INTRODUÇÃOAs modalidades de tratamento para os tumores de cabeça e pescoço, iniciais ou avançados, podem incluir a radioterapia indicada como tratamento exclusivo ou em combinação com cirurgia e quimioterapia1. O principal objetivo do tratamento oncológico não cirúrgico é a preservação das funções de respiração, deglutição e comunicação2,3.
Atualmente se tem discutido o impacto desse tipo de tratamento na função laríngea e na qualidade de vida desses pacientes, que podem sofrer sequelas decorrentes do tratamento: desnutrição, desidratação, perda de peso, dor, disfonia, disfagia e a ototoxicidade4. A radioterapia exclusiva pode acarretar diferentes disfunções em diferentes graus, como xerostomia, odinofagia, perda ponderal do peso e a necessidade do uso de vias alternativas de alimentação5.
Alterações da deglutição afetam a eficiência e a segurança da alimentação. Esses distúrbios, independentemente da gravidade, podem desencadear modificações em diferentes aspectos da vida do indivíduo e ter impacto na qualidade de vida6.
Foram analisados os resultados funcionais tardios de 31 pacientes após o término do tratamento de rádio e quimioterapia associada por meio da videofluoroscopia da deglutição; nenhum dos pacientes havia sido submetido à terapia da deglutição no momento da avaliação e foram diagnosticadas alterações nas fases preparatória, oral e faríngea da deglutição. A deglutição foi considerada funcional em 35,5% dos pacientes; foi encontrado disfagia de grau discreto a moderado em 54,8% da amostra e disfagia severa em 9,6%7.
Foi avaliado o impacto da radioquimioterapia na deglutição, nutrição e qualidade de vida de 59 pacientes. Destes, 23 foram submetidos a exame de videofluoroscopia da deglutição em média após 3,5 meses após o tratamento de radioquimioterapia. Foi observado que 78% dos pacientes apresentavam aspiração traqueal, sendo 35% silentes8.
Em outro estudo foi analisado a gravidade da aspiração de 63 pacientes pós-radioterapia e quimioterapia e observaram 59% de aspiração, sendo 33% grave. Observaram também a ocorrência de 9,5% de óbitos em pacientes que desenvolveram pneumonia9.
Vinte seis pacientes foram avaliados após radioquimioterapia por intensidade modulada em três tempos: pós-imediato, três meses e 12 meses e encontraram alterações como redução na retração da língua, incoordenação da deglutição, redução de elevação e fechamento laríngeo e inversão da epiglote, aumento no tempo de trânsito faríngeo e aspiração silente10.
Alguns estudos demonstram piora significante de alguns parâmetros avaliados por meio da videofluoroscopia da deglutição após três e doze meses do término do tratamento11,12.
Assim, faz-se necessária a compreensão do resultado funcional da deglutição. O objetivo desse estudo é caracterizar a deglutição de pacientes tratados por radioterapia exclusiva ou associada à quimioterapia para tumores de laringe por meio da avaliação videofluoroscópica da deglutição.
MATERIAL E MÉTODOEsse estudo prospectivo avaliou 20 pacientes submetidos à radioterapia exclusiva ou associada à quimioterapia para tumores de laringe tratados pelo Serviço de Cabeça e Pescoço de uma Instituição. Os critérios de inclusão para a admissão do paciente no estudo foram: pacientes submetidos à radioterapia exclusiva ou radioquimioterapia para tumores de laringe com tempo mínimo de dois meses do término do tratamento oncológico que aceitaram a participar do estudo e assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido. Os critérios de exclusão foram: doença em atividade, cirurgias na região da cabeça e pescoço e história pregressa de alterações neurológicas, pela possível interferência destas na fisiologia da deglutição. Todos os pacientes foram submetidos a avaliação videofluoroscópica da deglutição.
Para a caracterização da deglutição, utilizou-se o equipamento radiológico da marca Philips, modelo Chalanger®, N 800 HF. O exame consistiu de análise da deglutição de 20ml líquido, 20ml líquido-pastoso, 15ml de pastoso e um pedaço de bolacha nas visões lateral e ântero-posterior. Foram avaliados os eventos das fases preparatória e oral: formação do bolo, mobilidade de órgãos fonoarticulatórios, ejeção do bolo, estase na cavidade oral e contato de língua contra palato; caracterização do local do início da fase faríngea da deglutição; e fase faríngea: elevação laríngea, estase na orofaringe e na hipofaringe. Os exames foram julgados seguindo critérios da escala de penetração e aspiração proposta por Rosenbek et al.13 (Tabela 1) e classificados segundo a escala de gravidade da disfagia proposta por O'Neil et al.14 (Tabela 2). Os exames foram apresentados três vezes e julgados por meio de consenso por três fonoaudiólogos com experiência superior a três anos em interpretação videofluoroscópica da deglutição de pacientes submetidos ao tratamento oncológico. A análise estatística consistiu de distribuição de frequência e as medidas de tendência central e de variabilidade para as variáveis numéricas.
RESULTADOSParticiparam desse estudo 20 pacientes, com idade média de 62 anos. Todos os pacientes haviam realizado tratamento para tumores de laringe. Destes, seis (30%) foram tratados por radioterapia exclusiva e 14 (70%) por radioquimioterapia. O tempo médio decorrido do tratamento médico ao momento da avaliação fonoaudiológica foi de 8,5 meses. Em relação ao estadiamento, 55% apresentavam tumores iniciais (T1 e T2) e 45% tumores avançados (T3 e T4), sendo que 75% foram classificados como N0. O tempo decorrido do término do tratamento oncológico ao momento da investigação variou de 2 meses a 60 meses (Tabela 3).
A Tabela 4 apresenta os resultados da classificação do grau da disfagia.
No momento da avaliação da deglutição, todos os pacientes alimentavam-se exclusivamente por via oral. A Tabela 5 apresenta as alterações encontradas na videofluoroscopia da deglutição. Observou-se que 80% da amostra apresentaram estase na hipofaringe e 100% na orofaringe.
Trinta e cinco por cento dos casos avaliados não apresentaram entrada de alimento na via aérea. A penetração laríngea foi diagnosticada em 25% dos casos e 40% penetrações seguidas de aspirações traqueais. O grau de penetração/ aspiração foi considerado discreto em 60%, porém em 35% da amostra a aspiração ocorreu de forma silenciosa (Tabela 6). Na anamnese realizada antes da avaliação videofluoroscópica apenas 25% dos pacientes apresentavam queixas de deglutição.
O uso de terapia de nutrição enteral ocorreu em 10% dos casos e a média de tempo de permanência de SNE foi de quatro meses. Quinze por cento da amostra utilizou traqueostomia durante o tratamento com média de seis meses. Cinco pacientes (25%) apresentaram broncopneumonia durante o tratamento. Dos que desenvolveram pneumonia, 80% apresentavam aspiração traqueal durante a videofluoroscopia da deglutição.
DISCUSSÃOOs resultados funcionais de deglutição encontrados neste estudo demonstram que estes pacientes apresentam em sua maioria algum grau de disfagia. Embora todos pacientes estivessem se alimentando por via oral exclusiva, encontramos que 75% da amostra apresentavam algum grau de disfagia, porém somente 25% apresentavam queixas relacionadas à deglutição.
O uso de instrumentos específicos para análise da disfagia evidenciou alterações em todas as fases da deglutição, que encontram justificativas nas sequelas causadas pelo tratamento. Durante a fase preparatória e oral, encontrou-se desvio em todos os eventos avaliados, sendo que a maioria da amostra apresentou alteração na formação do bolo. Cintra et al.7 referem que pacientes tratados com radioquimioterapia podem apresentar impacto na fase oral da deglutição, mesmo em tumores apenas laríngeos.
As alterações encontradas podem ser justificadas pelos efeitos da radioterapia, como já citado15. A radioterapia causa uma reação inflamatória que clinicamente se manifesta como mucosite, dermatite, edema de tecidos moles, aumento da produção de muco e xerostomia e que tardiamente, por hipóxia e oxidação crônica, ocorrem a fibrose e a rigidez dos tecidos.
A xerostomia e o aumento da produção de muco, juntamente com a restrição na mobilidade de órgãos fonoarticulatórios alteram a formação do bolo que consequentemente irá alterar sua ejeção e justificar as estases em cavidade oral. O edema e a fibrose dos tecidos, mesmo que o maior campo de radiação não seja a cavidade oral, pode levar à redução de amplitude de mobilidade de órgãos fonoarticulatórios, justificando não só as alterações de fase faríngea, mas também as fases preparatória e oral.
A principal alteração encontrada na fase faríngea foi a redução na elevação laríngea, isto é, durante a deglutição não ocorre a completa excursão hio-laríngea. Sabe-se que este evento pode ser observado na presença de alguns fatores como a presença de traqueostomia, edema e fibrose laríngea encontradas no pós-tratamento5,7,10-12.
Associada à redução da elevação de laringe a presença da xerostomia e mucosite pode favorecer as estases na oro e na hipofaringe. Os resíduos de alimentos após a deglutição são um reflexo da alteração da mobilidade dos órgãos fonoarticulatórios nas fases preparatória e oral gerando alterações nas fases subsequentes.
Observou-se neste estudo que 40% da amostra apresentaram aspiração traqueal, sendo que 35% ocorreu de forma silenciosa. Murphy & Gilbert15 referem que a aspiração silente é frequente em pacientes irradiados e que o reflexo de tosse não é efetivo ou ausente em pelo menos metade dos pacientes. A literatura aponta a importância de exames objetivos neste grupo de pacientes, já que as aspirações traqueais podem levar a episódios de broncopneumonias e a óbito. Nguyen et al.9 avaliaram 63 pacientes tratados por radioquimioterapia e observou presença de aspiração grave em 33% e 9% de óbitos onde os pacientes tinham broncopneumonia. Hutcheson et al.12 referem 84% de aspiração traqueal no pós-tratamento.
Em relação às complicações decorrentes do tratamento, observou-se que 15% utilizaram traqueostomia, a terapia de nutrição enteral foi utilizada em 10% dos casos e 25% da casuística desenvolveram broncopneumonia durante e/ou após o tratamento, mas observou-se que apenas 1 paciente foi classificado com disfagia grave.
A necessidade do uso de traqueostomia pode ser justificada pelo edema da radioterapia, desta forma, obstruindo a luz glótica e, consequentemente, impedindo a passagem do fluxo respiratório. Sabe-se também que o uso de traqueostomia pode ser um fator de risco para o desenvolvimento da disfagia, já que ela promove alterações sensoriais e mecânicas no funcionamento hiolaríngeo.
Quanto à dependência do uso da sonda, Nguyen et al.9 referem que em seu estudo 100% da amostra utilizaram terapia de nutrição enteral em algum momento nos primeiros três anos de tratamento. Também justifica a presença de via alternativa como complementar à ingestão por via oral, pela redução da alimentação oral em pacientes que a aspiração é um evento frequente, levando inevitavelmente a quadros de desnutrição.
Hutcheson et al.12 referem que 78% de sua amostra utilizaram sonda em algum momento do tratamento e que 52% permaneceram por cinco meses com via alternativa de alimentação. Os autores referem ainda que o grau de disfagia e o nível de dependência da sonda no pós-tratamento é um fator preditivo para a aspiração, diferentemente do que ocorre no pré-tratamento, em que a terapia de nutrição enteral é utilizada para que o paciente esteja nutrido para o início do tratamento.
Pauloski et al.16 realizaram um estudo com 170 pacientes tratados com radioquimioterapia, correlacionando as alterações motoras encontradas na disfagia. Observaram que a redução de elevação laríngea e abertura da transição faringo-esofágica apresentavam significância estatística quando correlacionada com a ingestão oral ou a restrição da consistência alimentar.
Alguns autores reforçam que os efeitos da radioquimioterapia podem ser potencializados, causando maiores prejuízos à deglutição. Greeven et al.17 observaram em pacientes com tumores em estádio T3 e T4 que 21% dos casos foram submetidos a gastrostomia após tratamento de radioterapia exclusiva e 77% após radioquimioterapia.
Embora 75% da amostra apresentasse algum grau de disfagia, apenas 25% dos pacientes referiam alguma queixa de deglutição.
A literatura demonstra que o tratamento de radioquimioterapia não garante a integridade da função da laringe na deglutição. Há presença de aspirações silenciosas independentemente da existência das queixas de deglutição dos pacientes. Desta forma, observa-se a importância da avaliação e do acompanhamento fonoaudiológico, bem como a realização de exames objetivos da deglutição para a melhor identificação das sequelas do tratamento.
No presente estudo, não foram correlacionados os resultados referentes ao tratamento de radioterapia exclusiva e radioquimioterapia. Sugerem-se demais estudos que com casuísticas maiores avaliem o resultado funcional da deglutição e sua correlação com a forma de tratamento.
CONCLUSÃOOs pacientes com câncer de laringe tratados com radioterapia/ radioquimioterapia podem apresentar alterações em todas as fases da deglutição, independente da presença da queixa de deglutição.
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1. Mestre em Oncologia pela Fundação Antonio Prudente, São Paulo, Brasil, Fonoaudióloga clínica.
2. Aperfeiçoamento fonoaudiológico em reabilitação neurológica pela UNIFESP-EPM, São Paulo, Brasil, Fonoaudióloga em Âmbito Hospitalar.
3. Especialização em Processamento Auditivo pela USP, São Paulo, Brasil, Fonoaudióloga clínica.
4. Mestre em Ciências da Saúde pelo curso de pós-graduação do Hospital Heliópolis - HOSPHEL, São Paulo, Brasil., Fonoaudióloga Clínica.
5. Graduação em Fonoaudiologia, fonoaudióloga Clínica.
6. Livre-Docente pela Fundação Lusíada, Unilus, Santos. Professor do curso de pós-graduação em ciências da saúde do Hospital Heliópolis.
7. Doutora em Oncologia pelo Curso de pós-graduação da Fundação Antônio Prudente - FAP, São Paulo, Brasil., Chefe do Serviço de Reabilitação de Voz, Fala e Deglutição do Hospital Heliópolis, São Paulo, Brasil.
Instituição: Curso de Pós-Graduação em Ciências da Saúde do Hospital Heliópolis
Endereço para correspondência:
Ana Paula Brandão Barros
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Este artigo foi submetido no SGP (Sistema de Gestão de Publicações) da BJORL em 22 de fevereiro de 2010. cod. 6940
Artigo aceito em 18 de maio de 2010.