INTRODUÇÃO
Em 1971, o oncologista norte-americano Van Renssealer Potter utilizou pela primeira vez o termo Bioética1. Frente aos avanços tecnológicos, científicos, o surgimento de dilemas morais e as transformações no cenário social e político que ocorreram entre as décadas de 1960 e 1970, objetivava promover um novo diálogo entre a ciência e o humanismo2, promovendo um debate acerca da ética normativa e aplicada3 por meio de uma nova disciplina que associasse o conhecimento biológico (bio) com os valores humanos (ética)1.
A consolidação da bioética ocorreu em 1979, com a publicação do livro Princípios da Ética Biomédica, em que se estabeleciam seus princípios norteadores: autonomia, beneficência, não maleficência e justiça4. A autonomia refere-se ao direito de cada pessoa autogovernar-se, o que do ponto de vista prático se traduz no consentimento do paciente em participar dos procedimentos médicos propostos. A beneficência e a não maleficência correspondem aos princípios hipocráticos de fazer o bem (bonum facere) e primeiro não lesar (primun non nocere), aludindo à necessidade de sempre buscar o bem-estar e ao cuidado nas intervenções. A justiça é o princípio da equidade, no qual os iguais devem ser tratados de modo igual e os desiguais, de forma desigual3.
Esses princípios mantêm-se até hoje. O panorama contemporâneo da bioética é baseado em uma ética em que há um equilíbrio entre o respeito pela pessoa e as exigências da investigação, entre o respeito pelos valores individuais e o interesse da coletividade5.
OBJETIVO
O objetivo deste artigo de revisão tradicional é discutir os principais aspectos éticos envolvidos na pesquisa em seres humanos.
MATERIAL E MÉTODO
Os autores analisam criticamente o surgimento dos códigos de bioética focando a Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde e literatura correlata.
DISCUSSÃO
Nas últimas décadas, a medicina tem sido cada vez mais permeada pelo conceito de medicina baseada em evidências, na qual a pesquisa clínica possui papel crucial no estabelecimento de diretrizes diagnósticas e terapêuticas. Com o avanço da pesquisa clínica, surgiu a preocupação e o entendimento que certos padrões éticos devam ser obedecidos quando o objeto de estudo é o ser humano6.
Em 1947, com o reconhecimento dos chamados 'crimes contra humanidade' realizados durante a Segunda Guerra Mundial, foi criado o Código de Nuremberg, com o estabelecimento das primeiras normas para regular a pesquisa realizada em seres humanos. Entre essas regras estabelecia-se a necessidade do consentimento voluntário do participante, a prévia realização de estudos em laboratórios e com os animais, a análise de riscos e benefícios que a investigação poderia trazer, a liberdade do indivíduo de se retirar a qualquer tempo do projeto e a demonstrada qualificação do pesquisador para executá-lo, entre outros pontos7.
Durante a 18ª Assembleia Médica Mundial, em 1964, foi revisto o Código de Nuremberg e aprovada a Declaração de Helsinque, na qual se estabelecem também as normas para pesquisa clínica combinada com o cuidado profissional e pesquisa clínica sem finalidade terapêutica8, sendo até os dias atuais recomendada na legislação de diversos países e submetida a revisões constantes. No Relatório Belmont de 1979 foi estabelecido pela primeira vez o uso dos princípios éticos básicos de respeito às pessoas, beneficência e justiça na adequação ética das pesquisas.
A partir da criação de tais documentos, iniciou-se, então, uma crescente internacionalização dos padrões metodológicos e proliferação legislativa e normativa preocupada em compatibilizar na prática a ética do indivíduo com a ética dos conhecimentos, os direitos do homem com o bem-estar social5, sendo na década de 80, redigido um documento mais elaborado sobre o assunto denominado "Diretrizes Internacionais para a Pesquisa Biomédica em Seres Humanos". Estas normas reguladoras fundamentam-se no fornecimento e compreensão das informações pelo sujeito a respeito da pesquisa, seguida de seu consentimento informado; nas obrigações do pesquisador; na proteção de grupos vulneráveis ou com autonomia reduzida como crianças, portadores de distúrbios mentais ou comportamentais, prisioneiros, indivíduos de comunidades subdesenvolvidas e gestantes; e na constituição e responsabilidades dos comitês de revisão ética9.
No Brasil, somente em 1988 são criadas as primeiras normas regulamentando a experimentação em seres humanos, através da resolução 01/88. Em 1995, o Conselho Nacional de Saúde (CNS) decidiu pela revisão da mesma, com o objetivo de atualizá-la e preencher lacunas geradas pelo desenvolvimento científico. A nova resolução foi elaborada por meio de um processo exemplar de construção participativa, por um grupo composto por representantes de diversas áreas sociais e profissionais, contando com o apoio de médicos, teólogos, juristas, biólogos, empresários e representantes de usuários. A Resolução 196/96 do CNS incorpora à legislação brasileira os princípios bioéticos internacionalmente consagrados de autonomia, beneficência, não maleficência e justiça e baseia-se nos documentos supracitados, assim como nas disposições da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 e legislação brasileira correlata, podendo-se citar o Código de Direitos do Consumidor, Código Civil e Penal, Estatuto da Criança e do Adolescente, entre outros. Dessa forma, visa assegurar os direitos e deveres que dizem respeito à comunidade científica, aos sujeitos da pesquisa e ao Estado10.
A Resolução 196/96 do CNS explicita que "todo procedimento de qualquer natureza envolvendo o ser humano, cuja aceitação não esteja ainda consagrada na literatura científica, será considerado como pesquisa" e que "toda pesquisa envolvendo seres humanos envolve risco", seja de forma direta ou indireta. Fica garantido ao sujeito da pesquisa o direito à assistência integral e indenização, caso venha a sofrer qualquer tipo de dano (moral, físico, psíquico, intelectual, social, cultural ou espiritual) decorrente do estudo, que deverá ser suspenso imediatamente ao constatar-se algum risco ou dano à saúde do sujeito participante da pesquisa, consequente à mesma, não previsto no termo de consentimento. Do mesmo modo, tão logo constatada a superioridade de um método em estudo sobre outro, o projeto deverá ser suspenso, oferecendo-se a todos os sujeitos os benefícios do melhor regime. Ao término do estudo também se deve assegurar aos sujeitos da pesquisa os benefícios resultantes do projeto, seja em termos de retorno social, acesso aos procedimentos, produtos ou agentes da pesquisa.
O princípio bioético da autonomia materializa-se na obrigatoriedade de obtenção do consentimento livre e esclarecido, um documento em que o sujeito expressa sua autorização de participação voluntária na pesquisa. Na obtenção de tal anuência, o esclarecimento dos indivíduos deve ser feito em linguagem acessível, com exposição clara de métodos alternativos existentes; desconfortos e riscos possíveis e benefícios esperados; garantia de sigilo, confidencialidade e privacidade; liberdade de recusar a participar ou retirar o consentimento em qualquer fase do estudo sem que haja qualquer forma de penalização ou prejuízo a seu cuidado; formas de indenização.
Merece especial atenção a tentativa de proteção aos grupos de vulnerabilidade, preconizando que as pesquisas devam ser desenvolvidas em indivíduos com autonomia plena, excluindo-se as possibilidades de dependência, subordinação, coação ou intimidação. Pela resolução, define-se como vulnerabilidade o "estado de pessoas ou grupos, que por quaisquer razões ou motivos, tenham sua capacidade de autodeterminação reduzida, sobretudo no que se refere ao consentimento livre e esclarecido".
A Resolução 196/96 trata como sinônimas a condição de autonomia reduzida e de vulnerabilidade. Segundo Guimarães & Novaes11, os termos se divergem, pois a redução de autonomia, seja transitória, definitiva ou voluntária, está ligada a pessoa e não é extensível para um grupo, pois a expressão da liberdade se concretiza no consentimento informado, dado por cada sujeito individualmente. Já os vulneráveis são pessoas que por condições sociais, culturais, étnicas, políticas econômicas, educacionais ou de saúde têm as diferenças estabelecidas entre eles e a sociedade transformadas em desigualdade, que dificulta a sua capacidade de livremente expressar sua vontade. A exacerbação da vulnerabilidade leva à redução ou perda total da liberdade individual, pois os mesmos fatores que conduzem à vulnerabilidade contribuem para impedir uma escolha livre11.
E por que a vulnerabilidade constitui uma preocupação da bioética? Uma possível resposta é que indivíduos ou grupos vulneráveis estão sujeitos à exploração. Por outro lado, ações voltadas para proteger vulneráveis podem ser entendidas como paternalistas, por conseguinte ser questionadas pelos próprios grupos que se pretende proteger. Pacientes com doenças crônicas ou deficiências podem apresentar redução de sua autoestima, tornando-se fragilizados, portanto, vulneráveis, sujeitos a tomarem decisões emotivas, em detrimento das racionais12 e em situação de dependência dos pesquisadores e da instituição acaba renunciando sua autodeterminação. Também é preocupante a situação de indivíduos em nosso país, que sem acesso assegurado à assistência à saúde muitas vezes buscam a participação em pesquisas como forma de obter acesso a algum tratamento8.
Um ponto da resolução que merece destaque é que está vedada qualquer forma de remuneração aos sujeitos participantes, embora seja permitido o ressarcimento de despesas. Contudo, a resolução é vaga em relação às quais despesas podem ser ressarcidas. Estaria o pagamento pela inconveniência e o tempo gastos incluídos neste reembolso, ou apenas gastos com transporte e alimentação? Em alguns casos, como o de indivíduos economicamente desfavorecidos, o ressarcimento pode agir como fator de persuasão na participação na pesquisa, pois pode induz os possíveis sujeitos a consentirem participar na pesquisa contra o seu melhor julgamento ("indução excessiva")9. Segundo Charlesworth, os economicamente desfavorecidos apresentam autonomia reduzida, pois "ninguém está capacitado para desenvolver a liberdade pessoal se está angustiado pela pobreza, privado da educação básica ou se vive desprovido da ordem pública"13.
Em um esforço para que tais normas sejam cumpridas, estabelece-se a obrigatoriedade da apresentação de projetos ao Comitê de Ética em Pesquisa da instituição. A diversidade de formação e competência dos membros que constituem o comitê de ética, com a inclusão de representantes de vários ramos do saber, inclusive representantes dos usuários, ilustra a tendência que as decisões que devem ser tomadas sobre a experiência a ser realizada sejam feitas pelo conjunto da sociedade. Desse modo, tenta-se eliminar do âmbito puramente médico-científico o juízo sobre a moralidade da investigação biomédica5.
Coordenando o conjunto existe a Comissão Nacional de Ética de Pesquisa (CONEP), que atua como instância normativa, de recurso e coordenação, cabendo à mesma a aprovação e elaboração de normas complementares em áreas temáticas como genética humana, reprodução humana, pesquisa com povos indígenas, pesquisa com cooperação estrangeira, pesquisas que envolvam biossegurança, pesquisa com novos equipamentos e procedimentos cuja aceitação ainda não está consagrada na literatura.
CONCLUSÃO
Apesar da implantação da Resolução 196/96 e de normas reguladoras internacionais, ainda permanecem alguns equívocos éticos, principalmente no que diz respeito ao consentimento livre e esclarecido, ao uso de placebo, à participação de pessoas em situação de vulnerabilidade e à realização de pesquisas em países em desenvolvimento.
O consentimento informado é muitas vezes encarado como mera peça burocrática, de isenção de responsabilidades, quando o verdadeiro intuito do documento é a proteção da liberdade e dignidade dos sujeitos da pesquisa8. Em relação ao uso de placebo, vulnerabilidade e pesquisa em países em desenvolvimento, tais tópicos constituem constantes objetos de discussão, principalmente devido à pressão de conglomerados farmacêuticos e pesquisadores estrangeiros, devendo as futuras atualizações da Declaração de Helsinque e da Resolução 196/96 zelar pela manutenção e pelo cumprimento do respeito aos sujeitos envolvidos na pesquisa.
O atual documento brasileiro não é estatutário ou código e, sem ser lei, tem força legal, sendo consistente o suficiente para flexibilização com responsabilidade. Em suma, a ética na pesquisa em humanos não funciona como um mapa já cartografado, apenas direciona aos princípios de autonomia, beneficência, não maleficência e justiça, assim como uma bússola14.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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6. Park SS, Grayson MH. Protection of the 'vulnerable'?. J Allergy Clin Immunol.2006;121(5):1103-7.
7. Miziara ID, Mello JF. Ética na pesquisa científica e na publicação de artigos em revistas biomédicas. Braz J Otorhinolaryngol.2008;74(3):322.
8. Freitas CBD, Hossne WS. Pesquisa com Seres Humanos. Em: Costa SIF, Oselka G, Garrafa V: Iniciação à Bioética. Brasília, Conselho Federal de Medicina, 1998.P.193-204.
9. Conselho para Organizações Internacionais de Ciências Médicas (CIOMS), Organização Mundial de Saúde (OMS). Diretrizes éticas internacionais para pesquisa biomédicas envolvendo seres humanos. Bioética.1995;3:95-133.
10. Conselho Nacional de Saúde (Brasil). Resolução nº 196, de 10 de outubro de 1996. Diário Oficial da União, Brasília, n.201, p. 21082, 16 Out. 1996. Seção 1.
11. Guimarães MCS, Novaes SC. Autonomia Reduzida e Vulnerabilidade: Liberdade de Decisão, Diferença e Desigualdade. Bioética.1999:7(1):14-16.
12. Macklin R. Bioética, Vulnerabilidade e Proteção. Em: Garrafa V, Pessini L (orgs). Bioética: Poder e Injustiça. São Paulo: Edições Loyola; 2003.p.59-70.
13. Charlesworth M. La bioética en una sociedad liberal. Cambridge: Cambridge, 1996:V,131
14. Sulmasy DP. Appearance and morality: Ethics and otolaryngology-head and neck surgery. Otolaryngol Head Neck Surg.2002;126(1):4-7.
1. Médica Otorrinolaringologista, Médica Colaboradora do Grupo de Voz da Divisão de Otorrinolaringologia do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo 2. Médico Otorrinolaringologista, Médico Preceptor da Divisão de Otorrinolaringologia do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo 3. Médico Otorrinolaringologista, Pós-graduando da Disciplina de Otorrinolaringologia do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo 4. Professor Livre-Docente pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, Chefe do Grupo de Estomatologia da Divisão de Otorrinolaringologia do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo e Professor Titular de Medicina Legal e Deontologia Médica da FMABC 5. Doutorado em Patologia pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, UNESP. Professor Doutor de Bioética do Departamento de Medicina Legal, Ética Médica, Medicina Social e do Trabalho da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo
Disciplina de Otorrinolaringologia do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.
Endereço para correspondência: Marystella Tomoe Takahashi R. Otávio Nébias 98 ap. 121 Vila Mariana São Paulo SP 04002-010
Este artigo foi submetido no SGP (Sistema de Gestão de Publicações) da BJORL em 16 de dezembro de 2009. cod. 6846 Artigo aceito em 3 de janeiro de 2010.
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