INTRODUÇÃOA residência médica é considerada a melhor forma de treinamento para a formação de especialistas médicos. Porém, ao mesmo tempo, fatores decorrentes deste trabalho, como depressão, privação do sono e excessiva carga horária, podem interferir no bem-estar destes indivíduos1. Definido como um equilíbrio entre os domínios profissionais, familiares, social, físico, mental e financeiro, a qualidade de vida dos residentes carece de informações e maiores investigações2.
Embora os residentes médicos sejam responsáveis pelas atividades de promoção à saúde de forma ampla e integral para os seus pacientes, incluindo não apenas o aspecto físico do indivíduo, mas também o psicológico e sua inserção no ambiente em que vive, sabe-se que estes profissionais nem sempre aplicam estes conceitos em benefício próprio3. Não existem evidências sobre que características podem predizer a qualidade de vida (QV) do médico e nem mesmo o seu impacto ao longo da residência médica.
Não há um consenso sobre o que é qualidade de vida. Considerando a multidimensionalidade e subjetividade deste conceito, a Organização Mundial de Saúde (OMS)4 criou um questionário que abrange os aspectos físicos, psicológicos, sociais e ambientais relacionados a este tema. Este questionário, que é atualmente a base de estudo sobre as condições de saúde individuais, é um instrumento aplicável de avaliação do bem-estar de médicos residentes.
A residência médica em Otorrinolaringologia no Distrito Federal apresenta uma carga horária semanal de 60 horas, distribuída entre as atividades ambulatoriais, cirurgias, pronto-socorro e aulas teóricas nos hospitais credenciados pelo Ministério da Educação e Cultura (MEC). São três encontros semanais para aulas teóricas ministradas pelos residentes, discussões de casos clínicos e artigos científicos, vídeo aula e reuniões administrativas. A presença nestes encontros é obrigatória, assim como na reunião científica mensal e cursos da associação de ORL do Distrito Federal. A bolsa de residência médica é regulada pelo MEC com o valor de R$ 1.916,45, no momento desta pesquisa. Todos os residentes possuem auxílio-moradia ou alojamento gratuito, porém ainda não existe apoio psicológico patrocinado pela organização destes programas de residência médica.
Desta forma, a avaliação da qualidade de vida dos médicos residentes poderá revelar informações a respeito ambiente de trabalho, e apontar condições que necessitam de melhorias para a sua saúde e para a excelência de sua formação como especialista.
MATERIAL E MÉTODOO estudo foi desenvolvido com os três Programas de Residência Médica (PRM) em Otorrinolaringologia do Distrito Federal. Participaram do estudo todos os residentes de ORL do Distrito Federal, sendo seis médicos residentes de cada programa, divididos em dois médicos residentes por ano, totalizando três anos de especialização. Os critérios de inclusão foram todos os médicos residentes em otorrinolaringologia do Distrito Federal. Todos os participantes assinaram o termo de consentimento informado antes do início da pesquisa (Anexo 1).
A avaliação da QV (qualidade de vida) de cada participante do estudo foi realizada por meio de um questionário (Anexo 2) específico para este fim, o Whoqol-bref, proposto pela OMS, traduzido e validado em nosso meio por Fleck (2008)4. Este questionário aborda o tema QV por meio dos seguintes domínios: físico, psicológico, relações sociais e ambiental. O questionário4 é composto por 26 questões. Duas questões são gerais (sobre QV e saúde), e as outras 24 representam os domínios acima citados. Também foram colhidos dados de renda e composição familiar, tipo de moradia, distância da moradia aos hospitais, posse de veículo automotivo próprio, posse de animais de estimação e necessidade de apoio psicológico ou psiquiátrico.
O questionário foi aplicado no mês de julho de 2010, período coincidente com o término do segundo trimestre de atividades teórico-práticas do programa Reuni-ORL-DF. Este é um programa de ensino pioneiro no país, que unificou as atividades práticas e teóricas dos três Programas de Residência Médica de Otorrinolaringologia do Distrito Federal. O questionário foi aplicado, no mesmo dia, para os todos participantes, em uma das reuniões teóricas com os 18 médicos residentes em otorrinolaringologia do Distrito Federal.
Os questionários não receberam identificação, preservando o anonimato das respostas.
Os resultados foram analisados com o programa estatístico SPSS 17.0. Para cada resposta, é atribuída uma pontuação, e o programa fornece o somatório de cada indivíduo, sendo que esta pontuação pode variar de 0 a 20. Quanto maior a pontuação, melhor a QV do indivíduo estudado. Também foi analisada a frequência da distribuição das médias e desvio-padrão. Foi realizada também a comparação univariada de médias pelo teste t, com o cálculo do valor de p. O valor aceito para diferença estatística foi de
p < 0,05.
RESULTADOSTodos os residentes dos três programas de Residência Médica em otorrinolaringologia concordaram em participar do estudo e responderam o questionário. No Distrito Federal, dentre os 18 residentes de otorrinolaringologia, 10 são do sexo feminino e 8 do sexo masculino. A média de idade entre eles foi de 27(±1,8) anos. Em relação ao estado civil, apenas 4 residentes eram casados.
A maioria dos residentes é do Distrito Federal (n=5) e de Goiás (n=4). Os outros são de Minas Gerais (n=2), Bahia (n=1), Espírito Santo (n=1), Sergipe (n=1), Ceará (n=2), Rio Grande do Norte (n=1) e Mato Grosso (n=1).
A maioria dos residentes possui moradia alugada (n=11), enquanto o restante mora em casa própria (n=4), alojamento (n=2) e apenas um vive em república de estudantes. A renda familiar dos residentes está apresentada na Tabela 1.
Apenas três residentes já perderam um dos pais biológicos. A maioria possui dois irmãos (dp=1,1) e seis deles possuem animal de estimação.
Perguntados se em algum momento da residência médica procuraram apoio psiquiátrico ou psicológico, somente um respondeu que sim.
A maioria dos residentes mora em média a menos de 10 km (dp=0,9) dos hospitais em que trabalham e todos possuem carro próprio.
Qualidade de VidaOs residentes do "sexo masculino" apresentaram pontuação melhor no domínio psicológico do questionário de qualidade de vida da OMS em relação ao "sexo feminino" (
p= 0,01). Já o fato de o residente ser "casado" ou "solteiro" não demonstrou diferença significante na pontuação. Não houve diferença estatística significativa entre a qualidade de vida dos residentes do Distrito Federal comparada a de outros estados.
A primeira pergunta do questionário (Anexo 2) era de como o entrevistado considerava a sua qualidade de vida. Os únicos três residentes que consideraram a sua qualidade de vida como "ruim", eram do terceiro ano. Sete residentes responderam "nem ruim nem boa" e oito residentes afirmaram ser "boa" a sua QV.
A segunda questão perguntava o quanto o indivíduo estava satisfeito com a sua saúde. Três residentes do terceiro ano responderam que estão "insatisfeitos" com a própria saúde, sendo que dois deste eram os mesmos que consideraram sua QV como "ruim". Do restante dos residentes, oito responderam "nem satisfeito, nem insatisfeito", quatro responderam "satisfeito" e dois responderam "muito satisfeito".
A pontuação média dos domínios físico, psicológico, relações sociais e ambiental dos residentes do primeiro (R1), segundo (R2) e terceiro (R3) ano estão representadas na Figura 1. A comparação das médias de pontuação entre os anos de residência foram estatisticamente significativa apenas no domínio psicológico em relação ao primeiro e segundo ano (
p=0,04), na qual os R2 apresentaram a pontuação maior.
Figura 1. Média de pontuação dos domínios avaliados no "Whoqolbref" em relação ao ano de residência em Otorrinolaringologia.
Algumas perguntas específicas do questionário se destacaram pela diferença estatística significante entre os anos de residência. Na pergunta 13 do questionário ("Quão disponíveis para você estão as informações que precisa no seu dia a dia?"), a pontuação dos R2 foi maior do que R1 e R3 (
p=0,02). Da mesma forma, os R2 afirmam poder se concentrar mais (questão 7) e estarem mais satisfeitos com suas relações pessoais (questão 20) comparados aos R1 (
p=0,01).
Com relação ao domínio das relações sociais, não houve diferença estatística significante entre os residentes de cada ano.
DISCUSSÃOA presença de mais médicas (55%) na especialidade de Otorrinolaringologia é diferente do que foi encontrado no último censo (2009) da Associação Brasileira de Otorrinolaringologia5. As mulheres otorrinolaringologistas representam apenas 35% dos profissionais da área em todo Brasil. No nosso estudo, não houve diferença entre a qualidade de vida entre mulheres e homens. Franco & Santos6 afirmam que há um número crescente de mulheres cirurgiãs, porém ainda existem barreiras advindas da falta de suporte institucional a mães médicas. Não existem residentes com filhos na nossa amostra. Talvez o período da residência médica seja uma prioridade na vida destas médicas ao invés da maternidade.
Segundo indicadores econômicos regionais7, o custo de vida de Brasília é um dos maiores do país. A maioria dos residentes (n=8) apresenta renda média familiar estimada em menos de cinco mil reais. Desta forma, os custos básicos de vida de um residente podem não estar sendo supridos apenas por sua bolsa de estudos, contribuindo de forma negativa à qualidade de vida destes indivíduos e impedindo que os mesmos invistam em materiais didáticos e cursos de aperfeiçoamento profissional.
Os valores encontrados no Whoqol-bref deste estudo se assemelham aos encontrados em populações sadias8 e maiores do que os demonstrados em populações doentes9-11.
Foram avaliados três momentos diferentes da residência médica de Otorrinolaringologia. O primeiro ano é marcado por uma adaptação ao novo ambiente10 de estudo e trabalho. Neste estudo, a maioria dos residentes (n=13) não é do Distrito Federal, sendo um fator adicional de adaptação que pode gerar redução na QV. Além disso, as atividades do primeiro ano no programa da Reuni-ORL são mais voltadas ao pronto-socorro, atividade que requer mais disposição e paciência do médico para lidar com um número maior de pacientes e situações de emergência. Esquivel et al.1 estudaram residentes do primeiro ano de residência em ortopedia e observou que os participantes apresentaram uma maior sensibilidade ao estresse, mas não se tornaram emocionalmente frios nem distantes. De outra forma, Tile et al.10 reportaram que os médicos residentes do primeiro ano apresentam melhores índices de saúde mental, assim como melhor percepção geral de saúde e função social do que os residentes do segundo e terceiro anos. Nosso estudo demonstrou que os residentes do primeiro ano apresentam uma pontuação inferior aos do segundo ano com relação ao domínio psicológico, estatisticamente significante (
p=0,04), refletindo o período adaptativo ao novo ambiente e do contato com o pronto socorro.
Os residentes do terceiro ano também sofrem uma adaptação às atividades do centro cirúrgico, que requerem muita atenção e responsabilidade, além de terem que estudar mais pela proximidade da prova de título de especialidade. Goldin et al.12 observaram diminuição na qualidade de vida e no sono, além de aumento da depressão em estudantes de Medicina durante o internato em cirurgia. O estudo de Raj et al.13 detectou uma significativa deterioração nos domínios da vitalidade, saúde física e psíquica ao estudar prospectivamente a qualidade de vida relacionada à saúde num grupo de estudantes do último ano do curso médico durante dez meses. Assim, o cansaço devido ao maior volume de cirurgias no terceiro ano, e a proximidade destes médicos com o mercado de trabalho e a prova do titulo de especialista, pode justificar as suas respostas negativas quanto a sua qualidade de vida abordada na primeira pergunta do questionário.
Os residentes do segundo ano, na transição destas mudanças, apresentam uma qualidade de vida melhor em vários aspectos. Estes residentes são responsáveis por menor número de pacientes e cirurgias, ficando menos tempo no hospital. O maior tempo livre para lazer e estudos, talvez justifique a melhor pontuação no domínio psicológico (
p=0,04) dos residentes do segundo ano em relação ao primeiro ano. Alves et al.3 citam em seu estudo as estratégias para reduzir o estresse durante o curso médico: a valorização dos relacionamentos interpessoais e de fenômenos do cotidiano; equilíbrio entre estudo e lazer; organização do tempo; cuidados com a saúde, alimentação e sono; prática de atividade física; religiosidade; trabalhar a própria personalidade para lidar com situações adversas; procura por assistência psicológica.
Os resultados demonstram uma qualidade de vida pior entre os indivíduos que iniciam e os que terminam a residência médica. A residência em Otorrinolaringologia é uma das mais disputadas em concursos médicos. Muita dedicação e esforço são necessários para garantir uma das poucas vagas desta especialidade no país. A expectativa do candidato médico ao se inscrever nestes concursos na maioria das vezes não corresponde à rotina de um serviço de ORL. A adaptação para o novo ambiente e o longo caminho para se formar na especialidade muitas vezes torna frustrante os sonhos destes jovens médicos, justificando as suas queixas com relação a sua qualidade de vida no primeiro ano de residência. Já entre os residentes do terceiro ano cria-se a expectativa de sua inserção no mercado de trabalho como especialista e gera um cenário de ansiedade ao indivíduo, podendo corresponder a sua baixa pontuação no questionário de QV.
O estudo realizado apresenta uma pequena amostra e representa um grupo específico de médicos no Distrito Federal, não deixando de ter limitações metodológicas. Da mesma forma, o questionário foi aplicado após uma prova de avaliação de ensino trimestral, podendo também ter influenciado o resultado. Apesar disso, utilizamos um instrumento validado internacionalmente (Whoqol-bref), que foi usado em vários levantamentos epidemiológicos com profissionais da área de saúde, sendo uma excelente referência para comparação de dados.
Apesar de constantes adaptações do programa da Reuni-ORL no Distrito Federal, visando melhorias das condições de trabalho e de estudo de seus residentes, ainda há o desgaste psicológico do primeiro e terceiro ano de residência. Novos estudos, do tipo de coorte, são necessários para avaliar melhor a chegada destes médicos nestes hospitais, de modo a causar menos impacto na qualidade de vida destes indivíduos.
CONCLUSÃOA qualidade de vida dos médicos residentes de otorrinolaringologia do Distrito Federal tem índices semelhantes aos de uma população sadia. O residente do segundo ano apresenta melhor qualidade de vida quando comparado ao R1 e R3. O primeiro e último ano da residência concentram os residentes com as menores pontuações na qualidade de vida.
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9. Alves JBG, Tenório M, Anjos AG, Figueroa JN. Qualidade de vida em estudantes de Medicina no início e final do curso: avaliação pelo Whoqol-bref. Rev Bras Educ Med Jan/Mar 2010;vol.34. (Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0100-55022010000100011&script=sci_arttext, acessado 10/08/2010 às 22:00)
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1. Otorrinolaringologista, Mestrando da Universidade de Brasília.
2. Fonoaudiólogo, Mestrando da Universidade de Brasília.
3. Otorrinolaringologista, Doutorando e Mestre da Universidade de Brasília, Professor da Escola Superior de Ciências da Saúde-DF. Otorrinolaringologista da Secretaria de Saúde do DF.
4. Doutor em Otorrinolaringologia pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, Otorrinolaringologista da Universidade de Brasília e da Secretaria de Saúde do DF.
5. Pós-Doutor pela Harvard Medical School, Boston, MA, EUA. Chefe do Departamento de Otorrinolaringologia e Cirurgia de Cabeça e Pescoço do Hospital Universitário de Brasília.
Universidade Nacional de Brasília.
Endereço para correspondência:
SGAS 905, Lote 3, Bloco B, ap. 213, Asa Sul
Brasília-DF. CEP: 70380-050
Este artigo foi submetido no SGP (Sistema de Gestão de Publicações) da BJORL em 24 de setembro de 2010. cod. 7336
Artigo aceito em 4 de janeiro de 2011.