ISSN 1806-9312  
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4122 - Vol. 77 / Edição 2 / Período: Março - Abril de 2011
Seção: Artigo Original Páginas: 163 a 170
Análise acústica e psicoacústica do ruído de armas utilizadas pela Polícia Militar
Autor(es):
Heraldo Lorena Guida1; Thiago Hernandes Diniz2; Sérgio Koodi Kinoshita3

Palavras-chave: armas de fogo, polícia, ruído ocupacional.

Keywords: firearms, police, noise, occupational.

Resumo: Os policiais militares estão expostos a ruídos de impacto provenientes de armas de fogo, os quais são capazes de causar lesões irreversíveis ao sistema auditivo. Objetivo: Avaliar a exposição ao ruído no estande de tiros durante os exercícios de tiro, analisar acusticamente o ruído de impacto e relacioná-lo com os resultados de audiometria tonal. Forma de Estudo: Transversal. Material e Método: A medição do ruído foi feita por meio de decibelímetro digital e a análise acústica foi feita no software Praat, levantando as curvas de oscilograma e cocleograma. Foi selecionada uma amostra de 30 policiais militares (27 masculinos e 3 femininos). Resultados: Os picos máximos medidos no estante de tiros foram de 113,1 dB(C) para pistola .40 e 116,8 dB(C) para revólver .38. Os valores obtidos por meio da relação entre o oscilograma temporal e cocleograma Praat ficaram entre 17,9±0,3 Barks, correspondendo à faixa entre 4120 e 4580 Hz. As medidas da audiometria indicaram maior perda auditiva na faixa de 4000Hz em 86,7% dos casos. Conclusão: A partir da análise acústica dos tiros, foi possível demonstrar causa e efeito entre as principais áreas de excitação de energia na cóclea (cocleograma Praat) e as frequências com diminuição de acuidade auditiva.

Abstract: Police officers are exposed to impact noise coming from firearms, which may cause irreversible injuries to the hearing system. Aim: To evaluate the noise exposure in shooting stands during gunfire exercises, to analyze the acoustic impact of the noise produced by the firearms and to associate it with tonal audiometry results. Study design: Cross-sectional. Materials and methods: To measure noise intensity we used a digital sound level meter, and the acoustic analysis was carried out by means of the oscillations and cochlear response curves provided by the Praat software. 30 police officers were selected (27 males and 3 females). Results: The peak level measured was 113.1 dB(C) from a .40 pistol and 116.8 dB(C) for a .38 revolver. The values obtained for oscillation and Praat was 17.9±0.3 Barks, corresponding to the rate of 4,120 and 4,580 Hz. Audiometry indicated greater hearing loss at 4,000Hz in 86.7% of the cases. Conclusion: With the acoustic analysis it was possible to show cause and effect between the main areas of energy excitation of the cochlea (Praat cochlear response curve) and the frequencies of low hearing acuity.

INTRODUÇÃO

Ruído é uma palavra derivada do latim rugitu, que significa estrondo. Acusticamente é constituído por várias ondas sonoras com relação de amplitude e fase distribuídas anarquicamente, provocando sensação desagradável1. O ruído pode ser contínuo, quando não há variação do nível de pressão sonora nem do espectro sonoro; flutuante, quando apresenta variações de nível de energia acústica em função do tempo; ou de impacto, aquele que apresenta picos de energia acústica de duração inferior a um segundo, a intervalos superiores a um segundo2.

Os ruídos de impacto são usualmente produzidos por rápidas expansões de gás, como armas de fogo e explosões de bombas. Estes sons podem atingir intensidades de 140 dB NPS (nível de pressão sonora) em frequências ao redor de 2 e 3 kHz e, por esta razão, são perigosos à audição humana3.

Quando o ouvido humano é exposto a ruído de impacto, a uma intensidade sonora da ordem de 120 dB ou superior, há o risco do trauma acústico. A carga sonora produzirá, na cóclea, lesões intensas como ruptura da membrana basilar, desorganização dos tecidos e células ciliadas, de maneira abrupta. Clinicamente, uma das consequências do ruído de impacto apresenta-se por perda auditiva neurossensorial imediata e permanente, uni ou bilateral, com presença de zumbidos. Em alguns casos, a perda auditiva pode apresentar melhora após alguns dias4, porém, exposições permanentes a fortes ruídos lesionam as células ciliadas externas, particularmente as da espira basal da cóclea, possivelmente por ser esta a parte do órgão mais constantemente estimulada5. A extensão e o grau do dano auditivo têm relação direta com a intensidade da pressão sonora, duração no tempo, frequência e a maior ou menor susceptibilidade do indivíduo, podem causar alteração do limiar auditivo, ou perda auditiva induzida por ruído (PAIR) que, da mesma forma que o trauma acústico, é irreversível.

A PAIR é uma perda neurossensorial, que acomete inicialmente a faixa de frequência entre 3 e 6 kHz, na qual o limiar de 8 kHz tem de estar melhor que o pior limiar (3, 4 ou 6 kHz)6,7. Essa perda atinge principalmente as células ciliadas da cóclea situadas a cerca de 5 a 10 mm da janela vestibular, justamente na região receptora dos estímulos de 4 a 6 kHz. As causas de maior vulnerabilidade dessa região ainda não foram totalmente explicadas, mas podem estar relacionadas às características de ressonância da orelha externa (OE) e da orelha média (OM), às características mecânicas e anatômicas da cóclea e também ao seu suprimento sanguíneo8.

A Norma de Higiene Ocupacional9 da Fundacentro apresenta uma fórmula para o cálculo da quantidade de pulsos de impacto a que o trabalhador pode ficar exposto em cada jornada de trabalho, de acordo com a magnitude do impulso. A Norma Reguladora 15 (NR-15) estabelece ainda que o trabalhador não deve ficar exposto a níveis de pressão sonora superiores a 130 dB(C)2.

Um dos setores que expõe os seus trabalhadores a níveis elevados de ruído é o militar, principalmente no treinamento de tiro com armas de fogo. Os ruídos de explosão de arma de fogo são uma das primeiras causas de perda auditiva induzida por ruído nos Estados Unidos10.

Estudos do perfil auditivo em militares feito no Brasil têm demonstrado elevado índice de perda auditiva nesta população, fato este associado à exposição excessiva a ruídos de impacto sem o uso de equipamento de proteção individual11-13.

Em uma pesquisa sobre o perfil auditivo de militares do Exército brasileiro, realizada por meio de entrevista, otoscopia e exames audiométricos, foram observadas alterações audiométricas supostamente induzidas por ruído em 38,1% dos exames nos militares avaliados, com predomínio de perda auditiva unilateral. Foi verificado também que 64,5 % dos militares examinados não utilizavam proteção adequada14.

Outros autores mediram o nível de ruído no local de trabalho da Polícia Militar do Paraná, e constataram intensidades superiores a 100 dB NPS15. Nesta linha de investigação, foram pesquisados os limiares auditivos de 22 policiais militares de Bauru-SP. Destes, 17 apresentaram audiogramas alterados, com entalhe nas frequências agudas16.

Nas Forças Armadas de Cingapura foi desenvolvido um trabalho para verificar os efeitos do treinamento militar básico na audição. Os pesquisadores analisaram as audiometrias de 85 militares antes e depois do treinamento, e verificaram uma prevalência de 9,4% de perda auditiva, que se manteve igual após um ano. O estudo permitiu concluir que o programa de conservação auditiva existente nas forças armadas de Cingapura é eficiente e resguarda a saúde auditiva de seus militares17.

Um recente estudo realizou o levantamento do perfil audiológico de cinco instrutores de tiro da Polícia Militar de Montes Claros-MG. Na aferição dos níveis de pressão sonora, o nível médio encontrado no estande de tiro foi de 97,4 dB e dos cinco policiais analisados, dois apresentaram curva audiométrica com configuração em entalhe, sendo um unilateral e o outro bilateral, e um apresentou perda auditiva neurossensorial de grau leve nas altas frequências, com configuração da curva audiométrica em gota18.

A literatura internacional sugere a necessidade de um programa de conservação auditiva para militares, devido às grandes intensidades sonoras a que esta população está exposta em seu ambiente de trabalho19,20.

Existe a necessidade de implantação de um programa de conservação auditiva (PCA), para a prevenção de perda auditiva induzida por ruído, quando ruído do ambiente de trabalho ultrapassar 85 dB (A) para 8h diária, para ruído contínuo ou intermitente, ou 120 dB (C), para ruído de impacto. Dentro deste programa, os primeiros fatores a serem considerados são: o reconhecimento do ambiente e a quantificação da exposição ao ruído21.

Todos os trabalhos descritos anteriormente quantificaram os níveis de intensidade ou pressão sonora (NIS ou NPS) do ruído da arma de fogo, ao qual os militares ficaram expostos durante o treinamento e a relação dessa exposição às alterações audiométricas nos militares examinados, porém, sem um estudo das características físicas deste tipo de ruído e suas influências das perdas auditivas examinadas.

A literatura apresenta poucas pesquisas relacionadas à análise acústica de sons não verbais. Existem trabalhos que fazem a análise da representação temporal e espectral do estímulo sonoro22, ou que agrupam os sons de acordo com os eventos físicos que os geram, defendendo o pressuposto que as propriedades acústicas dependem do material (sólido, líquido ou gasoso) e da interação dos próprios materiais (e.g., impacto, pingar ou explosão)23. Mas, até onde vai o nosso conhecimento, a análise acústica específica de ruídos emitidos por armas de fogo, bem como a posterior comparação com os achados audiológicos, é rara na literatura.

Recentemente foi realizado nos Estados Unidos um estudo que avaliou as estimativas do risco auditivo do disparo de armas de fogo civis. Foram analisados diferentes tipos de armas: rifle, espingarda, revólver 38 e pistola (9 mm). Os picos máximos obtidos no estudo foram de 141 a 164 dB (NPS). Considerando o revólver e a pistola, na análise do espectro acústico do ruído, os picos de maior energia foram concentrados nas frequências baixas e médias, com decréscimo nas altas frequências24.

A influência do espectro de ruído na prevalência da PAIR em trabalhadores foi realizada em indústrias com níveis de ruído acima de 85 dB. Os autores não observaram associação entre as bandas de frequência com níveis intensos de ruído e a frequência da lesão auditiva25.

Em relação aos sons de instrumentos musicais, as medidas acústicas de duração, intensidade e frequência das ressonâncias são as mais utilizadas na análise acústica destes estímulos22. São considerados três períodos:

  • Transitório de ataque: corresponde à passagem do silêncio ao som, dura na maior parte dos instrumentos musicais entre alguns milissegundos a alguns centésimos de segundo; é muito importante para o reconhecimento do timbre, e se for cortado, o instrumento passa a ser auditivamente inclassificável na maior parte dos casos;


  • Período de estabilidade: tempo entre o anterior e o seguinte, que corresponde normalmente ao período de alguns décimos de segundo a alguns segundos; é extremamente importante para certas características sonoras como a altura e a intensidade;


  • Transitório de extinção (queda): período em que o som se extingue; é muito importante para o reconhecimento do timbre e se for cortado, o instrumento passa a ser auditivamente inclassificável na maior parte dos casos.


  • No estudo de ruído de tiro de arma de fogo, o período de estabilidade tem importância maior do que os outros parâmetros pela duração da intensidade e altura em que o soldado ficará exposto a esse tipo de som.

    Considerando fundamental relacionar a exposição de militares à interferência de ruído de arma de fogo, o objetivo do presente estudo foi realizar avaliação da exposição ao ruído no estande de tiros da polícia militar (PM), analisar o espectro acústico do ruído de impacto produzido pelas armas de fogo, transformando esses valores para a escala Bark a fim de comparar estes dados com os resultados audiométricos.


    MATERIAL E MÉTODO

    Foram realizadas medidas de nível de ruído das armas de fogo durante o treinamento de tiro em um Batalhão da Polícia Militar do Estado de São Paulo, análise do ruído das armas utilizadas durante o treinamento de tiro, e medidas de audiometria tonal de uma amostra da população de militares deste batalhão. Escolhemos as duas armas de fogo de maior frequência de utilização durante os treinos de tiro e na rotina dos policiais: revólver calibre .38 e pistola calibre .40, denominadas usualmente como revólver 38 e pistola .40, respectivamente.

    O trabalho foi submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa, tendo sido devidamente aprovado (parecer CEP n° 2762/2007), sendo que os procedimentos realizados estão em conformidade com a Resolução 196/1996, do Conselho Nacional de Saúde.

    Medição do Nível de Ruído

    A medição do ruído foi realizada por meio de decibelímetro digital, da marca MINIPA, modelo MSL - 1350, programado no circuito de resposta rápida (fast), ponderação "C", de acordo com a NR-15, em seu Anexo nº II, e faixa de medida entre 65 e 130 dB. As armas utilizadas foram revólver 38 e pistola .40, ambas da marca Taurus.

    Durante os treinamentos no estande de tiros, o número de policiais participantes variou entre 12 e 15, e cada indivíduo efetuou 50 disparos. Sendo assim, multiplicando o número de tiros pelo número de indivíduos, calculamos de 600 a 750 pulsos de impacto por período de treinamento.

    Os policiais são devidamente equipados com Equipamentos de Proteção Individual (E.P.I.s.), conforme NR 620, da Portaria 3214/782, sendo relevante para o nosso estudo ressaltar a utilização de protetores auriculares adequados, com certificado de aprovação (C.A.) pelo Ministério do Trabalho e Emprego.

    Análise Acústica e Psicoacústica

    Para a pesquisa do espectro acústico foi utilizado gravador portátil DAT acoplado a um microfone estéreo. As gravações foram digitalizadas numa taxa de amostragem de 44.000 Hz com o uso do CSL da Kay Elemetrics e analisadas por meio do aplicativo Praat26. Foram gravadas 10 amostras de sons de tiro com duas sequências de disparos (5 de revólver 38 e 5 de pistola .40). Para viabilizar a análise do espectro acústico de forma integral, durante a coleta de dados o volume do gravador foi regulado para reduzir a intensidade de gravação em 50% da potência.

    Como o objetivo do trabalho de pesquisa foi relacionar a exposição dos militares com o nível de ruídos submetidos durante o período de treinamento, adotamos os seguintes procedimentos:

    Analisamos primeiramente o gráfico das formas de onda dos sons de tiro em relação a sua representação temporal (Figura 1a). O gráfico fornece informação sobre a duração do som e a variação de intensidade ao longo do tempo. A partir deste gráfico, no aplicativo Praat, plotamos o gráfico temporal do nível de intensidade sonora (dB) (Figura 1b) e determinamos os instantes de pico para cada sequência de tiro por meio da matriz de dados disponível no aplicativo Praat.


    Figura 1. Praat pictures da segunda amostra de revólver calibre .38 (Tabela 1); A - gráfico temporal (oscilograma); B - cocleograma de posição temporal em Bark; C - gráfico temporal do nível de intensidade sonora (dB) com valores máximos em 0,33s e 0,75s; D - gráfico espectral de excitação (escala fon) onde linhas contínuas mais externas correspondem ao maior grau de excitação para os instantes de tempo 0,36s e 0,67s para as duas sequências de tiro da amostra.



    Após a análise acústica temporal dos tiros decorrentes das armas de fogo, estudamos o cocleograma de posição (gráfico que representa o padrão de excitação da membrana basilar na orelha interna em função do tempo) de cada sequência de tiro para determinar em quais regiões da membrana basilar da cóclea ocorre maior grau de deflexão gerada pela intensidade do ruído. Como cada região responde para uma faixa de frequência de ressonância, conhecida como Banda Crítica, supõe-se que estas regiões estão sujeitas à maior probabilidade de lesão nas células ciliadas pela forte intensidade do tiro (Figura 1c). A Banda Crítica representa uma faixa de frequência fornecida em escala de 0 a 24 e unidade em Bark. O cocleograma de posição permite visualizar graficamente as regiões de maior excitação pelo som do tiro, porém dificulta a determinação da posição exata em que ocorre o mais alto grau de excitação. Para melhorar a precisão desta medida, levantamos curvas espectrais de excitação de forma iterativa no período de tempo entre 0.1 e 1.5 segundos com intervalos de 0.01 segundos. Este processo de iteração semiautomática permitiu determinar os instantes de tempo que ocorre maior grau de excitação (escala fon) nas duas sequências de tiros (Figura 1d).

    Com isso, foi possível comparar os instantes de pico obtidos nos gráficos temporais (forma de onda e nível de intensidade sonora) e os instantes de tempo em que ocorre maior excitação da membrana basilar pelos gráficos de cocleograma (cocleograma de posição e curvas espectral de excitação). Se os instantes são estatisticamente semelhantes, podemos supor que esse instante como o de maior excitação da membrana basilar. Esses valores foram determinados pela matriz de dados dos gráficos disponíveis no aplicativo Praat. Aplicamos o teste estatístico t-student para avaliar a relação entre os dois grupos de amostras independentes com nível de significância de 5% (a = 0,05) para a hipótese nula (Ho). Conhecendo esses instantes de maior excitação, podemos levantar a faixa em Barks em que ocorre essa excitação e, com isso, determinamos a sua faixa de frequência.

    Sendo assim, foi possível identificar também a curva de forma espectral do som do tiro dos dois tipos de armas de fogo para analisar e discutir os períodos de transitório de ataque, estabilidade e transitório de extinção. Essa curva é importante para determinação da média de densidade de energia em função da frequência (Figura 2).


    Figura 2. Praat pictures - gráfico espectral de distribuição de densidade de nível de pressão sonora (dB): A - amostra de revólver calibre .38; B - amostra de pistola calibre .40.



    Avaliação dos Limiares Auditivos

    A medida dos limiares auditivos foi realizada em cabina acústica, com o uso do audiômetro GSI 61 Grason - Stadler27. Foram selecionados para este estudo os prontuários de 30 policiais militares de ambos os sexos (3 femininos e 27 masculinos), com média de idade de 41,9 ± 3,21 anos (34 a 47 anos) e média de tempo de serviço de 19,4 ± 4,02 anos (9 a 25 anos).

    Avaliamos também a assimetria dos valores audiológicos entre os de limiares de audiometria tonal das orelhas direita e esquerda, utilizando o teste McNemar a partir das proporções de limiares. O teste é não-paramétrico para duas proporções, no qual avalia o grau de discordância de uma variável entre duas amostras pareadas. Consideramos pares discordantes, a alteração unilateral (orelha esquerda ou direita), portanto, a hipótese nula se refere a não discordância nas proporções de alterações nas duas orelhas (alteração simétrica). O nível de significância adotado foi de 1% (a = 0,01) para hipótese nula (H0).


    RESULTADOS

    O ruído de fundo nos dias das medições foi em média 75,3 dB (C), e os picos máximos medidos foram de 113,1 dB(C) para a pistola calibre .40 e 116,8 dB(C) para o revólver calibre 38. Os valores médios de níveis de ruído foram de 114,8 dB(C) e 111,9 dB(C), respectivamente, para o revólver e pistola.

    Os instantes de tempo em que ocorreu maior nível intensidade na análise temporal e maior grau de excitação na análise espectral por meio do cocleograma para as duas sequências de tiros das amostras estão apresentadas na Tabela 1. O teste t-student aplicado entre os dois grupos de análises resultou em p=0,29 (p>a=0,05) para o 1º tiro e p=0,17 (p>a=0,05) para o 2º tiro, confirmando a aceitação da hipótese nula (Ho), ou seja, não houve diferença significativa na comparação do resultado entre os tempos das duas amostras (forma temporal versus cocleograma).




    Desta forma, o teste estatístico garantiu a adoção dos valores dos tempos de pico de excitação do cocleograma (Tabela 1) como referência para determinar a escala de Bark em que ocorreu maior grau de excitação da membrana basilar (Tabela 2). Os valores determinados na escala de Bark para as 10 amostras com duas sequências de tiros. Para o revólver 38, a escala de Bark ficou em média em 18,1 e 18,2 para o 1º e 2º tiro, respectivamente. Para a pistola .40, a escala de Bark ficou em média 17,8 e 17,6 para o 1º e 2º tiro, respectivamente. Portanto, podemos considerar que em média para os dois tipos de armas ficou em torno de 17,9±0,3 Barks, correspondendo, por interpolação linear, a uma área de estimulação na cóclea entre 4120 e 4580 Hz.




    A forma espectral (Figura 2) tem perfil descendente, nos dois tipos de armas, com queda de energia após a frequência de 5000 Hz. Consideramos que apesar das semelhanças entre ambos os espectros acústicos, o período transitório de ataque (que ocorre próximo de 200 a 250 Hz) e o período de estabilidade (faixa entre 300 e 5000 Hz), apresentaram uma inclinação levemente acentuada na curva de análise espectral da pistola .40, quando comparado com o espectro acústico do tiro com revolver 38.

    Os dados obtidos no exame de audiometria tonal da amostra de militares, apresentado na Tabela 3, revelaram diminuição da acuidade auditiva acima de 30 dB(NA) na faixa de frequência entre 3000 a 6000 Hz, com maior perda de acuidade na frequência de 4000 Hz (86,7%), revelando perda auditiva de configuração em entalhe. As menores perdas de acuidade ficaram para frequências abaixo de 3000 Hz (30,0%) e 8000 Hz (36,6%). As perdas auditivas bilaterais apresentaram maiores valores para as frequências 3000 Hz e 4000 Hz, não ultrapassando 36,7% do total da amostra; as unilaterais, nestas frequências, não ultrapassaram 16,7% (OD) e 33,3% (OE), e as bilaterais normais em 13,7%. O teste estatístico aplicado de McNemar resultou em aceitação de nulidade (Ho) com menor valor de p = 0,22 (p>a=0,01), confirmando estatisticamente a não assimetria da alteração auditiva nesta amostra.




    DISCUSSÃO

    Durante o treinamento com as armas de fogo, foram identificados pelo menos 600 impactos sonoros ocasionados pelos disparos das armas. Uma vez que a Norma Técnica Fundacentro3 considera que o limite máximo de nível de ruído para este número de impactos é de 109 dB (C), fica evidente a situação de insalubridade durante este tipo de treinamento.

    Outros autores também encontraram elevados níveis de intensidade sonora no ambiente ocupacional de policiais militares7, e estudos com avaliação audiológica em policiais constaram elevados índices de perda auditiva nesta população5.

    Os dados apresentados estão em conformidade com a literatura nacional e internacional, no que diz respeito à identificação do ambiente ocupacional insalubre, e a necessidade de elaboração de um programa de conservação auditiva para os policiais militares3,10,15,16,19,20.

    Os achados da análise temporal (Figura 1a) e espectral (Figura 2) dos sons das armas de fogo demonstram uma alta densidade de energia numa ampla faixa de frequência e curta duração de tempo. Observamos que o período transitório de ataque ocorre próximo de 200 a 250 Hz, o período de estabilidade está compreendido entre a faixa de 300 a 5000 Hz e o período transitório de extinção ocorre a partir de 5000 Hz. A duração dos pulsos de menos de 1 segundo e a forte intensidade dos ruídos próximo de 120 dB(C) nos permitiu presumir preliminarmente alterações de acuidade auditiva nos policiais militares da corporação.

    As análises acústica e psicoacústica dos sons dos tiros indicaram alguns aspectos de relevância na relação entre causa e efeito com as perdas auditivas detectadas na amostra de militares. Determinou a priori as regiões em que ocorre maior grau de excitação da membrana basilar da cóclea com esse tipo de ruído, permitindo a determinação das faixas de frequência correspondentes. Na análise do cocleograma Praat, foi possível observar intensa concentração de energia na área de 17,9±0,3 Barks, ou seja, na região de sensibilidade das frequências agudas na cóclea, 4120 e 4580 Hz.

    Os achados audiométricos corroboraram com o que foi apresentado no cocleograma Praat, uma vez que a frequência que apresentou piores limiares auditivos ficou em 4000 Hz (Tabela 3). Nesse sentido, os policiais militares apresentaram perda auditiva de configuração em entalhe28, do tipo neurossensorial, perfil clássico da perda auditiva induzida por ruído6,7.

    Os dados apresentados na análise acústica e audiométrica confirmam que as exposições permanentes a ruído lesionam as células ciliadas externas, particularmente as da espira basal da cóclea, possivelmente por ser esta a parte do órgão mais constantemente estimulada8.

    Apesar do resultado estatístico sobre a assimetria da perda auditiva entre as orelhas (direita e esquerda) resultar em aceitação da hipótese nula (Ho), verificamos que a proporção de perda auditiva é levemente superior na orelha esquerda em todas as frequências, excetuando-se em 8000 Hz que a proporção é igual (Tabela 3). Este fato está relacionado com a posição da cabeça durante a execução do tiro e torna-se relevante na execução de um programa de prevenção com a utilização de protetores auditivos adequados para cada orelha29.

    As medições e análises realizadas possibilitaram o reconhecimento do ambiente e a quantificação da exposição ao ruído21, e de maneira complementar foi possível também estabelecer o audiograma de referência dos policiais militares, por meio das avaliações audiológicas. Considerando a necessidade da continuidade do gerenciamento audiométrico nesta população, será dada a continuidade do trabalho, com alerta sobre os efeitos do ruído, e acompanhamento periódico da situação auditiva de cada policial.

    No que diz respeito à análise acústica, o presente estudo encontrou resultados semelhantes aos observados nos Estados Unidos: os picos de maior energia foram concentrados nas frequências baixas e médias, com decréscimo nas altas frequências24. Daí a importância da análise psicoacústica, que permite uma correlação mais precisa da influência do ruído na cóclea.

    Outro estudo refere ainda ausência de relação entre o espectro acústico do ruído e a PAIR; entretanto, os autores não realizaram análise psicoacústica para comprovarem seus resultados25. Sendo assim, não corroboramos esses dados, os quais descrevem a intensidade como o principal fator de lesão coclear, em detrimento do espectro acústico.


    CONCLUSÃO

    O presente estudo identificou níveis de pressão sonora superiores aos recomendados pela norma Fundacentro NHO 01, na qual estabelece que o limite máximo para a população estudada não deve ultrapassar 109 dB(C).

    A partir da análise acústica e psicoacústica dos tiros, foi possível demonstrar que há uma coincidência entre as principais áreas de concentração de energia (cocleograma Praat) junto às altas frequências e os achados audiométricos, demonstrando a relação causa e efeito dos tiros de arma de fogo com a perda auditiva.

    Sendo assim, concluímos a necessidade da aplicação de um programa de conservação auditiva junto ao batalhão da PM, visando a prevenção tanto em relação ao desencadeamento, quanto à piora da perda auditiva nos policiais.


    AGRADECIMENTOS

    À Doutora Larissa Cristina Berti pelo auxílio na coleta de dados dos ruídos dos tiros.


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    1. Doutor, Professor Assistente Doutor
    2. Bacharel em Fonoaudiologia, Fonoaudiólogo
    3. Doutor, Professor Doutor

    Faculdade de Filosofia e Ciências, Universidade Estadual Paulista - UNESP Campus de Marília SP.

    Endereço para correspondência:
    Heraldo Lorena Guida
    Faculdade de Filosofia e Ciências, UNESP
    Avenida Hygino Muzzi Filho 737
    Campus Universitário Marília
    SP 17525-900
    E-mail: hlguida@marilia.unesp.br

    Este artigo foi submetido no SGP (Sistema de Gestão de Publicações) da BJORL em 15 de abril de 2010. cod. 7007
    Artigo aceito em 23 de julho de 2010.
    Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo - FAPESP (Proc. nº 08/50720-1).
    Indexações: MEDLINE, Exerpta Medica, Lilacs (Index Medicus Latinoamericano), SciELO (Scientific Electronic Library Online)
    Classificação CAPES: Qualis Nacional A, Qualis Internacional C


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