INTRODUÇÃOAs primeiras cirurgias de implante coclear multicanal no Brasil foram realizadas em 19991, utilizando o processador de fala
Spectra Bodyworn, da Cochlear Corporation
®, compatível com a unidade interna
Nucleus 22®.
Ao longo dos anos, foram lançadas novas tecnologias e as empresas de implantes cocleares desenvolveram processadores de fala compatíveis com as unidades internas anteriores, evitando a necessidade de novo procedimento cirúrgico2-4.
Em 2006, foi lançado o processador
Freedom® com novas tecnologias, dentre as quais dois microfones e novo chip para processamento do sinal, proporcionando melhorias no processamento do som acústico de entrada, não apenas para novos usuários, mas também para pacientes com gerações anteriores de implante coclear.
No ano de 2009, as peças de reposição para o sistema
Nucleus 22® deixaram de ser fabricadas. O Ministério da Saúde, então, autorizou a troca, pelo Sistema Único de Saúde, de todos os processadores de fala
Nucleus 22® por processadores de fala
Freedom®.
Na literatura científica, vários estudos mostram vantagens da troca para processadores mais modernos; porém, a troca direta do
Spectra® para
Freedom® não foi estudada nem relatada3,5.
Portanto, este estudo teve por objetivo principal identificar a contribuição da tecnologia do processador de fala
Freedom® para a primeira geração de implante coclear multicanal,
Nucleus 22®. Para tanto, foram avaliados o desempenho de percepção de fala no silêncio e no ruído e os limiares audiométricos com os processadores de fala
Spectra® e
Freedom®.
MÉTODOEste projeto foi apresentado e aprovado pelo Comitê de Ética para Análise de Projetos de Pesquisa da instituição sob o protocolo número 0083/11. Os pacientes foram informados da pesquisa e assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido.
O desenho do estudo foi coorte histórico com corte transversal, de avaliação dos resultados obtidos com atualização da tecnologia do processador de fala do implante coclear
Nucleus 22®.
Foram selecionados 43 pacientes implantados com
Nucleus 22® no Grupo de Implante Coclear do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP. Desta amostra, cinco pacientes não são mais usuários de implante coclear, oito pacientes já eram usuários do processador
Freedom®. O restante, 30 pacientes, mantinha o uso do processador
Spectra® e compareceu para a troca dos processadores de fala oferecida pelo governo brasileiro por intermédio do Ministério da Saúde.
Foram incluídos na pesquisa os pacientes com uso efetivo do implante (8 horas por dia), e excluídos os pacientes com uso ocasional ou que não possuem percepção de frases em contexto fechado. Desta forma, seis pacientes não eram usuários efetivos, quatro pacientes eram crianças e três pacientes não apresentaram percepção de fala. Assim, a pesquisa incluiu 17 pacientes.
Os pacientes convocados seguiram o seguinte protocolo, dividido em três etapas:
a. Primeira etapa: otimização do mapa atual e verificação do funcionamento do processador Spectra®Na primeira etapa, o último mapa em uso pelo paciente com o processador
Spectra® foi revisto e atualizado segundo a rotina de programação com o
software Custom Sound 2.0®. Foram pesquisados os níveis mínimos de estimulação (nível T) para os quais o paciente identifica 100% das apresentações; os níveis máximos de estimulação (nível C) para os quais a corrente elétrica apresentada é confortável e foi realizado o balanceamento da intensidade do nível C. Antes da realização dos testes, o funcionamento do processador
Spectra® foi assegurado, com a verificação de fios, transmissão da antena e microfone, utilizando-se um verificador de sinal e o fone de monitorização. Caso fosse identificada alguma falha, o componente seria substituído antes dos testes.
b. Segunda etapa: programação do processador Freedom®Foi realizada a troca do processador
Freedom®, mantendo-se todos os demais parâmetros do mapa original: velocidade total de estimulação e modo de estimulação e sem estratégias de pré-processamento do sinal. Foi realizado o balanceamento da intensidade dos níveis de estimulação T e C com o uso do
software Custom Sound 2.0®.
c. Terceira etapa: avaliação dos limiares audiométricos e provas de percepção de falaForam realizadas audiometrias em campo livre tanto com o processador de fala
Spectra® quanto com o processador de fala
Freedom®. Para o cálculo estatístico, foram consideradas as médias dos limiares audiométricos de 500 Hz, 1000 Hz, 2000 Hz e 4000 Hz6 e os limiares das frequências individualmente.
Na mesma sessão, após a programação para todos os mapas, as seguintes provas de percepção de fala foram realizadas em campo livre em cabina acusticamente tratada, com material gravado em CD apresentado a 60dBSPL7:
Monossílabos8,9; Frases em apresentação aberta no silêncio10; Frases em apresentação aberta no ruído com SNR = 0dB*10
* estes testes somente foram aplicados quando o desempenho de frases no silêncio for superior a 50%.
A ordem de realização dos testes com os mapas do processador
Spectra® e os novos mapas com o processador
Freedom® foi randomizada usando o
software disponível em www.randomizer.org.
Os limiares audiométricos, porcentagem de acertos nos testes de percepção da fala são apresentados como média e desvio padrão (DP) e também como mediana e o percentil 25% e 75% (P25% e P75%, respectivamente). Considerando o pequeno tamanho da amostra, a natureza ordinal e distribuições assimétricas de algumas variáveis, o teste não paramétrico de
Wilcoxon para dados pareados foi utilizado para comparar grupos. A análise de sensibilidade paramétrica utilizando o
teste t foi feita em todas as comparações e não alterou os resultados. Foi considerada
p< 0,05 com significância estatística.
As análises estatísticas foram realizadas com o
software STATA (versão 11.1).
RESULTADOSNa Tabela 1, encontram-se os dados demográficos da amostra.
A maioria da amostra conta com pacientes experientes, com mais de 8 anos de uso do implante coclear. Apenas dois são adolescentes, sendo que um deles apresenta surdez congênita.
Quando analisada a contribuição do
Freedom® para pacientes com
Nucleus 22®, observa-se diferença estatisticamente significativa em todos os testes de percepção de fala e em todos os limiares audiométricos, tanto individualmente quanto na média, exceto em 8000 Hz (Tabelas 2 e 3).
DISCUSSÃOA troca dos processadores de
Spectra® para
Freedom® mostrou que a tecnologia melhorou a percepção de fala dos usuários do
Nucleus 22®. Mesmo mantendo-se os mesmos parâmetros de modo de estimulação, velocidade total e número de eletrodos ativos, pode-se observar diferença estatística em todos os testes e em todos os limiares audiométricos (Tabelas 2 e 3).
A literatura científica tem demonstrado que existem vantagens quando ocorre a troca do processador de fala por dispositivos mais modernos. Dodd et al.3 apresentaram os resultados da troca do processador de caixa
Spectra® pelo processador retroauricular
ESPrit® em 100 crianças. E concluíram que a conversão foi viável em todos os casos estudados, apesar dos testes de fala e limiares audiométricos não mostrarem diferenças significativas.
Santarelli et al.5 avaliaram a percepção de fala em 17 crianças pré-linguais usuárias de
Nucleus 24® com os processadores
SPrint® e
ESPrit 3G®, após um mês de uso do processador
Freedom®. Como resultados, as crianças apresentaram melhora significativa nos testes de palavras dissílabas em presença de ruído, identificação de consoantes e reconhecimento de sentenças. Estas melhoras na discriminação fonêmica podem ser explicadas pelo aumento do campo dinâmico de entrada com o novo processador. Concluíram que a percepção de fala foi superior com o
Freedom®, sendo aconselhável a troca para a nova geração de processadores. Além disso, todas as crianças mostraram preferência pelo novo processador.
Isso mostra a importância e o cuidado das empresas de implantes cocleares em desenvolverem novos processadores compatíveis com as unidades internas de gerações anteriores, para que estes pacientes possam usufruir da nova tecnologia e, consequentemente, melhorar seu desempenho, mas também permitir flexibilidade na programação, mantendo as características e as preferências do antigo programa em uso pelo paciente.
A possibilidade de manter os mesmos parâmetros do processador antigo em uso mostra que apenas as mudanças do microfone e do processamento do sinal já foram suficientes para a contribuição do novo processador na melhoria da percepção de fala.
Um dos parâmetros mantidos foi o modo de estimulação. Quando um eletrodo é estimulado, a corrente flui do eletrodo ativo para o eletrodo terra e quanto mais amplo o espaçamento entre os eletrodos, menor a corrente necessária.
Apesar do
Freedom® ter como padrão modo de estimulação BP+3 (bipolar, um eletrodo ativo e o outro como indiferente) para usuários de
Nucleus 22®, todos os pacientes puderam manter seus modos de estimulação. Com a finalidade de analisar somente o benefício de outros parâmetros estudados, sem prejudicar o consumo de baterias, foram mantidos os modos de estimulação utilizados, no caso, BP+1 para todos, exceto um paciente que usava modo CG (
common ground, faz uso de todos os eletrodos como eletrodos indiferentes). O consumo de baterias foi medido pelo
software Custom Sound 2.0®, obtendo-se uma média de 8,6 horas para as baterias recarregáveis e 24,1 horas para as três pilhas tamanho 675. Apenas dois pacientes apresentaram problemas com consumo, com apenas 6 horas, solucionados com a troca da força do imã da antena.
Nesta mesma amostra, outros recursos tecnológicos foram analisados, como o efeito da tabela de alocação de frequências e o efeito do T-SPL de 25dB e do C-SPL de 65dB, que serão publicados posteriormente.
CONCLUSÃOA tecnologia do processador
Freedom® nos usuários de
Nucleus 22® mostrou melhora estatisticamente significativa em todos os testes de fala no silêncio realizados a 60 dB e no ruído com relação sinal/ruído de 0 dB, como também em todos os limiares audiométricos.
REFERÊNCIAS1. Bento RF, Brito Neto RV, Castilho AM, Goffi-Gomez MVS, Sant'Anna SBG, Guedes MC. Resultados auditivos com o implante coclear multicanal em pacientes submetidos à cirurgia no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Rev Bras Otorrinolaringol. 2004;70(5):632-7.
2. Parkinson AJ, Parkinson WS, Tyler RS, Lowder MW, Gantz BJ. Speech perception performance in experienced cochlear-implant patients receiving the SPEAK processing strategy in the Nucleus Spectra-22 cochlear implant. J Speech Lang Hear Res. 1998;41(5):1037-87.
3. Dodd MC, Nikolopoulos TP, Totten C, Cope Y, O'Donoghue GM. Cochlear implants: 100 pediatric case conversions from the body worn to the nucleus esprit 22 ear level speech processor. Otol Neurotol. 2005;26(4):635-8.
4. Välimaa TT, Löppönen HJ. Comparison of the body-worn CIS-PRO and the behind-the-ear-worn TEMPO cochlear implant systems in Finnish-speaking adult CI users: any differences in results with experienced listeners? Acta Otolaryngol. 2008;128(9):984-91.
5. Santarelli R, Magnavita V, De Filippi R, Ventura L, Genovese E, Arslan E. Comparison of speech perception performance between Sprint/Esprit 3G and Freedom processors in children implanted with Nucleus Cochlear Implants. Otol Neurotol. 2009;30(3):304-12.
6. Bureau Internacional d'Audio Phonologie.Audiometric classification of hearing impairment: recommendation 02/1, 1996. Disponível em: http://www.biap.org/biapanglais/rec021eng.htm Acessado em 20 de dezembro de 2010.
7. Goffi-Gomez MVS, Guedes MC, Sant'Anna SBG, Peralta CGO, Tsuji RK, Castilho AM, et al. Critérios de Seleção e Avaliação Médica e Audiológica dos Candidatos ao Implante Coclear: Protocolo HCFMUSP. Arq Int Otorrinolaringol. 2004;8(4):303-13.
8. Pen MG, Mangabeira-Albernaz PL. Lista de monossílabos para discriminação vocal. Em: Mangabeira-Albernaz PL, Ganança MM, editores. Surdez neuro-sensorial. São Paulo: Moderna; 1976. p.20.
9. Pereira LD, Schochat E. Processamento auditivo central: manual de avaliação. 1a ed. São Paulo: Lovise; 1997.
10. Costa MJ, Iorio MCM, Mangabeira-Albernaz PL. Desenvolvimento de um teste para avaliar a habilidade de reconhecer a fala no silêncio e no ruído. Pro Fono. 2000;12(2):9-16.
1. Mestranda pela FMUSP (Fonoaudióloga da Equipe de Implante Coclear do HCFMUSP).
2. Doutora em Ciência pela Universidade Federal de São Paulo (Fonoaudióloga da divisão de Clínica Otorrinolaringológica do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP Coordenadora da equipe de fonoaudiologia do grupo de implante coclear do HCFMUSP).
3. Doutoranda pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (Fonoaudióloga).
4. Doutor pela Universidade de São Paulo - FMUSP (Médico otorrinolaringologista do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, coordenador do Grupo de Implante Coclear do HCFMUSP).
5. Professor Titular do Departamento de Oftalmologia e Otorrinolaringologia da FMUSP - Disciplina de Otorrinolaringologia (Chefe do Departamento de Oftalmologia e Otorrinolaringologia da FMUSP).
6. Professor Livre - Docente e Associado da Disciplina de Otorrinolaringologia da FMUSP (Médico Assistente da Divisão de Otorrinolaringologia do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo).
Este artigo foi submetido no SGP (Sistema de Gestão de Publicações) da BJORL em 6 de junho de 2011. Cod. 8063.
Artigo aceito em 11 de outubro de 2011.