INTRODUÇÃO Devido aos avanços da tecnologia dos implantes cocleares (IC) e das estratégias de processamento da fala, indivíduos com deficiência auditiva grave a profunda puderam ouvir sons e reconhecer fala em diferentes graus1. A variabilidade nos resultados audiológicos entre pacientes portadores de surdez pós-lingual tem sido grande, e os preditores mais importantes para um bom resultado são um curto período de privação auditiva pré-implantação e alguma audição residual2. Por isso, a indicação para o IC tem se estendido e inclui uma população cada vez maior1.
Nos últimos anos, foram publicados diversos estudos comparando os resultados auditivos obtidos por pacientes portadores de perda auditiva grave a profunda que faziam uso de aparelho de amplificação sonora individual (AASI) ou IC3. O objetivo deste estudo é avaliar em quais pacientes portadores de surdez pós-lingual o IC traz benefício auditivo superior ao da prótese auditiva convencional, utilizando como referência trabalhos disponíveis na literatura mundial.
MATERIAIS E MÉTODOS Este estudo constitui-se de uma revisão sistemática da literatura médica, após busca realizada em junho de 2010, incluindo artigos de língua portuguesa, inglesa e espanhola. A busca de referências relevantes se fez pela exploração de bancos de dados das bases SciELO, Cochrane, MEDLINE e LILACS-BIREME. Foram selecionadas publicações que apresentassem força de evidência A ou B entre todos os trabalhos disponíveis até a data da investigação, abordando a comparação entre aparelhos de amplificação sonora individual ou implante coclear na população com surdez pós-lingual. Os seguintes termos de pesquisa (palavras-chaves e delimitadores) foram utilizados:
cochlear implants/cochlear implantation; hearing aid; therapy; prognosis; comparative study e suas traduções correspondentes, em combinações variadas.
Ressaltamos a possibilidade de viés em alguns estudos incluídos na presente revisão, já que foram escritos por fabricantes de IC4-6.
RESULTADOS Entre os 2169 artigos consultados, 11 trabalhos se mostram pertinentes ao tema e apresentaram força de evidência B (Quatro demonstraram força de evidência 2b1,7-9 e sete, 2c2-6,10,11). Não foram encontradas publicações com força de evidência categoria A. Entre os desenhos de estudos analisados na revisão, seis são do tipo coorte prospectivo, quatro são estudos transversais e um ensaio clínico (Tabela 1).
Spillmann & Dillier9 aplicaram uma bateria de testes, denominada de
Mininal Auditory Capabilities (MAC), a grupos de pacientes usuários de AASI e a dois diferentes tipos de IC (monocanal e multicanal). Com base na comparação dos resultados, os autores pretendiam predizer quais pacientes não deveriam ser considerados candidatos ao IC. O teste MAC, embora não seja um procedimento padronizado, foi considerado como um instrumento útil para o aconselhamento e seleção de pacientes ao IC.
Snik et al.10, utilizando testes de percepção da fala, puderam avaliar sete crianças portadoras de IC e 11 usuárias de AASI e concluíram que as pontuações dos fonemas apresentados foram semelhantes em ambos os grupos.
Em 2001, o estudo da MED-EL Ltda.4 (Innsbruck, Áustria) mediu a percepção de fala. Foram comparados os escores pré-implantação dos participantes utilizando AASI, com os escores usando IC aos 6 meses após a cirurgia. Eles realizaram duas séries de análises de subgrupos: (1) surdos pré e pós-linguais e (2) tempo de surdez em pacientes pós-linguais (média de 25 anos de idade). A diferença média (pré/pós) para os pacientes pós-linguais no silêncio foi de 62%, e os pacientes com menos de 25 anos de perda auditiva demostraram maior benefício com o IC que aqueles com mais de 25 anos de perda (71% vs. 53%, respectivamente). Em ambientes ruidosos, os pacientes pós-linguais com 25 anos ou menos de surdez também apresentaram os melhores resultados.
Ching et al.1 analisaram 21 adultos que usaram IC Nucleus 22 (Cochlear Ltd., Lane Cove, Australia) ou Nucleus 24 (Cochlear Ltd.). Doze dos adultos fizeram uso combinado de AASI e IC, enquanto nove não utilizaram AASI após a implantação. O desempenho do IC e AASI combinados foi comparado com IC e AASI usados de forma isolada. Os pacientes que fizeram uso da associação entre AASI e IC demonstraram resultados significativamente melhores no teste de voz, no questionário de desempenho funcional e erraram muito menos ao localizar uma fonte sonora, em comparação com os pacientes usuários de IC ou AASI isoladamente. Os autores usaram o
Bamford-Kowal-Bench (BKB) Sentence Test no ruído para medir a percepção da fala, e demonstraram um benefício significativo do IC (escores médios para IC de 39 e de 2 para AASI,
p < 0,001).
Mo et al.2 avaliaram 134 pacientes (75 usuários de IC e 59 de ASSI), com idade de 19 a 85 anos, por meio da
Performance Inventory for Profound and Severe Loss. O grupo de IC apresentou escores melhores (
p < 0,01) nas categorias
Visual Cues (USV),
Intensity (INT),
Response to Auditory Failure (RAF). Nas categorias
Environmental Sounds (ES),
Visual Cues (USNV) e
Personal (PER), não houve significância. Ressalta-se que os pacientes do grupo IC apresentavam audição pré-operatória média na melhor orelha de 113 dB. Em contrapartida, os usuários de AASI apresentavam audição média de 82 dB. Apesar disso, ao fim do estudo, o grupo IC obteve melhor audição social.
Mo et al.3 compararam 84 adultos usuários de IC com três grupos de portadores de deficiência auditiva grave a profunda: 19 adultos aceitos como candidatos ao IC, mas que não foram submetidos à cirurgia (subgrupo não ICA), 16 candidatos a IC; porém, a deficiência auditiva não era grave o suficiente para utilizarem o IC (subgrupo não IC-B) e 60 pacientes usuários de AASI. Cinco questionários foram aplicados aos pacientes,
Patient Quality of Life Form (PQLF), Index Relative Questionnaire Form (IRQF), Short Form 36 (SF-36), Hopkins Sympton Check List (HSCL-25) e Performance Inventory for Profound and Severe Loss (PIPSL). Os principais resultados foram a diferença na qualidade de vida e no grau de depressão e ansiedade (HSCL-25) entre os pacientes de IC e subgrupo não IC-A. Os pacientes que receberam IC tiveram significativamente menos depressão e ansiedade do que os candidatos não operados. Entre IC e AASI, houve diferença significativa apenas na categoria emoção do questionário SF-36, no qual o grupo IC apresentou melhor pontuação.
Hamzavi et al.7 mediram a percepção de fala pré-implantação e 12 meses depois, em pacientes com surdez grave e profunda, com IC ou AASI. Eles também mediram as alterações entre 12 e 36 meses pós-implante no silêncio e no ruído com o teste de sentença Hochmaier, Schultz e Moser (HSM). Os autores descobriram que os pacientes com IC tiveram uma melhora média dos escores de pré/ pós-implante de 90%, enquanto em usuários de AASI os escores melhoraram 37%. O teste de palavra monossílaba apresentou melhora de 43% para usuários de IC e 19% para usuários de AASI. Em 2 anos, a pontuação HSM no silêncio melhorou 16% para usuários de IC e 0% para pacientes com AASI. No ruído, os usuários de AASI novamente não apresentaram melhora; no entanto, usuários de IC apresentaram melhora em todos os níveis.
O
United Kingdom Cochlear Implant Study Group5 (UKCISG), em 2004, estudou 316 pacientes, usuários de AASI ou IC, com perda auditiva grave a profunda pós-lingual. Os autores puderam avaliar o custo para o Seviço Nacional de Saúde do Reino Unido em fornecer e manter um IC, estimado pelo teste
Mark III Health Utilities Index. Os resultados mostraram custo-beneficio aceitável para a cirurgia do IC, considerando todos pacientes avaliados. Foi demonstrada, ainda, uma relação custo-eficácia mediana do IC em indivíduos que apresentavam surdez há mais de 30 anos, e que já se beneficiavam com o uso de AASI. Além disso, a idade também foi fator de piora na relação custo-eficácia, já que se estima que os indivíduos com idade mais avançada terão menos anos de vida remanescentes.
Na mesma coorte UKCISG6, realizado em 2004, com 84 pacientes, mediu-se a percepção de fala com o
Bamford-Kowal-Bench (BKB) Sentence Test e o City University New York (CUNY) Sentence Test antes da implantação e 9 meses depois, em pacientes portadores de surdez profunda. Os resultados mostraram melhora na pontuação em ambas as medidas após 9 meses da cirurgia [BKB:
Marginal hearing aid users (MHU) = 44,0 (95% IC 37-51); AVGN: MHU = 31,0 (95% IC 26-37)].
Segundo Poissant et al.8, não existem diferenças significativas na capacidade de compreensão de fala no silêncio e no ruído entre os pacientes com IC idosos e jovens (
p<0,05). Observou-se diminuição de quadros de depressão nos pacientes idosos usuários de IC e diminuição da solidão tanto nestes quanto em jovens. Finalmente, os pacientes idosos usuários de IC não eram mais deprimidos ou solitários do que outros pacientes de mesma faixa etária, com perda auditiva leve a moderada que utilizam AASI.
A partir da hipótese de que os usuários de AASI teriam melhores habilidades para percepção musical que implantados, Looi et al.11 estudaram o desempenho de pacientes portadores de níveis semelhantes de deficiência auditiva que faziam uso de um dos dispositivos. Os resultados dos dois grupos foram quase idênticos para o teste de ritmo, sendo que o grupo que usa AASI teve desempenho significativamente melhor que o grupo com IC nos testes de pitch e de melodia. No entanto, não houve diferença entre os grupos em sua capacidade de identificar instrumentos musicais ou ensembles.
DISCUSSÃO A deficiência auditiva é um problema significativo e prevalente na população, que afeta a personalidade e o convívio social do paciente, podendo causar isolamento e reclusão. Os resultados audiológicos dos pacientes submetidos ao IC são variáveis. Alguns pacientes conseguem se comunicar sem o apoio da leitura orofacial e até falar ao telefone, enquanto outros conseguem apenas escutar sons ambientais, sinais de alarme em situações da vida diária e melhorar suas habilidades de leitura labial.
Diversas mudanças estão ocorrendo em relação à escolha dos candidatos ao implante coclear, impulsionados pela aquisição de conhecimento, que é cada vez mais dinâmica e globalizada. Pacientes com audição residual em graves na orelha implantada podem ser submetidos à cirurgia menos traumática, evitando trauma endococlear e utilizando implante com feixe de eletrodos curtos ou perimodiolares, permitindo preservar a audição em frequências graves, e até associar o uso de AASI e IC na mesma orelha.
Uma questão importante é a comprovação científica de que o IC pode trazer benefícios superiores aos das próteses auditivas convencionais, que justifiquem o procedimento cirúrgico, em termos de riscos operatórios e encargos psicossociais e financeiros ao paciente, sua família e ao sistema de saúde. Assim, os candidatos ao IC devem ser escolhidos em função dos resultados observados e de seus preditores.
Segundo a Sociedade Brasileira de Otorrinolaringologia, para adolescentes a partir de 12 anos de idade e adultos com deficiência auditiva pós-lingual, o IC unilateral ou bilateral é indicado quando forem preenchidos os seguintes critérios: perda auditiva neurossensorial grave ou profunda bilateral, com reconhecimento de sentenças em formato aberto menor ou igual a 50%, uso de AASI em ambas as orelhas e motivação adequada do paciente para o uso do IC e para o processo de reabilitação fonoaudiológica.
Após esta ampla revisão sistemática, encontramos estudos metodologicamente distintos, principalmente na análise dos desfechos, mas que deixaram evidente a superioridade do IC frente aos AASI em diversos aspectos. Alguns estudos, como a coorte UKCISG5 o de Hamzavi et al.7, compararam de forma ideal os pacientes enquanto estes eram usuários de AASI, e depois que foram submetidos ao IC, utilizando os mesmos testes no pré e pós-operatório.
É possível, então, afirmar que o uso do IC permite melhorias na compreensão da fala e na qualidade de vida, aumenta significativamente a inserção social e profissional do indivíduo e diminui os quadros depressivos e os sentimentos de solidão1,3,4,6-8,10. No entando, os autores preconizam o menor tempo de privação auditiva para que se obtenham os melhores resultados4,6.
CONCLUSÃO Após a análise dos estudos incluídos na presente revisão sistemática, foi possível concluir que o IC proporcionou, nos pacientes portadores de surdez pós-lingual, desempenho superior, em relação às próteses auditivas convencionais, nas avaliações audiológicas, na qualidade de vida e no custo-benefício geral do procedimento.
REFERÊNCIAS 1. Ching TY, Incerti P, Hill M. Binaural benefits for adults who use hearing aids and cochlear implants in opposite ears. Ear Hear. 2004;25(1):9-21.
2. Mo B, Harris S, Lindbaek M. Cochlear implants and health status: a comparison with other hearing-impaired patients. Ann Otol Rhinol Laryngol. 2004;113(11):914-21.
3. Mo B, Lindbaek M, Harris S, Rasmussen K. Social hearing measured with the Performance Inventory for Profound and Severe Loss: a comparison between adult multichannel cochlear implant patients and users of acoustical hearing aids. Int J Audiol. 2004;43(10):572-8.
4. MED-EL. Summary of safety and effectiveness data. P000025. FDA; 2001. URL: http://www.fda.gov/cdrh/pdf/P000025b.pdf. Accessed February 2007.
5. UK Cochlear Implant Study Group. Criteria of candidacy for unilateral cochlear implantation in postlingually deafened adults II: cost-effectiveness analysis. Ear Hear. 2004;25(4):336-60.
6. UK Cochlear Implant Study Group. Criteria of candidacy for unilateral cochlear implantation in postlingually deafened adults I: theory and measures of effectiveness. Ear Hear. 2004;25(4):310-35.
7. Hamzavi J, Franz P, Baumgartner WD, Gstöettner W. Hearing performance in noise of cochlear implant patients versus severely-profoundly hearing-impaired patients with hearing aids. Audiology. 2001;40(1):26-31.
8. Poissant SF, Beaudoin F, Huang J, Brodsky J, Lee DJ. Impact of cochlear implantation on speech understanding, depression, and loneliness in the elderly. J Otolaryngol Head Neck Surg. 2008;37(4):488-94.
9. Spillmann T, Dillier N. Comparison of hearing aids and cochlear implants in profoundly and totally deaf persons. Br J Audiol. 1990;24(4):223-7.
10. Snik AF, Vermeulen AM, Brokx JP, van den Broek P. Long-term speech perception in children with cochlear implants compared with children with conventional hearing aids. Am J Otol. 1997;18(6 Suppl):S129-30.
11. Looi V, McDermott H, McKay C, Hickson L. Music perception of cochlear implant users compared with that of hearing aid users. Ear Hear. 2008;29(3):421-34.
1. Otorrinolaringologista (Fellow em Cirurgia Otológica e Base do Crânio do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo - FMUSP, Brasil).
2. Médica (Especialista em Otorrinolaringologia).
3. Livre-docente (Professor Titular da Disciplina de Clínica Otorrinolaringológica da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo - FMUSP, Brasil).
4. Doutor em Otorrinolaringologia pela Universidade de São Paulo (Médico Assistente da Disciplina de Clínica Otorrinolaringológica do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo - FMUSP, Brasil).
5. Livre-docente (Professor Associado da Disciplina de Clínica Otorrinolaringológica da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo - FMUSP, Brasil).
Disciplina de Clínica Otorrinolaringológica do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo - FMUSP, Brasil.
Endereço para correspondência:
Dra. Aline Gomes Bittencourt
Departamento de Otorrinolaringologia do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo
Av. Prof. Dr. Enéas de Carvalho Aguiar, 255, 6 º andar / sala 6167
São Paulo - SP, Brasil. CEP: 05403-000
Tel / Fax: + 55 (11) 3088 0299
E-mail: alinebittencourt@hotmail.com
Este artigo foi submetido no SGP (Sistema de Gestão de Publicações) da BJORL em 6 de setembro de 2011. cod. 8762.
Artigo aceito em 11 de outubro de 2011.