INTRODUÇÃONão raramente, crianças disfônicas mostram-se incapazes de julgar as características da própria voz e, por isso, dependem de sinalizações externas, como reações negativas dos ouvintes para perceberem aspectos de suas produções e qualidade vocais. Perdas auditivas periféricas associadas à presença de alterações na voz sabidamente alteram a autopercepção vocal1. Portanto, identificar as condições das capacidades perceptivo-auditivas do paciente disfônico pode ser de grande valia para o estabelecimento de objetivos terapêuticos de reabilitação vocal. Além disso, essas capacidades perceptivas são importantes para o automonitoramento das novas condições vocais, mesmo que em nível inconsciente.
De fato, algumas pesquisas mostraram a existência de relação entre alterações da percepção auditiva e a presença de disfonia. O desempenho em provas de avaliação do processamento auditivo de crianças disfônicas, comparado ao de outras crianças sem queixas fonoaudiológicas mostrou diferença estatisticamente significante entre os grupos2-4, indicando que a reabilitação vocal pode estar sujeita à percepção auditiva da própria voz.
A avaliação da percepção auditiva é realizada por meio de um conjunto de provas e testes especiais1,5,6,7 e está incorporada ao diagnóstico de grande parte dos distúrbios da comunicação humana1. Alguns estudos apontam a necessidade de levar em conta, na avaliação de transtornos do desenvolvimento, questões relacionadas à maturação do sistema auditivo7-9, pois essas crianças também podem apresentar, associadamente, atraso no desenvolvimento das habilidades auditivas10,11. Atualmente, reconhece-se a importância do processamento temporal, por exemplo, na percepção da fala12. A proposta de Avaliação Simplificada da função auditiva tem se mostrado capaz de caracterizar grupos de crianças com distúrbios do aprendizado9,11,13-15. De fácil aplicação, poderia acompanhar de forma complementar as tarefas que normalmente avaliam a voz da criança disfônica e promover informações importantes sobre suas habilidades auditivas de localização da fonte sonora e de memória auditiva de padrões sonoros. Esta última influenciaria a aprendizagem dos códigos sonoros da língua. A memória de padrões sonoros verbais envolve não somente a retenção de palavras imediatamente percebidas, possibilitando a transmissão de ideias, mas também possibilita o aprendizado de palavras novas, desconhecidas. A memória auditiva para sons não verbais tem a função básica de distinguir as relações sonoras como a prosódia, altura, intensidade, timbre, e sintetizá-la em estruturas melódicas16. Todas essas capacidades estão implicadas na percepção auditiva vocal.
O objetivo desta pesquisa foi o de caracterizar habilidades auditivas de localização e reconhecimento de sequências de estímulos sonoros em crianças disfônicas na busca de evidências da influência da percepção auditiva sobre a qualidade vocal, levando em conta a faixa etária e a maturação do sistema auditivo.
MATERIAL E MÉTODOEste trabalho foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa sob nº 019/03 e iniciado após a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido pelos pais ou responsáveis dos participantes.
Foram inicialmente avaliadas 56 crianças, meninos e meninas, com queixas vocais. À época das avaliações suas idades variavam entre 4 e 8 anos. A amostra foi coletada durante o período de um ano.
Estabeleceram-se, a priori, os seguintes critérios para inclusão na amostra: diagnóstico otorrinolaringológico de disfonia; limiares auditivos normais; ausência de queixas ou de indícios de alterações relacionadas à aquisição e desenvolvimento de fala, linguagem e audição; ausência de queixas ou indícios de alterações neurológicas ou déficits cognitivos e sensório-motores.
As crianças foram avaliadas por médico otorrinolaringologista para o diagnóstico clínico da queixa vocal. Na mesma data, passaram por avaliação fonoaudiológica da voz e Avaliação Simplificada do Processamento Auditivo (ASPA). Avaliações audiométricas foram realizadas, por agendamento, duas semanas após a consulta inicial. Eliminaram-se dessa amostra 19 crianças que apresentaram alterações de fala ou não compareceram para a avaliação audiológica. O Grupo Pesquisa (GP) foi inicialmente constituído por 37 crianças disfônicas (22 meninos).
Outro grupo, denominado Grupo de Comparação (GC) foi constituído por 11 crianças (dois meninos), de mesma faixa etária dos integrantes do GP, recrutados em escolas particulares de ensino no município de São Paulo. Nenhuma apresentava queixas ou indícios de alterações vocais e atendiam aos demais critérios estabelecidos para inclusão na amostra. A ausência de queixas ou alterações vocais foi confirmada por avaliação perceptivo-auditiva da voz realizada pela pesquisadora durante o contato inicial com a criança. Participaram, voluntariamente, após a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, por seus pais.
Dada a diferença numérica entre os grupos, estes foram comparados quanto ao sexo (Teste Exato de Fisher,
p=0,058) e à idade (Teste de Mann-Whitney,
p= 0,510) e se mostraram semelhantes quanto a essas variáveis.
ProcedimentosEm sala silenciosa, os participantes do GP e do GC foram submetidos, individualmente, às provas da Avaliação Simplificada de Processamento Auditivo, proposta por Pereira (1993): Localização da Fonte Sonora (LOC), Memória de Sequência de Sons Não Verbais (MSNV), Memória de Sequência de Sons Verbais (MSV) e Reflexo Cócleo-Palpebral (RCP).
Aplicou-se o estímulo com uma única batida de alta intensidade (em torno de 90 dB) no agogô, para a investigação do RCP. Nesta Prova, das 37 crianças avaliadas, 6 (5 meninos) foram eliminadas da amostra por apresentarem ausência do Reflexo Cócleo-Palpebral. O GP final foi, portanto, constituído de 31 crianças disfônicas (17 meninos).
Na prova de Localização da Fonte Sonora, utilizou-se como estímulo auditivo o som de um guizo apresentado em cinco direções: à direita, em cima, atrás, à esquerda e na frente do participante, que permaneceu de olhos fechados durante a avaliação. Cada acerto equivaleu, portanto, a 20% da possibilidade de respostas.
Na prova de MSNV utilizaram-se até quatro instrumentos sonoros, de amplo espectro de frequência, sendo eles: sino, agogô, guizo e coco. Para as crianças até 06 anos foram executadas sequências de três estímulos e para as crianças de 7 e 8 anos, sequências de quatro. Os sons desses instrumentos foram apresentados a cada participante, em três sequências diferentes, produzidas com inversão na ordem de apresentação.
Na prova de MSV, as sílabas PA - TA - CA foram apresentadas à criança em três ordens de sequência diferentes uma da outra, modificadas apenas pela inversão na ordem de apresentação. Foram utilizados os mesmos critérios de pontuação da prova de MSNV. Tanto na tarefa de MSV, quanto na de MSNV, cada sequência identificada corretamente equivaleu a 33,33%, das respostas corretas sendo 100% correspondente ao acerto das três sequências, 66,66% para duas, 33,33% quando houve acerto apenas de uma sequência sonora e 0% quando a criança não teve êxito ao apontar a sequência de instrumentos ouvida.
O critério de referência de normalidade adotado para as tarefas de sequenciação de sons verbais e não verbais, independentemente do número de estímulos sonoros, foi de pelo menos duas sequências corretas em três tentativas. E, para a tarefa de Localização Sonora, foi a identificação das fontes sonoras à direita e à esquerda e, pelo menos, duas das três fontes sonoras localizadas acima, à frente e atrás da cabeça da criança.
Todas as respostas observadas às tarefas descritas foram anotadas em protocolo apropriado, que continha as demais informações de cada participante (idade, sexo, diagnósticos otorrinolaringológico e fonoaudiológico, limiares auditivos de ambas as orelhas). Computaram-se os acertos em valores percentuais para posterior comparação entre os grupos.
Para o tratamento estatístico, levou-se em consideração a porcentagem de acerto em cada uma das provas realizadas. Para a comparação estatística dos grupos aplicaram-se os testes: Exato de Fisher, Mann-Whitney e Kruskal-Wallis, e a regra de Bonferroni. Utilizou-se o programa SPSS (Statistical Package for Social Sciences), em sua versão 13.0. O nível de significância foi fixado em 0,05 (5%) para os três testes. Aplicou-se a Regra de Bonferroni para correção do valor da significância alterada em função do número de combinações possíveis. Dessa forma, como são dez as combinações de idades duas a duas, o valor 0,05 foi dividido por 10, resultando em outro valor menor ou igual a 0,005. Os valores estatisticamente significantes foram marcados com asterisco (*).
RESULTADOSÀ distribuição e descrição das crianças segundo a idade, sexo, diagnóstico otorrinolaringológico e fonoaudiológico e os resultados da Avaliação do Processamento Auditivo, é possível observar que a maioria das crianças do GP (74,2%) apresentou disfonia organofuncional, enquanto apenas 25,8% apresentaram disfonia funcional. Quanto ao Processamento Auditivo, 100% das crianças do GC mostraram resultados normais, enquanto no GP, 61,29% apresentou resultado normal.
Na Tabela 1 observa-se a distribuição e descrição das crianças do GP e do GC segundo a idade, sexo, diagnóstico otorrinolaringológico e fonoaudiológico e o resultado da Avaliação do Processamento Auditivo. Observa-se que a maioria das crianças (74,2%) apresentou disfonia organofuncional, e as demais disfonia funcional. Quanto ao Processamento Auditivo, 100% das crianças do GC mostraram resultados normais, enquanto no GP, 61,29% apresentaram resultado normal.
A Tabela 2 apresenta as medidas descritivas e comparações das médias percentuais de acertos obtidos nas provas de Avaliação Simplificada do Processamento Auditivo. Verifica-se a presença de diferença estatisticamente significante na prova de MSNV, com pior desempenho das crianças disfônicas.
A comparação intragrupos dos desempenhos nas diferentes provas realizadas, segundo as idades, mostrou no GP a presença de diferença estatisticamente significante entre as idades na análise da prova de MSNV, sendo o pior desempenho observado na faixa etária de 4 anos. No GC, foi possível observar pior desempenho na faixa etária de 4 anos na tarefa de Localização a Fonte Sonora.
A Tabela 3 apresenta o desempenho intragrupo das crianças do GP e do GC nas diferentes provas realizadas, segundo as idades. Observou-se no GP a presença de diferença estatisticamente significante entre as idades na prova de MSNV, sendo o pior desempenho observado na faixa etária de 04 anos. No GC, foi possível observar pior desempenho na faixa etária de 4 anos na tarefa de Localização a Fonte Sonora.
DISCUSSÃOO grupo de crianças disfônicas foi constituído a partir de demanda espontânea do Ambulatório de ORL Pediatria da UNIFESP. A distribuição e descrição das crianças desse grupo mostraram a predominância de meninos e do quadro de disfonia organofuncional (74,2%). Quanto ao Processamento Auditivo, 38,7% desse grupo apresentaram alguma alteração nas respostas da Avaliação Simplificada, enquanto no GC, 100% das crianças mostraram resultados normais nessa avaliação (Tabela 1).
À comparação intergrupos (Tabela 2), verificou-se a presença de diferença estatisticamente significante entre os grupos na prova de MSNV, com pior desempenho das crianças disfônicas. Déficits na memorização de sequências de padrões sonoros podem estar relacionados à dificuldade de distinguir as relações sonoras de traços suprassegmentais da fala de prosódia, altura, intensidade, timbre16 e à dificuldade em perceber as diferenças entre características acústicas dos sons.
Portanto, semelhante a outras pesquisas realizadas com crianças que apresentavam distúrbios do aprendizado8,9,11,14,15,os resultados deste estudo podem indicar que as alterações de voz também estão associadas a alterações da percepção auditiva. Outros estudos realizados com crianças disfônicas relataram resultados semelhantes2-4.
A Avaliação da MSV não apontou diferença estatisticamente significante entre os grupos, assim como a avaliação de LOC. O bom desempenho na avaliação de LOC permite dizer que o grupo de crianças disfônicas apresenta boas condições de localizar a fonte sonora e, por consequência, de discriminar, auditivamente, os sons (Tabela 2).
A comparação intragrupo e por faixa etária (Tabela 3) das crianças nas diferentes tarefas de avaliação da função auditiva mostrou que no GP houve melhora nas respostas de MSNV com o aumento da idade. Essas respostas também foram comparadas duas a duas idades, por meio da regra de Bonferroni (teste de Mann-Whitney) verificando valores indicativos de tendência de diferença entre as idades 4 e 6, 4 e 7, 4 e 8, 5 e 8, 6 e 8. Assim, as crianças de 4 a 6 anos mostraram pior desempenho nessa prova que as de maior faixa etária, o que pode indicar um atraso de maturação das vias auditivas nesse grupo de disfônicos. A precisão na habilidade de ordenação temporal necessita que ambos os hemisférios direito e esquerdo estejam anatômica e funcionalmente intactos. Além disso, esse mecanismo de processamento temporal é consensualmente reconhecido entre os pesquisadores como importante na percepção da fala12.
O GC mostrou diferença estatisticamente significante na prova de LOC, quando comparados os desempenhos entre as idades: a criança de 4 anos errou a identificação da direção de um estímulo sonoro, perfazendo 80% de acerto e todas as outras crianças tiveram 100% de acerto. Entretanto, essa diferença estatística não é relevante, pois 80% de acerto é considerado resultado normal na prova de LOC nessa idade.
A observação das médias de resposta de cada faixa etária no GP mostra que as crianças de 4 anos responderam muito abaixo do esperado para crianças da mesma faixa de idade segundo parâmetros da literatura16 e na comparação com o próprio GC constituído nesta pesquisa. O mesmo se pôde observar com relação às crianças disfônicas de 5 anos. O aumento progressivo do número de respostas corretas ao longo das idades indicou que a percepção auditiva para padrões de sequências de sons instrumentais melhora com a idade, também em crianças disfônicas, assim como indica a literatura quanto ao desenvolvimento de crianças normais ou com outros distúrbios da comunicação ou do aprendizado7-10. Esse aumento progressivo do número de acertos talvez possa explicar porque as dificuldades de reabilitação vocal de crianças tão pequenas melhoram com o crescimento e desenvolvimento, uma vez que, com o aumento da idade, mais facilmente podem perceber as nuances características das variações da própria voz.
Com base nos achados deste trabalho, recomenda-se que na avaliação fonoaudiológica de crianças disfônicas seja incluída a avaliação do processamento auditivo. O conhecimento sobre a capacidade de processamento acústico dos sons pode auxiliar no processo de reabilitação, especialmente em estratégias que estimulam a monitoração da própria voz pela criança. Do ponto de vista terapêutico, os resultados desta pesquisa indicam que a associação de estratégias de treinamentos vocais com a estimulação da percepção auditiva da ordenação temporal não-verbal - ligada à distinção de relações sonoras de intensidade, duração e frequência, dentre outras - podem facilitar a obtenção de resultados positivos e mais eficazes no trabalho com crianças disfônicas.
CONCLUSÃOA avaliação do processamento auditivo das crianças disfônicas mostrou a presença de alterações de habilidades auditivas de ordenação temporal de sons não verbais que diferenciaram esse grupo do de Comparação. O aumento progressivo do número de respostas corretas com o aumento da idade mostrou que as crianças disfônicas apresentaram o mesmo padrão de maturação do sistema auditivo que crianças normais ou com outros distúrbios da comunicação, o que pode explicar as dificuldades encontradas na reabilitação vocal nas faixas etárias mais baixas.
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1. Mestre em Ciências pelo Programa de Pós-Graduação em Distúrbios da Comunicação Humana: Campo Fonoaudiológico da Universidade Federal de São Paulo, fonoaudióloga clínica.
2. Mestre em Ciências pelo Programa de Pós-Graduação em Distúrbios da Comunicação Humana: Campo Fonoaudiológico da Universidade Federal de São Paulo, Fonoaudióloga clínica.
3. Professora Livre-Docente da Disciplina dos Distúrbios da Audição do Departamento de Fonoaudiologia da Universidade Federal de São Paulo, Docente da Disciplina dos Distúrbios da Audição do Departamento de Fonoaudiologia da UNIFESP.
4. Prof. Titular e Livre-Docente em Otorrinolaringologia pela Universidade Federal de São Paulo, Professor Titular do Departamento de Otorrinolaringologia e Cirurgia de Cabeça e Pescoço da Universidade Federal de São Paulo.
5. Doutora em Distúrbios da Comunicação Humana pela Universidade Federal de São Paulo, Professora Associada do Departamento de Fonoaudiologia da Universidade Federal de São Paulo.
Este artigo foi submetido no SGP (Sistema de Gestão de Publicações) da BJORL em 24 de junho de 2010. cod. 7178
Artigo aceito em 25 de agosto de 2010.