INTRODUÇÃOA traqueobroncopatia osteocondroplástica (TO) é uma doença benigna rara, de causa desconhecida, também descrita como traqueopatia osteoplástica, caracterizada por numerosos nódulos submucosos sésseis, cartilaginosos e/ou ósseos, distribuídos pelas paredes ântero-laterais, projetando-se no lúmen laringotraqueobrônquico1. As primeiras publicações a respeito da TO datam de 1855 por Wilks com a descrição microscópica de depósitos de calcificação na laringe, traqueia e brônquios. Posteriormente, Dalgaard e Moersch, Rokitansky e Luschka, descreveram casos parecidos em 1856 e 1857 respectivamente, mas sem comprovação microscópica2,3. Em 1896, von Schoroetter evidenciou lesões semelhantes em uma laringoscopia indireta. Em 1910, Aschoff-Freiburg propôs o nome traqueobroncopatia osteoplástica4. Na literatura mundial estima-se a existência de pouco menos que 400 casos já relatados5,6.
As lesões nodulares são sésseis, calcificadas e variam de diâmetro de 1-10mm. Caracterizam-se por crescimento lento e progressivo, podendo estar localizadas ou difusas, cobertas por epitélio metaplásico ou normal, emergindo desde o pericôndrio até a luz da traqueia, seguindo o trajeto dos anéis, com inclusão hematopoiética ativa nas neoformações nodulares. Pode causar estenose do lúmen laringotraqueobrônquico, mas sem comprometimento de sua parede posterior, com possibilidade de progressão para os brônquios principais7.
MATERIAL E MÉTODOSTrata-se neste artigo de relato de 2 (dois) casos, num estudo observacional descritivo. Todos os procedimentos para este estudo foram previamente autorizados pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Instituição, sob o protocolo de número 181/09, em 09 de Dezembro de 2009.
APRESENTAÇÃO DOS CASOS
Caso 1Paciente M.R.F., sexo F, 41 anos de idade, com queixa de disfonia intermitente há 15 anos por abuso vocal. Em 1998 iniciou com dispneia aos médios esforços e, em outro serviço, foi realizada broncoscopia com biópsia local, evidenciando: "mucosa brônquica com lesões imitando papilomatose, localizada em traqueia, carina e brônquios fontes, com presença de edema discreto, e reação inflamatória inespecífica". Em 2000, como persistiam a disfonia e a dispneia aos esforços, procurou este serviço, onde ao exame otorrinolaringológico apresentava-se dentro da normalidade.
À fibronasolaringotraqueobroncoscopia, apresentava lesões difusas nodulares nas paredes da traqueia, da região subglótica até a carina, com redução em 60% do lúmen traqueal, sem comprometer a região posterior (Figuras 1 e 2). Na espirometria, distúrbio ventilatório leve obstrutivo. A tomografia de tórax mostrou espessamento da parede traqueal, com lesões nodulares irregulares e redução da luz traqueal. Em 2001, apresentou um episódio de broncopneumonia solucionada com tratamento medicamentoso. Em 2003, nova broncoscopia com biópsia foi realizada para o diagnóstico de TO (Figura 3). No presente momento, a paciente encontra-se estável, sem piora do quadro clínico descrito, com acompanhamento clínico anual.
Figura 1. Fibrolaringotraqueobroncoscopia: região subglótica evidenciando as lesões nodulares múltiplas e difusas, com pregas vocais livres.
Figura 2. Fibrolaringotraqueobroncoscopia: visualização da carina com lesões nodulares, sem comprometimento da parede posterior da traqueia.
Figura 3. Lâmina histológica: placas de ossificação no córion da mucosa respiratória.
Caso 2Paciente A.D.B.F.C., do sexo F, 66 anos de idade, com história de obstrução nasal, tosse progressiva, pigarros, roncos noturnos, respiração ruidosa, disfonia há 20 anos. Em 2002, iniciou com dor torácica e dispneia eventual, sendo solicitada uma broncoscopia, que evidenciou "formações polipoides na parede anterior e lateral da traqueia até a carina". Realizada biópsia que mostrou discreta reação linfonuclear na submucosa, com espessamento hialino de membrana basal, confirmando o diagnóstico de TO, com negatividade para amiloidose.
À fibronasolaringotraqueobroncoscopia evidenciou-se edema de pregas vocais, lesões nodulares pequenas de traqueia até a carina. Em Abril de 2003, refere que dispneia ficou mais frequente, e em um novo exame foram encontradas lesões nodulares em traqueia até carina, com discreta redução do lúmen, e uma tomografia computadorizada (TC) de tórax evidenciando espessamento de parede traqueal, com lesões nodulares irregulares e redução da luz traqueal. No presente, a paciente encontra-se estável, sem piora do quadro clínico descrito, apenas em acompanhamento clínico anual (Figura 4).
Figura 4. Tomografia computadorizada da traqueia evidenciando lesões nodulares osteocartilaginosas (setas).
DISCUSSÃOA traqueobroncopatia osteocondroplástica (TO) é uma doença benigna rara, de causa desconhecida. Foi descrita macroscopicamente por Rokitansk em 1855 e, microscopicamente por Wilks em 1857. Algumas teorias etiopatogênicas são postuladas: Dalgaard (1947) - postula que o tecido elástico sofre metaplasia, com formação de cartilagem e deposição de cálcio; Virchow (1863) - econdrose e exostoses favorecem a deposição de cálcio e ossificação nos anéis traqueais; Aschoff-Freiburg (1910) - atribui a alterações no tecido elástico traqueal, introduzindo o termo traqueopatia osteoplástica e, em 1964, Secrest et al. a rotularam como traqueobroncopatia osteoplástica8.
Sua incidência clínica estimada varia entre 2-7:1000, com surgimento entre os 25 e 85 anos de idade, sendo a 5ª década de vida a mais frequente. Não há predominância de sexo. O intervalo dos primeiros sintomas até o diagnóstico ocorre em aproximadamente 4 anos em 45% dos casos; porém, com possibilidade de ocorrer após 25 anos7. Achados broncoscópicos incidentais ocorrem por volta de 3:2000-5000. Segundo Secrest, estima-se que apenas 5% dos casos são diagnosticados durante a vida9.
Não se evidenciou correlação com o tabagismo, porém alguns estudos apontam a associação com processos inflamatórios crônicos da traqueia, argumentando ser este um possível fator de evolução da doença9,10.
Sua etiologia e patogênese são desconhecidas, mas acredita-se que infecções crônicas, anomalias congênitas, irritação química ou mecânica, doenças degenerativas e metabólicas, processo inflamatório crônico e estágio final de amiloidose primária. As alterações no
clearance das vias aéreas favorecem a possibilidade do início da doença após um processo inflamatório persistente, resultando em infecções de repetição. Bactérias como a
Klebsiella ozenae ou
Botryomicosis já foram evidenciadas em casos de TO após processos crônicos de infecção, mas sem correlação determinada8,11.
Clinicamente podem permanecer assintomáticos de 13-50%. Não existem características patognomônicas para a TO, com possibilidade frequente de erro de diagnóstico e tratamento inicial para asma ou bronquite, como nos casos relatados. Mas tosse em 66% dos casos, tosse hemoptoica em 60%, dispneia em 53% e respiração ofegante em 30%. A prova de função pulmonar frequentemente encontra-se normal, dependendo do grau de estenose12,13.
A radiografia simples não evidencia adequadamente as lesões, sendo a tomografia computadorizada (TC) o exame que melhor define as alterações traqueais. Na TC de traqueia e de tórax a aparência de poucas ou numerosas lesões nodulares grosseiras, óssea e/ou cartilaginosos (01-10mm), sésseis e cobertos por uma mucosa aparentemente normal de parede traqueal constitui a figura clínica mais comum. O diagnóstico definitivo é confirmado através da biópsia durante a fibronasolaringotraqueobroncoscopia14. Em nossos casos foram realizadas tomografia computadorizada de tórax que evidenciou lesões semelhantes às encontradas na literatura.
Frequentemente envolve as paredes laterais e anterior dos ¾ distais da traqueal, progredindo para ambos os brônquios principais. Sua distribuição anatômica ocorre aproximadamente 42% na traqueia, 6% nos brônquios e 52% em ambos. Há relato de poucos casos de envolvimento laríngeo e subglótico9,11,15. Em um dos nossos casos, as lesões progrediam da subglote, traqueia até a região da carina. No outro, as lesões atingiam do 1/3 inferior da traqueia até a carina.
Histologicamente, o leito mucoso pode apresentar-se normal, com áreas alternadas de processos inflamatórios e de necrose, formação cartilaginosa ou óssea proliferativa anormal na submucosa, podendo estar presente metaplasia escamosa do epitélio colunar, depósitos de cálcio, fragmentos de adipócitos, com tecido ósseo medular hematopoiético ativo10,11. Em 2001, Leske et al. relatam que em 40 biópsias encontrou as seguintes alterações: ossificação (58%), metaplasia escamosa do epitélio respiratório (48%), cartilagem (38%), calcificação (20%) e amiloidose 13%6,8,14.
Não existem marcadores para a TO. A proteína C reativa (PCR) e o VHS podem estar alterados devido aos processos inflamatórios. O cálcio encontra-se normal, e alterações no hormônio do crescimento e hiperfosforemia já foram evidenciados, mas sugere coincidência9. Em 1996, Yokoyama et al. encontraram associação com câncer pulmonar entre 11-19%, sendo o adenocarcinoma o subtipo histológico mais comum5,12.
Em 1998, Zamani et al. evidenciaram na citogenética alongamento do braço curto Y do cromossomo. Recentes estudos de imunoistoquímica atribuem à proteína óssea morfogenética 2 (BMP-2), que em altas concentrações aumenta a expressão ácido ribonucleico mensageiro (mRNA) do fator de transformação de crescimento b-1 (TGF b-1), a estimulação da produção das proteínas da matriz extracelular para os condrócitos e a neoformação óssea. No tecido normal da árvore traqueobrônquica a proteína BMP-2 não está presente6,16. Nos nossos casos, o TGF b-1 foi detectado nos condrócitos e osteócitos dos nódulos submucosos.
Entre os diagnósticos diferenciais encontram-se, principalmente, a papilomatoses, sarcoidose, condrossarcoma, hamartomas, amiloidoses, calcificações tubercoides, dermatomiosite, esclerodermia, doença de Wegener, sarcoidose e linfonodos paratraqueais calcificados4,7,12,13.
As complicações mais comuns são: atelectasias e pneumonias1,7.
Não existe tratamento específico para TO, sendo raramente necessário. Em estudo de série realizado em 2001, Lazor et al. observaram que em 55% dos casos não houve progressão da doença9. Antibióticos são usados para tratar as infecções recorrentes do trato respiratório. O tratamento cirúrgico é indicado quando os sintomas não respondem ao tratamento clínico, podendo ser realizado ressecção do segmento traqueal, laringofissura anterior, laringectomia parcial, remoção broncoscópica das lesões. A fotocoagulação com o laser Nd:YAG, como também a colocação de molde de silicone, podem ser uma opção terapêutica15,17,18,19. A traqueostomia ocasionalmente se faz necessária. Seu prognóstico é bom e depende da extensão e localização das lesões nodulares8-10,13. Nos casos relatados optou-se por acompanhamento clínico anual.
CONSIDERAÇÕES FINAISA traqueobroncopatia osteocondroplásica é uma entidade de causa desconhecida, onde ocorre ossificação heterotópica das cartilagens laringotraqueobrônquicas, produzindo sintomas diretamente relacionados com a localização e o grau de obstrução da via aérea superior. O tratamento frequentemente é desnecessário, sendo utilizado normalmente o controle clínico quando o paciente é assintomático ou apresenta sintomatologia leve. A remoção cirúrgica é restrita aos quadros obstrutivos moderados e severos. Os otorrinolaringologistas devem estar atentos e incluírem a traqueobroncopatia osteocondroplástica na lista de diagnósticos diferenciais, quando frente a sintomas sugestivos de doença de via aérea superior e árvore traqueobrônquica.
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1. Otorrinolaringologista, Diretor/Chefe
2. Doutor em patologia pela FMUSP-SP. Médico Assistente da Disciplina de Patologia da Faculdade de Medicina de Marília, FAMEMA/SP
3. Otorrinolaringologista. Ex-residente do NOSP
4. Médico do Trabalho. Residente do NOSP
Núcleo de Otorrinolaringologia e Cirurgia de Cabeça e Pescoço de São Paulo/SP, Brasil (NOSP).
Endereço para correspondência:
Al. dos Nhambiquaras 159 Moema
São Paulo SP 04090-010 Brasil
E-mail: japorl@uol.com.br
Este artigo foi submetido no SGP (Sistema de Gestão de Publicações) da BJORL em 8 de julho de 2009. cod. 6556
Artigo aceito em 6 de setembro de 2010.