INTRODUÇÃO
A utilização de animais em experimentos científicos é descrita desde o século V a.C. No entanto, sua crescente aplicação ocorreu a partir do início do século XIX. Vários avanços científicos na área da saúde são atribuídos aos modelos animais.
A questão do status moral dos animais sempre foi debatida. Muitos filósofos dedicaram-se a este tema. No entanto, a controvérsia permanece até os dias atuais, não havendo consenso quanto à posição que os animais ocupam em relação aos seres humanos1.
No Brasil, por muitos anos, não havia regulamentação para o uso de animais em experimentação científica e eram seguidos normas e princípios criados por organizações nacionais e internacionais. Recentemente, foi sancionada a lei nº 11.794/08 (Lei Arouca), que estabelece procedimentos para o uso científico de animais2.
Na otorrinolaringologia, são utilizadas várias espécies de animais em experimentos científicos, tendo cada subárea seus modelos com maior aplicabilidade.
O presente artigo tem como objetivo uma revisão histórica e resumo da legislação atual, para orientar pesquisadores que pretendem utilizar modelos animais em seus projetos de pesquisa.
REVISÃO DA LITERATURA
Experimentos com animais
A utilização e cuidados com animais são citados desde meados de 500 a.C., época em que Pitágoras acreditava na metempsicose, doutrina segundo a qual uma mesma alma pode animar sucessivamente corpos diversos, homens, animais ou mesmo vegetais. As investigações na área provavelmente tiveram início com os estudos de Hipócrates (450 a.C.), que relacionava o aspecto de órgãos humanos doentes com o de animais. Os anatomistas Alcmaeon (500 a.C.), Herophilus (330-250 a.C.) e Erasistratus (305-240 a.C.) realizavam vivissecções animais com o objetivo de observar estruturas e formular hipóteses sobre seu funcionamento. Aristóteles (384-322 a.C.) realizou estudos comparativos entre órgãos humanos e de animais, constatando semelhanças e diferenças de conformação e funcionamento3. Cerca de 500 anos depois, Galeno (131-201 d.C.) ficou conhecido como um dos precursores das ciências médicas experimentais por realizar vivissecções com objetivos experimentais, retomadas por Vesalius em 1514 até 1564. William Harvey publicou, em 1638, talvez a primeira pesquisa científica com animais, sob o título Exercitatio anatomica de motu cordis et sanguinis in Animalibus, com resultados da fisiologia circulatória de mais de 80 diferentes espécies animais. Seguiram-se importantes contribuições também dos cientistas René Réaumur (1683-1757) e Stephen Hales (1677-1761)4.
Em defesa dos animais
O filósofo inglês Jeremy Bentham (1748-1842) é historicamente responsável pela sistematização do utilitarismo, doutrina ética em que o que determina se a ação é correta é o benefício intrínseco exercido à coletividade, ou seja, quanto maior o benefício, tanto melhor a ação. Esse benefício deve ser aplicado a todos os seres dotados de sensibilidade, sendo legítimo incluir todos os animais na moralidade de um ato. Em sua obra Uma Introdução aos princípios da moral e da legislação cita: "...o problema não consiste em saber se os animais podem raciocinar; tampouco interessa se falam ou não; o verdadeiro problema é este: podem eles sofrer?". Provavelmente, a partir de suas ideias surgem as primeiras ações de proteção aos animais.
A primeira sociedade protetora dos animais foi criada na Inglaterra, em 1824, com o nome de Society for the Preservation of Cruelty to Animals.
Claude Bernard, conhecido por ser o pai da fisiologia experimental contemporânea, em 1860, utilizando o cachorro de estimação da sua filha para demonstrações a seus alunos, provocou descontentamento por parte de sua esposa, que criou a primeira associação em defesa dos animais de laboratório.
A primeira lei a regulamentar o uso de animais em pesquisa foi proposta no Reino Unido, em 1876, pelo British Cruelty to Animal Act. Somente em 1909 surge a primeira publicação norte-americana sobre aspectos éticos da utilização de animais em experimentação.
William M.S. Russell e Rex L. Burch - 1959 - publicaram um livro estabelecendo o princípio dos "3 Rs" (Replace, Reduce e Refine) para a pesquisa utilizando animais, racionalizando recursos e humanizando cuidados. Preconizavam a substituição (replace) dos animais por outros métodos alternativos, tais como testes in vitro, modelos matemáticos, simulações por computador. A redução (reduce) do número de animais utilizados, acompanhada pelo aumento da qualidade do tratamento estatístico dado para pequenas amostras, pode ser uma importante alternativa. O refinamento das técnicas utilizadas (refine) tem por objetivo diminuir a dor e o sofrimento durante pesquisas com animais, incluindo cuidados com analgesia e assepsia no pré, trans e pós-operatório.
O debate sobre a utilização de animais em pesquisas e em outras atividades como os realizados em abatedouros, criação, transporte e indústrias de cosméticos ressurgiu provavelmente devido à publicação de 1975 do professor Peter Singer. O seu livro Animal Liberation causou polêmicas mundiais principalmente devido aos relatos das condições a que os animais eram submetidos. A publicação contribuiu para a inclusão de uma salvaguarda ao uso de animais na Declaração de Helsinque II, adotada na 29ª Assembleia Mundial de Médicos, no Japão, também em 1975. A Libertação Animal, com edição brasileira de 2004, é citado como o livro mais importante sobre ética animal. No ano de 1978, em reunião realizada em Bruxelas, a UNESCO estabeleceu a Declaração Universal dos Direitos dos Animais, que lançou grandes temas de discussão5.
Em seus artigos iniciais, versa sobre os direitos iguais à existência de todos os animais e o direito a ser respeitado pelo homem. No Artigo 8º, afirma que a experimentação animal que implique sofrimento físico ou psicológico é incompatível com os direitos do animal, quer se trate de uma experiência médica, científica, comercial ou qualquer que seja a forma de experimentação e que as técnicas de substituição devem ser utilizadas e desenvolvidas.
Durante a década de 80, o movimento para eliminar o uso de animais em pesquisas biomédicas cresceu assustadoramente, principalmente nos Estados Unidos, Inglaterra, Canadá e Austrália. As ações destes manifestantes atingiram tal magnitude que a Associação Mundial de Medicina publicou uma declaração específica sobre o uso de animais em pesquisas6.
Legislação brasileira
A primeira lei brasileira em respeito aos animais foi o Decreto-Lei nº 24.645, de 10 de julho de 1934, que apesar de não ter sido revogada, nunca foi regulamentada. Determinava que todos os animais eram tutelados do Estado e estabelecia multa e pena para quem aplicasse maus tratos aos animais. No inciso IV de seu § 3º, incluía entre as definições de maus tratos "Golpear, ferir ou mutilar voluntariamente qualquer órgão ou tecido de economia, exceto a castração, só para animais domésticos, ou operações outras praticadas em benefício exclusivo do animal e as exigidas para defesa do homem, ou no interesse da ciência".
Em maio de 1979, foi publicada no Brasil a Lei nº 6.638, que estabeleceu as Normas para a Prática Didático-Científica da Vivissecção de Animais. Em 1998, foi sancionada no Brasil a Lei de Crimes Ambientais, que estabelece crime e define multa e pena para quem praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos. Incluem nas mesmas penas quem realiza experiência dolorosa ou cruel em animal vivo, ainda que para fins didáticos ou científicos, quando existirem recursos alternativos.
Atualmente, a lei nº 11.794/08 (Lei Arouca) regulamenta o inciso VII do § 1º do art. 225 da Constituição Federal, estabelecendo procedimentos para o uso científico de animais, revogando a Lei nº 6.638, de 8 de maio de 1979. Em 15 de julho de 2009, foi publicado o decreto 6.899, que regulamenta a Lei Arouca.
A Lei Arouca estabelece a criação do CONCEA (Conselho Nacional de Controle de Experimentação Animal) e torna obrigatória a constituição das CEAUs (Comissões de Ética no Uso de Animais) em instituições com atividades de ensino ou pesquisa com animais. Em seu capítulo IV, que versa sobre condições de criação e uso de animais para ensino e pesquisa científica, estabelece, entre outros, que o animal só poderá ser submetido às intervenções recomendadas nos protocolos dos experimentos que constituem a pesquisa ou programa de aprendizado quando antes, durante e após o experimento receber cuidados especiais, conforme estabelecido pelo CONCEA.
Quando recomendada, a eutanásia deverá ser realizada conforme as diretrizes do Ministério da Ciência e Tecnologia. Sempre que possível, as práticas de ensino deverão ser fotografadas, filmadas ou gravadas, de forma a permitir sua reprodução para ilustração de práticas futuras. O número de animais a serem utilizados para a execução de um projeto e o tempo de duração de cada experimento será o mínimo indispensável para produzir o resultado conclusivo. Devem ser usadas anestesia e analgesia adequadas, não podendo ser utilizados bloqueadores neuromusculares em substituição a estes.
Quando o objeto do estudo for relacionado ao mecanismo da dor, exige se autorização específica da CEUA. O mesmo animal não deve ser reutilizado depois de alcançado o objetivo principal da pesquisa. Em programa de ensino, sempre que forem empregados procedimentos traumáticos, vários procedimentos poderão ser realizados num mesmo animal, desde que todos sejam executados durante a vigência de um único anestésico e que o animal seja sacrificado antes de recobrar a consciência.
Os artigos 17 e 18 definem as penalidades para as instituições e para pessoas que transgredirem o seu regulamento, incluindo advertência, multa, suspensão, interdição temporária e definitiva das atividades reguladas.
Animais de experimentação em otorrinolaringologia
O pesquisador deve buscar na literatura ajuda para escolha dos animais mais utilizados em trabalhos científicos específicos para área estudada6-8.
Nos biotérios brasileiros, três espécies são mais utilizadas para o estudo, todas pertencentes aos mamíferos: o rato (pelo porte e quantidade); o coelho (pela mansidão e facilidade de manuseio) e o cão (pelo porte e constituição anatômica)6-8. Em busca no site da Bireme, realizada com os termos "animal" e "otorrinolaringologia", diversos estudos em português foram encontrados utilizando os seguintes animais: estudos com laringe utilizaram o coelho, porco, cachorro, cobaias (Cavia porcellus) e camundongo; estudos para face, coelho, rato e cachorro; rinoplastia, coelho; e orelha interna, cobaias (guinea pig e albinas).
No estudo de Albuquerque et al.4 comenta-se que na pesquisa otológica, os animais mais frequentemente utilizados são a cobaia e o rato, pela similaridade da orelha destes com a orelha humana. Eles concluem que a cobaia melhor se aplica para a maioria dos procedimentos, mas que o rato também pode ser utilizado para alguns procedimentos4.
Alternativas ao uso de animais
O uso de modelos alternativos e modelos in vitro são opções cada vez mais presentes na área da saúde.
Cientistas brasileiros desenvolveram modelos matemáticos de equações aerodinâmicas e viscoelásticas da laringe, em programas de computador reproduzem características anatômicas e fisiológicas da laringe, podendo ser utilizados como ferramentas de ensino6. Recentemente, um grupo canadense desenvolveu uma estação virtual de ensino de anatomia e cirurgia laríngea, baseada em reconstruções de cortes tomográficos e de ressonância nuclear magnética7.
O desenvolvimento de um modelo para simulação de cirurgias endoscópicas nasossinusais e de base do crânio, denominado S.I.M.O.N.T. (Sinus Model Otorrino Neuro Trainer), também idealizado com a contribuição de otorrinolaringologistas brasileiros, permite a simulação de um completo ato cirúrgico, onde se tem consistências de tecidos e até sangramentos verossímeis, sendo ferramenta útil de treinamento. O S.I.M.O.N.T. permite realização de operações nasais, sinusais e da base anterior do crânio. É possível a observação de tecidos doentes com processo inflamatório, cistos e tumores.
Para o estudo da anatomia da orelha e simulação de dissecções do osso temporal, foi desenvolvido um programa na Dinamarca, que está disponível para "download" gratuitamente na internet. "The visible ear simulator" foi desenvolvido a partir de imagens de cortes de ossos temporais de cadáveres humanos frescos congelados e reconstruídos em alta definição. Para a simulação do ato cirúrgico, é necessário que o computador possua uma placa de vídeo de alta definição e um apontador óptico que permite a interação8.
Várias instituições de ensino em todo o mundo têm pesquisado o desenvolvimento de modelos para ensino e pesquisa que podem substituir a utilização de animais.
COMENTÁRIOS FINAIS
São cada vez mais frequentes os movimentos dos antiviviseccionistas contra as pesquisas que utilizam animais.
Estudos com animais exigem do pesquisador planejamento cuidadoso, conhecimento das leis e diretrizes do país, princípios éticos, regras e condições da revista em que o trabalho será publicado e, principalmente, ter conhecimento de estudos anteriores na mesma área. Deve-se ter em mente os objetivos da pesquisa e estar claro que para o experimento é indispensável o uso de animais vivos.
O direito dos animais deve ser respeitado, assim como o desenvolvimento da pesquisa em beneficio da humanidade. Respeito, conhecimento e responsabilidade devem ser a base para planejar um trabalho com animais5.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1. Raymundo MM, Goldim JR. Ética em pesquisa em modelos animais. Bioética. 2002;10(1):31-44.
2. Schnaider TB, Souza C. Aspectos éticos da experimentação animal. Rev Bras Anestesiol. 2003;53(2):278-85.
3. Petroianu A. Aspectos éticos na pesquisa em animais. Acta Cir Bras. 1996;11(3):157-64.
4. Albuquerque AAS, Rossato M, Oliveira JAA, Hyppolito MA. Understanding the anatomy of ears from guinea pigs and rats and its use in basic otologic research. Braz J Otorhinolaryngol. 2009;75(1):43-9.
5. Menezes HS. Ética e pesquisa em animais. Rev AMRIGS. 2002;46(3,4):105-8.
6. Rosa Mde O, Pereira JC, Grellet M, Alwan A. A contribution to simulating a three-dimensional larynx model using the finite element method. J Acoust Soc Am. 2003;114(5):2893-905.
7. Hu A, Wilson T, Ladak H, Haase P, Fung K. Three-dimensional educational computer model of the larynx: voicing a new direction. Arch Otolaryngol Head Neck Surg. 2009;135(7):677-81.
8. Sorensen MS, Mosegaard J, Trier P. The visible ear simulator: a public PC application for GPU-accelerated haptic 3D simulation of ear surgery based on the visible ear data. Otol Neurotol. 2009;30(4):484-7.
1. Professor Livre Docente em Otorrinolaringologia pela Faculdade de Medicina da USP (Médico responsável pelos grupos de Estomatologia e ORL/AIDS da Divisão de Clínica ORL do HC-FMUSP). 2. Fonoaudióloga; Mestranda pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (Fonoaudióloga da Equipe de Implante Coclear do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, HC-FMUSP, São Paulo, SP). 3. Otorrinolaringologista (Doutoranda da Disciplina de ORL da Faculdade de Medicina da USP). 4. Otorrinolaringologista e Cirurgiã geral, membro da equipe interdisciplinar da base do crânio, Hospital Geral de Fortaleza/SUS (Doutoranda em Otorrinolaringologia pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo; Conselheira do Conselho Regional de Medicina do Estado do Ceará). 5. Professor doutor de Bioética do Departamento de Medicina Legal, Ética Médica, Medicina Social e do Trabalho da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo - USP. (Conselheiro do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo - CREMESP, Coordenador da Câmara técnica de Bioética do CREMESP).
Disciplina de Otorrinolaringologia da Faculdade de Medicina da USP e Disciplina de Medicina Legal, Ética Médica e Medicina do Trabalho da Faculdade de Medicina da USP.
Endereço para correspondência: Ivan Dieb Miziara Rua Teodoro Sampaio, 352 - 22 São Paulo - SP. CEP: 05406-000
Este artigo foi submetido no SGP (Sistema de Gestão de Publicações) da BJORL em 13 de dezembro de 2010. cod. 7467. Artigo aceito em 27 de março de 2011.
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