pode ser uma alteração do padrão de sono ou da expressão facial, bem como o despertar do reflexo de Moro ou do reflexo cócleo-palpebral. Este grupo de testes, que inclui a bébémetria - método de Veit-Bizaguet e o Crib-o-Gram, apresenta como principais desvantagens a não-detecção de surdez unilateral ou ligeira, a possibilidade de habituação à resposta e o facto de depender do técnico e da vigília da criança. Daí não dever ser utilizado isolado, sem métodos electrofisiológicos.

Audiometria de Reforço Visual

É utilizada a partir dos 6 meses, idade em que a criança adquire um controlo suficiente do pescoço e do tronco e a partir da qual é possível originar o binómio estímulo/ resposta condicionada. Consiste na utilização de estímulos visuais, incluindo luzes ou brinquedos em movimento, como reforço para a resposta ao estímulo auditivo.

Testes de Pesquisa de Reflexos de Orientação - Investigação

Estes testes, que incluem o Teste do Nome e o Teste de Boel, utilizam-se essencialmente entre os 6 meses e os 2 anos de idade. Consistem no provocar do reflexo acutrópico ou de orientação/ investigação em que a criança procura o som com a cabeça.

Condition Play Audiometry

Trata-se de uma progressão natural após a audiometria de reforço visual, sendo importante nas crianças já habituadas a esse teste e naquelas com idade superior a 3 anos. Consiste na realização de uma tarefa simples, como o colocar de um objecto num cesto após a percepção do estímulo auditivo.

Audiometria Lúdica (Peep-show)

O Peep-show utiliza-se no mesmo grupo etário, sendo a audição do som pela criança assinalada pelo carregar num botão, o que por sua vez activa um dispositivo que proporciona ao examinado uma recompensa, como um rebuçado ou um chocolate.

Audiometria em Cabine Fechada

Para a realização deste tipo de teste são já necessários graus de maturação e de coordenação assinaláveis, o que acontece por volta dos 3 a 4 anos de idade. Este método comporta a vantagem de avaliar separadamente cada um dos ouvidos de forma eficaz. No que diz respeito à Audiometria Vocal, esta é mais fiável que a Tonal em crianças com idade inferior a 5 anos, permitindo uma melhor exploração do nível global de percepção e de discriminação da palavra. A Audiometria Tonal tem maior interesse após os 5 anos, idade a partir da qual as crianças são capazes de realizar os testes dos adultos.

Os Métodos Comportamentais deverão ser realizados em ambiente silencioso e, sempre que a criança não consiga passar num determinado teste apropriado para a sua idade, deverá ser realizado um outro mais básico.

De um modo geral, as desvantagens destes testes consistem no consumo de tempo e de pessoal qualificado, na necessidade de um espaço físico apropriado, no facto de serem difíceis de realizar em não-cooperantes, e de apresentarem baixa sensibilidade no rastreio de Surdez. Hoje em dia é consensual que a Audiometria Comportamental nas idades mais jovens tem um valor limitado, podendo no entanto constituir um importante método de screening para além do período neo-natal.

Potenciais Evocados Auditivos do Tronco Cerebral (BERA)

Desde a primeira descrição dos Potenciais Evocados Auditivos em 1971 por Jewett e Williston o seu interesse em O.R.L. tem sido crescente, sendo considerado por muitos o método mais objectivo de avaliação auditiva no RN. Traduzem a actividade do nervo auditivo até ao tronco cerebral em resposta a estímulos auditivos, que em situações de rastreio são habitualmente "clicks", e cuja resposta reflecte a activação neuronal síncrona da via auditiva. A resposta surge habitualmente ao fim de 5 a 6 milisegundos, manifestando-se sob a forma de uma série de ondas. A onda V, a mais importante, permite a definição do limiar electrofisiológico, que consiste na intensidade mínima capaz de a desencadear. Através desse valor faz-se então a extrapolação do limiar audiométrico, que se situa cerca de 20 dB abaixo do primeiro. É necessário termos consciência que os tempos de latência e as amplitudes das ondas em crianças com menos de 18 meses variam com a idade, e assim a comparação deverá ser feita de acordo com o escalão etário. De facto, à medida que a idade aumenta a latência diminui e a amplitude cresce, facto que se pensa dever à progressiva mielinização, ao aumento do diâmetro axonal e à maior funcionalidade das sinapses.

Os BERA apresentam algumas vantagens em relação aos outros métodos de rastreio, pois são independentes da resposta voluntária, não são invasivos, são altamente reprodutíveis e fiáveis, apresentam alta sensibilidade e possuem uma especificidade superior às Otoemissões, o que lhes permite ter menor taxa de referências (3 a 5%) e poucos falsos-positivos. Em situações particulares, como na hiperbilirrubinemia, os Potenciais Evocados são também fundamentais pois a lesão da via auditiva é retro-cóclear, a nível dos núcleos cocleares, podendo assim passar despercebida em outros testes como as Otoemissões Acústicas. São também importantes na recentemente descrita Neuropatia Auditiva, entidade que se caracteriza por Otoemissões normais e BERA ausentes ou francamente alterados. No que diz respeito às suas desvantagens, são de enumerar os altos custos e gastos de tempo, a necessidade de pessoal qualificado e a capacidade de avaliação da resposta limitada a freqüências entre 1 a 4 kHz, com défice nas freqüência agudas e graves.

Trata-se assim de um método pouco adequado como primeira linha no Rastreio Universal, sendo preferencialmente utilizado em crianças de risco, nomeadamente nas internadas em UCIN, ou nas situações em que o rastreio por outros métodos seja positivo.

Para obviar às desvantagens referidas foi recentemente desenvolvido um novo tipo de Potenciais Evocados, os BERA Automáticos. Estes utilizam um estímulo com espectro acústico entre 750 e 5000 kHz, compreendendo equipamento de redução do ruído e da actividade miogénica, o que permite a sua utilização em RN a fazer oxigenoterapia, e um método de análise algorítmica facilmente interpretável que classifica o resultado em "pass/refer". Apresentam uma concordância com os BERAs clássicos da ordem dos 95%, sendo fáceis, rápidos e minimamente influenciados por derrame do ouvido médio ou cerúmen, o que os coloca como um potencial bom instrumento de Rastreio Universal.

Quadro 1. Classificação da Surdez Infantil segundo o seu Grau.



Quadro 2. Hipoacusias Neurossensoriais de causa Genética.

Hipoacusias Neurossensoriais de causa Genética
Congénitas:
    Displasias (Michel, Mondini, Sheibe)
    SNS genética congénita não associada a malformações
    SNS genética congénita associada a malformações:
    Dismorfias cranianas (S. Crouzon)
    Dismorfias das extremidades (S. Wildewanck)
    Anomalias da pigmentação (S. Waardenburg)
    Doenças oftalmológicas (S. Usher, S. Halgren)
    Doenças cardíacas (S. Jervell e Lange-Nielsen)
    Patologia tiroideia (S. Pendred)
    Aberrações cromossómicas (trissomias e monossomias)
    Síndrome do aqueduto vestibular largo
    Fistula peri-linfática congénita
Pós-natais:
    SNS genética pós-natal não associada a malformações
    SNS genética pós-natal associada a malformações:
    Doenças metabólicas (mucopolissacaridoses)
    Malformações oftalmológicas (S. Cockayne)
    Doença renal (S. Alport, S. Fanconi)
    Malformações esqueléticas (S. Klippel-Feil)
    Doenças neurológicas (Neurofibromatose)

Quadro 3. Hipoacusias Neurossensoriais de causa Não Genética.

Hipoacusias Neurossensoriais de causa Não Genética

Pré-natais:
    Ototóxicos durante a gravidez (aminoglicosídeos, diuréticos, talidomida, álcool)
    Infecções congénitas (Rubéola, CMV, outras TORCH)
    Outras causas (hemorragias do 1º trimestre, deficiências vitamínicas, hormonoterapia, irradiação pélvica)
Peri-natais:
    Icterícia neo-natal grave
    Baixo peso (<1500 gr) e Prematuridade
    Asfixia peri-natal
    Traumatismo do parto
Pós-natais:
    Infecções (labirintite, meningite, parotidite, sarampo,...)
    Traumatismos cranianos
    Traumatismos sonoros
    Fármacos ototóxicos
    Neoplasias (neurinoma do acústico, leucemias)
    Doenças metabólicas (hipotiroidismo, diabetes)
    Doenças auto-imunes
    Surdez Súbita Idiopática

Quadro 4. Factores de Risco de Surdez Infantil.

Factores de Risco de Surdez Infantil
Neo-natais:
    História familiar de surdez
    Infecções congénitas TORCH
    Malformações anatómicas da cabeça e pescoço
    Baixo peso (<1500 gr)
    Hiperbilirrubinemia grave
    Estigmas de síndromes associados a surdez
    Uso materno de drogas ou ototóxicos
    Asfixia peri-natal com Apgar < 4
    Internamento em UCIN
    TCE no parto
Durante a infância (>3 meses):
    Meningite bacteriana, Encefalite ou Labirintite
    CMV peri-natal
    Trauma acústico
    TCE
    Ototóxicos
    História familiar
    Otites médias repetidas com derrame

Quadro 5. Mecanismos fisiológicos das Otoemissões Acústicas.



Quadro 6. Modelo de Rastreio Universal (NIH).



Otoemissões Acústicas (OEA)

A origem histórica das Otoemissões remonta ao ano de 1948, data em Gold argumentou que a cóclea seria capaz de uma grande selectividade de freqüências através de mecanismos de feedback activo existentes com gasto energético mínimo. No entanto, apenas 30 anos depois David Kemp seria capaz de provar que este mecanismo de feedback é capaz de produzir sons de baixa intensidade (10 a 15 dB) captáveis no canal auditivo externo, os quais denominou de Otoemissões Acústicas. Kemp revolucionou a fisiologia auditiva ao demonstrar a existência de mecanismos activos e de reflexões internas ao nível da cóclea, tendo constatado a sua não linearidade e a sua distorção, características necessárias para a detecção de sons de baixa intensidade e para a distinção de sons de freqüências aproximadas.

Hoje em dia está bem documentada a origem das OEA nos movimentos de contracção/extensão das células ciliadas externas do Órgão de Corti e a sua função amplificadora (Quadro 5).

A importância clínica das OEA advém do facto de a maioria das patologias causadoras de Surdez Neurossensorial, nomeadamente as associadas a Surdez Infantil, apresentarem, como lesão primária ou secundária, disfunção das células ciliadas externas.

Ao Otoemissões podem ser divididas em Espontâneas, quando surgem na ausência de estimulação, e em Evocadas, quando se seguem à estimulação. As primeiras estão presentes em 60% dos indivíduos normais, rondando a sua intensidade os 10 a 20 dB e a sua freqüência os 1 a 2 kHz. Quanto às Otoemissões Evocadas, estas incluem as OEA Estímulo-Freqüência, as OEA Evocadas Transitórias e as OEA Produtos de Distorção.

As Otoemissões Estímulo-Freqüência resultam da estimulação com um som tonal contínuo de baixa intensidade. A sua aceitação clínica é reduzida devido à necessidade de equipamento sofisticado para diferenciar o estímulo da resposta, cujas freqüências são muito próximas.

As OEA Evocadas Transitórias, as primeiras descritas por Kemp, constituem o método mais utilizado devido à sua fácil realização e à acessibilidade do "software" necessário. Resultam da estimulação acústica transitória de toda a cóclea através de um "click" emitido por um altifalante, sendo captadas por um microfone no canal auditivo externo. A sua avaliação está limitada a freqüências abaixo dos 5 kHz. A presença de uma resposta positiva sugere um limiar auditivo inferior a 30 dB, sendo diversos os parâmetros utilizados conforme os autores. Trata-se de um excelente método de rastreio pois é rápido, confiável, independente da cooperação e não invasivo.

As OEA Produtos de Distorção são conseqüência da estimulação coclear simultânea por dois sons tonais puros com freqüências aproximadas (F1 e F2), o que resulta numa sobreposição do padrão de excitação da membrana basilar, em cuja região têm origem as Otoemissões. O Produto de Distorção mais importante é o denominado Tom de Diferença Cúbica, calculado pela fórmula 2F1-F2. Habitualmente a resposta positiva, atribuída quando a relação sinal/ruído é superior a 6 dB em pelo menos 3 freqüências, encontra-se cerca de 50 a 60 dB abaixo da intensidade de F1. No entanto, é importante ter em conta que quer a intensidade dos Produtos de Distorção quer o nível de ruído são mais elevados nas crianças que nos adultos. Este método de Otoemissões apresenta algumas vantagens em relação aos demais pois além de ser menos influenciável pelo ruído, possibilita a avaliação de freqüências até aos 8 kHz, permitindo uma precisão muito superior em termos de resolução de freqüências e de localização das lesões cocleares, o que pode ser extremamente importante no escolha da prótese auditiva mais adequada. A sua grande desvantagem é o seu elevado custo.

No que diz respeito aos aspectos práticos das Otoemissões em geral, estas devem ser sempre realizadas num ambiente o mais silencioso possível. Segundo Kemp, os RN após as 24 horas constituem os melhores sujeitos para a realização de OEA, na medida em que já não é provável a presença de líquido amniótico nos canais auditivos, são facilmente acessíveis ao rastreio, têm longos períodos de sono e estão relativamente livres de derrame do ouvido médio.

As vantagens das OEA em relação aos BERA incluem a menor necessidade de preparação da criança, a sua maior rapidez e a sua facilidade de interpretação. A isso acresce o facto de os seus custos serem aceitáveis, de testarem todas as estruturas periféricas da audição e de possuírem uma sensibilidade extremamente elevada para limiares auditivos superiores a 30 dB. As principais desvantagens das OEA são a sua susceptibilidade ao ruído, o facto de serem influenciadas por disfunção de outras estruturas que não a cóclea, como o ouvido médio ou externo, e a possibilidade de não serem capazes de detectar algumas patologias retro-cocleares como a hipoacusia da hiperbilirrubinemia e os neurinomas do acústico. Um outro problema das Otoemissões é a sua baixa especificidade, o que provoca taxas de referência para avaliação auditiva pós-rastreio de 10 a 20%. No entanto, esta situação pode ser minorada pela repetição do teste, o que reduz as referências para 3 a 5%.

Modelos de Rastreio Auditivo

O modelo ideal de rastreio da Surdez Infantil tem sido alvo de aceso debate. Existem múltiplos esquemas utilizando um ou vários instrumentos, não tendo ainda sido possível chegar a qualquer tipo de consenso.

O modelo para Rastreio Universal preconizado pela NIH é o que reúne mais apoiantes (Quadro 6). Este tipo de avaliação combina a alta sensibilidade e facilidade técnica das OEA com a especificidade dos BERA. Permite assim a identificação eficaz de quase 100% dos deficientes auditivos graves sem, no entanto, causar falsos positivos exagerados, o que provocaria uma sobrecarga das consultas de follow-up.

Por outro lado, o próprio Rastreio de Crianças em Risco é também alvo de controvérsia quanto aos métodos a utilizar. Assim, enquanto alguns autores defendem a realização de OEA seguidas de BERA, outros advogam a utilização dos BERA como testes de primeira linha.

Em qualquer das situações é necessária atenção às constantes evoluções do conhecimento e da técnica, pois novos esquemas e novos métodos, como os Produtos de Distorção e os BERA automáticos, podem brevemente assumir posições de destaque.

Avaliação do deficiente auditivo

Os objectivos que a avaliação da criança potencialmente deficiente auditiva persegue são essencialmente a confirmação de hipoacusia grave, a identificação da sua etiologia e o rastreio de outras anomalias. Para isso é necessário uma história clínica cuidada, provavelmente a etapa mais produtiva da avaliação, e um exame objectivo adequado, abrangendo não apenas a observação O.R.L., mas também as características gerais da criança. O estudo audiológico é realizado através dos BERA e das OEA, bem como através de Testes Comportamentais e de Impedancimetria. A Tomografia Computadorizada tem particular interesse em caso de meningites recorrentes, de Surdez súbita ou progressiva, ou ainda nas crianças propostas para Implante Cóclear, nas quais há necessidade de comprovar a patência do ducto coclear. A avaliação deverá ainda incluir um estudo laboratorial geral e, eventualmente, a referência a outras especialidades, nomeadamente às consultas de Genética, Oftalmologia e Pediatria.

Por último, durante todas as fases de avaliação, é fundamental termos sempre em perspectiva o apoio aos Pais. O anúncio de uma Surdez, sobretudo quando os pais não suspeitavam da deficiência, constitui sempre um choque, manifestando-se muitas vezes sob a forma de negação, medo, culpa e depressão. Assim, a equipa deverá ser sensível às repercussões familiares, fornecendo informações sobre a doença e suas conseqüências, encorajando o diálogo com a criança e assistindo os pais na sua escolha de métodos terapêuticos e de escolarização adequados. Como Webster afirmou "é impossível magoar o outro apenas por ouvi-lo (...) e por lhe fornecer a informação de que precisa. Neste tipo de aconselhamento o clínico funciona como espectador, pondo de parte o seu julgamento pessoal, tentando aceitar os pais como eles são e serão".

Conclusão

A Surdez Infantil constitui, de facto, um tema de extrema importância para o Otorrinolaringologista, para o Pediatra e para o Audiologista, não só devido às suas conseqüências, como também pelos múltiplos problemas sob o ponto de vista diagnóstico e terapêutico que coloca. De facto, hoje são várias as opções terapêuticas disponíveis e, como tal, devemos estar prontos a oferecer o melhor dos nosso saber a estas crianças. A evolução dos conhecimentos é cada vez mais rápida, justificando e exigindo actualizações cada vez mais freqüentes.

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1 Interno Complementar de O.R.L.
2 Assistente Hospitalar de O.R.L.
3 Director de Serviço de O.R.L.

Serviço de Otorrinolaringologia do Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia

Contacto: Dr. Pedro Oliveira - Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia - Serviço de O.R.L.
Rua Conceição Fernandes 4434-502 Vila Nova de Gaia - Porto - Portugal - Telefone: +351 22 7865100 - Ext. 1433 - E-mail: pedro.j.oliveira@mail.pt

Artigo recebido em 18 de maio de 2001. Artigo aceito em 25 de julho de 2001.
Indexações: MEDLINE, Exerpta Medica, Lilacs (Index Medicus Latinoamericano), SciELO (Scientific Electronic Library Online)
Classificação CAPES: Qualis Nacional A, Qualis Internacional C


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