INTRODUÇÃOExistem estudos sobre os efeitos da música em nosso organismo, pois a exposição musical ativa área cerebral relacionadas à atenção, semântica, análise musical, memória e funções motoras1; oferece benefícios de estimulação multimodal (audição, visão e olfato) para reabilitação motora e cognitiva2; e atua na prevenção contra a ansiedade, depressão e dor3.
O ritmo musical altera os níveis de noradrenalina, um dos neurotransmissores responsáveis pelo estado de alerta4 e da formação de memória5. A concentração de estrógeno também age na ação da noradrenalina, modificando comportamentos femininos, como disposição e cognição6.
O P300 é um potencial evocado auditivo de longa latência, gerado pela discriminação de um estímulo auditivo raro dentre estímulos auditivos frequentes7,8. Fornece também informações sobre o funcionamento do sistema auditivo, sendo instrumento de investigação para atenção seletiva, processamento da informação e cognição9. A variação hormonal pode alterar o P300, de acordo com a concentração do estrógeno10.
Como a noradrenalina e a concentração de estrógeno modulam a atividade cerebral, e participam nas respostas comportamentais e fisiológicas do sistema nervoso central, e que ritmos musicais podem interferir nas funções cognitivas de atenção e memória, há o interesse em estudar se tal influência ocorre no potencial cognitivo P300, como resposta ao funcionamento do sistema nervoso central. Assim, o objetivo do estudo é verificar a influência de exposição a diferentes tipos de música em diferentes velocidades na captação do P300 em jovens mulheres.
MATERIAL E MÉTODOO estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da instituição, com o parecer 0743/07, respeitando todos os princípios éticos em pesquisa com seres humanos.
Os exames foram realizados no Ambulatório de Distúrbios da Audição Humana. A casuística foi composta por 45 mulheres, faixa etária entre 20 e 36 anos, grau de instrução entre ensino médio a superior completo. Utilizamos como critério de inclusão: audição dentro dos padrões de normalidade na avaliação audiológica básica (audiometria tonal, logoaudiometria e medidas de imitância acústica); sem alterações na função auditiva central (teste dicótico de dígitos, padrão de duração e RGDT); e sem qualquer tipo de queixa relacionada com alterações de voz, linguagem, fala e audição.
Para evitar possíveis alterações nos resultados devido à variação hormonal do ciclo ovariano, realizamos os exames nos períodos com baixo nível de estrógeno e progesterona, nas mulheres que não usam método anticoncepcional: subfase folicular precoce (do início da menstruação até o 5º dia), e subfase lútea tardia (até 4 dias antes do início da menstruação). Nas mulheres que utilizam método oral anticoncepcional, avaliamos a população em qualquer dia, pois o uso do contraceptivo oral mantém os níveis estáveis dos hormônios durante o ciclo11.
Para avaliar o P300, utilizamos o equipamento Biologic Systems Corp, de quatro canais, com o programa Evoked Potential System versão 5.70, Model 92.
Para a captação do P300, colocamos os eletrodos nas posições: Fz = eletrodo terra, Cz = eletrodo positivo e A2 e A1 = eletrodos negativos, segundo o padrão de sistema internacional 10-2012, máximo de impedância para cada eletrodo de 5 kohms e diferença entre os eletrodos de 3 kohms. No canal de registro do eletrodo positivo do equipamento (input 1), utilizamos o acessório jumper. Apresentamos os estímulos pelos fones de inserção ER-3A, 70 dBNA, com estímulo tone burst. O número de varreduras foi de 300 estímulos, a frequência do estímulo frequente foi de 1000 Hz e dos estímulos raros de 2000 Hz, apresentados em um paradigma do tipo raro-frequente (odd-ball), com probabilidade de 80% e 20% de aparecimento. A participante deveria permanecer em estado de vigília, em uma sala silenciosa, de olhos fechados, e contar mentalmente os estímulos raros. Como a casuística foi constituída por indivíduos com audição normal, e suas derivações (Cz/A1 e Cz/A2) foram semelhantes, optamos por somar as derivações obtidas, e assim, temos um valor em ms para latência da onda P300 (P300 - LAT) e um valor em µV para a amplitude da onda (P300 - AMP).
Para a exposição musical, selecionamos 3 músicas: brasileira (MB), não brasileira (MNB) e clássica (MC). Por meio de do Programa Virtual DJ, identificamos os batimentos por minuto (bpm) de cada música, e diminuímos seus bpm para obter melodias lentas, e aumentamos os bpm, para obter melodias rápidas (Quadro 1).
As melodias foram apresentadas pelo equipamento MP3 CD player, modelo EXP 322/19, marca Phillips, por fones de ouvido e volume 5.
Assim, a casuística foi dividida em três grupos de 15 mulheres: um grupo exposto a três tipos de música com velocidade mais lenta (GVL), um grupo exposto às mesmas músicas com velocidade mais rápida (GVR) e um grupo sem música (GSM - grupo comparação).
Realizamos quatro momentos diferentes de avaliação. Para GVL e GVR, no primeiro momento, as participantes estavam em repouso (REP) e coletamos o P300. Apresentamos a primeira música por 10 minutos e depois reavaliamos o P300 (segundo momento de avaliação, denominado de 1ª - resposta após primeira estimulação musical). Para o terceiro momento, realizamos intervalo de 5 minutos, e expomos a segunda música por mais 10 minutos. Reavaliamos o P300, e chamamos de 2ª - resposta após a segunda estimulação musical. Após outro intervalo de 5 minutos, apresentamos a terceira música por mais 10 minutos. Avaliamos novamente o P300, sendo o quarto momento de avaliação, 3ª (resposta após a terceira estimulação musical).
Para evitar que a ordem de apresentação das músicas influenciasse no desempenho dos resultados, controlamos a ordem das estimulações. Na primeira participante, a sequência musical seguiu esta ordem: MB, MNB e MC. Na segunda participante, utilizamos outra sequência: MC, MB e MNB. Na terceira participante, outra sequência: MNB, MC e MB, e assim até a última participante.
No GSM, avaliamos o P300 nas participantes sem estimulação musical. Respeitamos o tempo dos intervalos com as estimulações musicais, no total de 15 minutos, a fim de verificar se o intervalo entre as avaliações interfere no P300.
Utilizamos na análise estatística o teste ANOVA - Analysis of Variance - teste paramétrico para comparar médias utilizando a variância; teste ANOVA - One-Way - teste paramétrico para comparar a variância da média entre os grupos, e para a análise descritiva dos dados foram construídos intervalos com confiança estatística de 95%, e nível de significância de 5%. Utilizamos a correção de Bonferroni para as comparações múltiplas.
RESULTADOSAo compararmos a LAT - P300 nos diferentes momentos de avaliação em cada grupo (ANOVA), não encontramos diferença estatisticamente significante (
p-valores de GVR = 0,595; de GVL= 0,402; de GSM = 0,771).
Na comparação de AMP - P300 nos diferentes momentos de avaliação, encontramos diferença estatisticamente significante para GSM (Tabela 1), e sem diferença estatisticamente significante para GVR e GVL (p-valor de GVR = 0,355;
p-valor de GVL = 0,238).
Utilizamos as comparações múltiplas de Bonferroni (Tabela 2), e a diferença ocorre entre o momento repouso e após 3ª estimulação musical.
Quando compararmos a velocidade das melodias e as derivações obtidas, encontramos tendência de significância para LAT - P300 e AMP - P300 para GVL (Tabela 3), pela análise do teste ANOVA.
No GVR, não houve significância ou tendência para a comparação velocidade musical e as derivações obtidas (
p-valores : LAT - P300 = 0,874 e AMP - P300 = 0,262).
Por meio da análise do teste ANOVA One-Way, comparamos os diferentes momentos de avaliação (Repouso, 1ª, 2ª, e 3ª) entre os três grupos (GSM, GVR e GVL) para a variável P300 - LAT (
p-valores: Repouso=0,795, 1ª=0,945, 2ª=0,453, 3ª=0,859) e P300 - AMP (
p-valores: Repouso=0,295, 1ª=0,140, 2ª=0,319, 3ª=0,671), não encontramos diferença estatisticamente significante. Assim, quando os grupos foram comparados entre si, apresentaram desempenhos semelhantes para cada medida eletrofisiológica nos diferentes momentos de avaliação.
Comparamos o tipo de melodia (MB, MNB e MC) entre as velocidades musicais (GVR e GVL), P300 - LAT (
p-valores: Repouso=0,338, MB=0,787, MNB=0,537, MC=0,486) e P300 - AMP (
p-valores: Repouso=0,494, MB=0,321, MNB=0,877, MC=0,143), e pela análise do teste ANOVA One-Way, não houve diferença estatisticamente significante. Assim, quando comparamos as diferentes velocidades com os diferentes tipos de música, os grupos GVR e GVL têm desempenho semelhante para as medidas eletrofisiológicas.
DISCUSSÃOA captação do P300 após várias estimulações pode alterar o funcionamento da rede neuronal, causando fadiga mental. Esta fadiga influencia na amplitude do P300, fenômeno chamado de habituação13, supomos que GSM sofreu o efeito de habituação uma vez que não recebeu estimulação musical entre as várias captações, ocorrendo diminuição da atenção do indivíduo para realizar a tarefa solicitada.
Mesmo com o efeito de habituação, a reprodução do P300, mesmo após várias medições com diferença nos valores da latência e da amplitude, nos leva a supor que o P300 é um potencial evocado auditivo fidedigno, pois é possível testar e confirmar as respostas captadas14.
Na literatura especializada, na maioria dos estudos15-18 a música é apresentada concomitantemente à captação dos potenciais evocados auditivos, funcionando mais como uma distração auditiva, e não como uma condição prévia à captação. Desta forma, podemos inferir que a estimulação musical realizada antes da captação do P300 não seria como um distrator, mas teria a função de direcionar a atenção da participante para uma nova tarefa do P300, fato que não ocorreu no GSM.
Foi realizado estudo sobre os efeitos da estimulação acústica após perda auditiva induzida por ruído em gatos, com a introdução de um espectro acústico correspondente à frequência da perda auditiva. Observou-se a melhora dos limiares auditivos, com o mapa tonotópico normal e deduziu-se que esta estimulação previne a ocorrência de zumbido16. Assim, também podemos inferir que a exposição musical antes da captação do P300 auxilia na sincronia neural e estimula o mapa tonotópico das frequências, o que facilitaria a realização do exame.
De acordo com a análise estatística, há tendência de significância em GVL, com o aumento da latência e diminuição da amplitude. Tal tendência nos leva a supor que a velocidade rápida seja mais benéfica para a atenção. Estudo sobre os efeitos de diferentes músicas no P30015 observou que a exposição a uma música familiar desencadeou um efeito positivo sobre o potencial cognitivo, favorecendo o processo de atenção seletiva e memória.
A partir dos achados deste estudo, quando houver dificuldades em visualizar a derivação da onda P300, sugerimos que o avaliador utilize a estimulação musical antes de uma reavaliação desta onda, porque quando não houve este recurso entre as avaliações, a onda P300 foi captada com uma maior latência e menor amplitude.
Como estudo foi realizado apenas entre mulheres jovens, também sugerimos que novas pesquisas utilizando o P300 devem ser realizadas em indivíduos com alterações neurológicas.
CONCLUSÃOA exposição à música de diferentes velocidades pré-estabelecidas não alterou o P300 em jovens mulheres. Mas comparando o desempenho entre os grupos, observamos que a exposição musical anterior às captações do P300 facilitou a realização e sustentação da atenção no exame, fato que não ocorreu nas mulheres sem exposição musical, pois ocorreu a habituação do P300. Assim, a exposição musical seria um facilitador para o avaliador na reavaliação da onda P300.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS1. Popescu M, Otsuka A, Ioannides AA. Dynamics of brain activity in motor and frontal cortical areas during music listening: a magnetoencephalographic study. Neuroimage.2004;21:1622-38.
2. Maegele M, Lippert-Gruener M, Ester-Bode T, Sauerland S, Schäfer U, Molcany M, et al. Reversal of neuromotor and cognitive dysfunction in an enriched environment combined with multimodal early onset stimulation after traumatic brain injury in rats. J Neurotrauma.2005;22:772-82.
3. Siedliecki SL, Good M. Effect of music on power, pain, depression and disability. J Adv Nurs.2006;54:553-62.
4. Yamamoto T, Ohkuwa T, Itoh H, Kiotoh M, Terasawa T, Tsuda T, et al. Effects of pré-exercise listening to slow and fast rhythm music on supramaximal cycle performance and selected metabolic variables. Arch Physiol Biochem.2003;111(3):211-4.
5. Santos DL, Milano ME, Rosat R. Exercício e memória. Rev Paul Educ Física.1998;12(1):95-106.
6. Stahl SM. Effects of estrogen on the central nervous system. J Clin Psychiatry.2001;62(5):317-8.
7. Cone-Wesson B, Wunderlich J. Auditory evoked potentials from the cortex: audiology applications. Curr Opin Otolaryngol Head Neck Surg.2003;11(5):372-7.
8. Hall JW. New handbook of auditory evoked responses. Boston: Allyn and Bacon; 2006.
9. Patel SH, Azzam PN. Characterization of N200 and P300: Selected studies of the event-related potential. Int J Med Sci.2005;2(4):147-54.
10. Tasman A, Hahn T, Maiste A. Menstrual cycle synchronized changes in brain stem auditory evoked potentials and visual evoked potentials. Biol Psychiatry.1999;45:1516-9.
11. Domenico ML, Iório MCM. Avaliação audiológica em mulheres que fazem uso de anticoncepcionais hormonais orais. Pró-fono.2002;14(3):415-24.
12. Jasper HH. Report of the committee on methods of clinical examination in electroencephalograhpy. Electroenceph Clin Neurophysiol.1958;10:370-5.
13. Kececi J, Degirmenci Y, Atakay S. Habituation and dishabitation of P300. Cog Behav Neurol.2006;19(3):130-4.
14. Pinzan-Faria VM, Iório MCM. Potencial evocado auditivo de longa latência (P300) em perda auditiva unilateral. Fono atual.2005;34(8):49-57.
15. Arikan MK, Devrim M, Oran O, Inan S, Elhin M, Demiralp T. Music effects on event-related potentials of humans on the basis of cultural environment. Neurosci Lett.1999;268 21-4.
16. Noreña AJ, Eggermont JJ. Enriched acoustic environment after noise trauma abolishes neural signs of tinnitus. Neuroreport.2006;17(6):559-63.
17. Lavoic BA, Hine JE, Thornton RD. The choice of distracting task can affect the quality of auditory evoked potentials recorded for clinical assessment. Int J Audiol.2008;47:439-44.
18. Zhu W, Zhao L, Zhang J, Ding X, Liu H, Ni E, et al. The influence of Mozart's sonata K.448 on visual attention: an ERPs study. Neurosci Lett.2008;434:35-40.
1. Mestre em Ciências - Programa de Pós-Graduação em Distúrbios da Comunicação Humana (Fonoaudiologia), Fonoaudióloga
2. Livre-Docente Disciplina dos Distúrbios da Audição, Docente - Universidade Federal de São Paulo
Universidade Federal de São Paulo.
Endereço para correspondência:
Cintia Ishii de Sá
Rua Munduba 97 Brooklin
São Paulo SP 04567-080
Este artigo foi submetido no SGP (Sistema de Gestão de Publicações) da BJORL em 28 de maio de 2010. cod. 7128
Artigo aceito em 11 de agosto de 2010.