INTRODUÇÃOPara que uma criança possa adquirir os sons presentes na fala, é necessário que as estruturas do sistema miofuncional oral, sistema nervoso central e auditivo estejam em condições de funcionamento normal, caso contrário, uma alteração em um destes pontos poderá representar um obstáculo para a aquisição e correta utilização do sistema fonológico1,2.
Ao nascer, o bebê já é capaz de detectar contrastes presentes em sons consonantais. Posteriormente, torna-se hábil em discriminar seletivamente os fonemas da língua a que está exposto. Neste período, há uma melhora e reorganização perceptual para novos sons, reorganização fundamental para o aprendizado da fala que só ocorrerá se a criança possuir a capacidade de discriminar os fonemas. Esta tende a melhorar com idade, sendo auxiliada pela experiência e maturação3-5.
Existem crianças que apresentam dificuldades no uso correto dos sons da fala, na ausência de fatores etiológicos detectáveis. Essa dificuldade na fala é denominada de desvio fonológico ou desordem fonológica e é caracterizada como o uso inadequado dos sons, expresso em substituições, omissões e distorções dos fonemas6,7.
A gravidade do desvio fonológico pode ser determinada pela proposta do cálculo do Percentual de Consoantes Corretas (PCC)8 que classifica o desvio em severo (PCC < 50%), desvio moderado-severo (51% < PCC < 65%), desvio médio-moderado (66% < PCC < 85%) e desvio médio (86% < PCC < 100%). Esta proposta de avaliação para a gravidade dos desvios na fala, é medido com base na coleta e análise de uma amostra de fala.
Algumas pesquisas9,10, através da análise sobre a discriminação auditiva em crianças com desvio fonológico, sugerem que estas crianças portadoras de alterações fonológicas apresentam dificuldades na capacidade de discriminação fonêmica, que permite ao sujeito diferenciar, por exemplo, dois sons presentes na fala com diferenças acústicas mínimas.
Outra metodologia, que está sendo utilizada para se buscar respostas quanto aos fatores que possam estar envolvidos com o desvio fonológico, é a aplicação de testes comportamentais que avaliam o processamento auditivo11-13. É responsável pela leitura eficiente que o sistema auditivo é capaz de fazer com as informações auditivas, através de mecanismos e processos responsáveis pelas capacidades de discriminação auditiva; localização e lateralização do som; reconhecimento de padrões auditivos; aspectos temporais da audição (integração temporal, discriminação temporal, ordem e mascaramento temporal); percepção a sinais acústicos competitivos e com baixa redundância, sendo que o transtorno do processamento auditivo corresponde a uma dificuldade em alguma das habilidades citadas14.
Por meio dos preceitos apresentados, tivemos por objetivo pesquisar o desempenho de crianças com desenvolvimento fonológico normal e desviante, em tarefas que envolvam o processamento auditivo e a discriminação fonêmica. Além disso, verificar se há uma possível associação entre as duas vertentes analisadas.
O estudo de populações específicas, que apresentem dificuldades na representação comunicativa, pode ser um recurso valioso para a compreensão dos processos envolvidos na utilização da fala. Justifica-se a necessidade de mais estudos sobre como as crianças com desvio fonológico lidam com os estímulos auditivos, competência aparentemente fundamental para a aquisição dos sons da fala.
MATERIAL E MÉTODOParticiparam desta pesquisa 46 crianças dos dois gêneros, com idades compreendidas entre 5 e 7 anos, sendo 22 diagnosticadas com desvio fonológico (GE) e 24 (GC) com desenvolvimento de fala normal. As crianças com desvio fonológico foram selecionadas a partir das triagens do setor de fala do Serviço de Atendimento Fonoaudiológico da Universidade Federal de Santa Maria - Santa Maria/RS. As crianças com desenvolvimento de fala normal foram selecionadas em uma escola filantrópica desta mesma cidade, sendo agendada uma reunião com os pais para um convite voluntariado. Explicações quanto aos objetivos e procedimentos da pesquisa foram dados posteriormente, e conforme autorização dos pais, foi feito o agendamento para as avaliações na clínica-escola.
O referido trabalho foi aprovado no comitê de ética e pesquisa com o número do protocolo 23081.006440/2009-60, e os pais ou responsáveis assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, permitindo a participação das crianças no estudo.
As avaliações dos dois grupos aconteceram na clínica escola de uma instituição de ensino superior e foram realizadas pelo próprio pesquisador.
Todas as crianças passaram por triagem fonoaudiológica, onde se avaliou: sistema estomatognático, avaliação da linguagem, inspeção otológica, avaliação audiológica (audiometria tonal, limiar de recepção de fala e índice perceptual de reconhecimento de fala), pesquisa do reflexo acústico e curva timpanométrica, avaliação da fala.
O sistema fonológico foi avaliado por meio do instrumento Avaliação Fonológica da Criança (AFC)15, que possibilita a obtenção de uma amostra de fala e sua análise. Através desse instrumento têm-se a possibilidade de coletar situação de fala espontânea e nomeação e detectar as produções referentes aos fonemas do português brasileiro.
Para as avaliações do processamento auditivo foram utilizados a avaliação simplificada do processamento auditivo, Teste Pediátrico de Inteligibilidade de Fala (PSI), Teste Fala com Ruído, Teste de Dissílabos Alternados (SSW) e Teste Dicótico de Dígitos16.
As crianças selecionadas foram divididas e organizadas da seguinte forma:
Grupo controle (GC): formado por 24 crianças com desenvolvimento de fala normal, sendo 8 do gênero masculino e 16 do gênero feminino.
Grupo experimental (GE): formado por 22 crianças com desvio fonológico, sendo 12 do gênero masculino e 10 do gênero feminino.
Critérios de inclusão na amostra para o GC:
1) não apresentar desvio fonológico;
2) não apresentar alterações neurológicas, emocionais e/ou perceptivas aparentes, alterações anatômicas e fisiológicas dos órgãos fonoarticulatórios, de linguagem expressiva e compreensiva;
3) ter audição dentro dos padrões de normalidade;
4) ser destro;
5) não apresentar queixa de alteração no processamento auditivo.
Os critérios de exclusão para o GC foram quaisquer alterações relacionadas ao desempenho da comunicação. As crianças deste grupo deveriam ter bom desempenho em todas as avaliações de órgãos fonoarticulatórios, auditivas e de linguagem e fala.
Critérios para inclusão na amostra para o GE:
1) apresentar desvio fonológico;
2) não apresentar alterações neurológicas, emocionais e/ou perceptivas aparentes, alterações anatômicas e fisiológicas dos órgãos fonoarticulatórios, de linguagem expressiva e compreensiva;
3) ter audição dentro dos padrões de normalidade;
4) ser destro;
5) não ter recebido ou estar em tratamento fonoaudiológico.
Para este grupo foram considerados como fatores de exclusão qualquer alteração perceptível relacionada ao desempenho comunicativo. O desvio fonológico deveria aparecer em sua forma mais pura, sem fator etiológico aparente.
Os equipamentos utilizados para a pesquisa foram: Audiômetro Clínico Fonix FA - 12, fone TDH 39 (calibração ANSI S3.6/96: ANSI S343/92). Todos os estímulos aplicados ocorreram em cabina acusticamente tratada. Para a pesquisa do RA contralateral nas frequências de 500 a 4000 Hz foi utilizado o Impedanciômetro AZ7, fone TDH 39, com tom de sonda de 220 Hz a 70 dB (calibração ANSI S3.6/96: ANSI S343/92); CDs volume 1 e volume 2, com a gravação dos testes, e os pôsteres com as ilustrações das respostas para os testes Pediatric Speech Inteligibility (PSI), conforme indicações do manual de aplicação16.
Nas avaliações do Processamento Auditivo, foram utilizados testes que avaliam as habilidades por meio de escuta diótica, monótica e dicótica.
Escuta dióticaPara a Avaliação Simplificada do Processamento Auditivo foram utilizados agogô, coco, guizo e sino. Este teste não requer nenhum mecanismo sofisticado, sendo fácil e bastante prática sua aplicação. É constituído de três etapas: localização sonora - a criança deve identificar qual direção do estímulo sonoro. Neste caso, a criança deve acertar pelo menos 4 direções de 5 apresentadas e se espera que os erros sejam em frente ou acima da cabeça. A próxima etapa é chamada de memória sequencial verbal: são apresentadas sílabas e espera-se que a criança seja capaz de repetir pelo menos duas sequências de três apresentadas. Por fim temos a memória sequencial não verbal: nessa tarefa a criança deve escutar o som de instrumentos já pré-determinados (guizo, agogô, sino, coco) e, ao fim, repetir corretamente a sequência apresentada. De três sequências espera-se que se acertem duas.
Escuta monóticaTeste Pediátrico de Inteligibilidade de Fala com mensagem competitiva ipsilateral (PSI/MCI). É um teste de reconhecimento de frases por meio de figuras. A mensagem competitiva é uma história que a criança deve desprezar. A atenção deve se prender ao comando para indicar a figura correspondente. As habilidades auditivas avaliadas foram figura-fundo e associação audiovisual.
O teste Fala com Ruído, a uma redução ou degradação da mensagem, causada pelo ruído competitivo. As crianças foram orientadas de que se ouviria uma série de palavras juntamente com ruído, sendo que deveria repetir as palavras que ouviria. Este teste avalia a capacidade de figura-fundo.
Escuta dicóticaTeste de dissílabos alternados - SSW que consiste na apresentação de 40 itens. Esses estímulos são formados por quatro dissílabos paroxítonos, totalizando 160 vocábulos. São apresentadas duas palavras em cada orelha, onde há uma sobreposição entre a segunda sílaba da segunda palavra e a primeira sílaba da terceira palavra, que foram enviadas simultaneamente às orelhas opostas. Desta forma, podemos verificar quatro condições para os estímulos: DNC (Direita não competitiva), DC (Direita competitiva), EC (Esquerda competitiva), ENC (Esquerda não competitiva). No entanto, iremos adotar a sugestão do manual16, ao se analisar somente as condições com competição. A orientação é que sejam repetidas todas as palavras na ordem em que foram apresentadas. As habilidades avaliadas foram as de análise e síntese auditiva, ordenação temporal e memória.
O Teste Dicótico de Dígitos (etapa atenção livre e direcionada) consiste em quatro apresentações de uma lista de dígitos dissílabos do português brasileiro, em que quatro dígitos diferentes são apresentados simultaneamente, dois em cada orelha, caracterizando uma tarefa dicótica. Através deste teste é possível identificar as habilidades de atenção seletiva (direcionar a escuta).
Foi aplicado o Teste de Figuras Para Discriminação Fonêmica (TFDF). Este instrumento foi desenvolvido como uma proposta para se avaliar a discriminação fonêmica de crianças com idades compreendidas entre 4 a 8 anos. O TFDF apresenta 60 palavras, compondo 30 pares mínimos (palavras com mesma estrutura silábica que se diferem apenas por um fonema), organizados em 40 apresentações. Cada apresentação contém 3 cartelas, cada uma contendo dois desenhos. A criança deve ouvir dois estímulos auditivos (duas palavras) e apontar para a figura correspondente17.
Para o tratamento estatístico foi utilizado o programa SAS user's guide: statistical, Analysis System Institute, Inc., Cary, NC, 2001; teste de correlação de coeficientes de Pearson.
RESULTADOSO teste PSI na modalidade (PSI/MCI) foi realizado com pleno êxito pelos grupos controle e experimental. Não houve margem de erros para nenhum dos grupos, ou seja, todos tiveram 100% de acertos. Também não foi possível identificar diferenças relativas a tempo ou a qualquer outro tipo de fator que pudesse caracterizar um grupo diferentemente do outro.
Com relação ao teste de Fala com Ruído, os resultados se assemelham aos do teste PSI. O mesmo pode-se dizer para os resultados encontrados no TFDF para o grupo controle.
Desta forma, não há possibilidades reais de se investir em análises estatísticas, pois não existem diferenças ou erros que possam ser analisados estatisticamente.
A seguir, os dados que serão apresentados apresentam significância estatística.
No teste SSW, na avaliação quantitativa e qualitativa para o grupo GC, os resultados se mantiveram dentro do esperado para a normalidade.
Para o GE, os dados quantitativos foram bastante abaixo do esperado para o padrão de normalidade e identificou-se grande número de omissões, trocas e padrão de resposta tipo A presentes nas duas condições analisadas (Direita competitiva e Esquerda competitiva). Além disso, as crianças necessitaram de um tempo maior para emitir as respostas.
Os valores quantitativos dos grupos GC e GE podem ser vistos na Tabela 1.
No teste Dicótico de Dígitos, na Tabela 2, é possível visualizar os valores referentes aos números de erros dentro de cada grupo, pela média, desvio padrão, nível mínimo e máximo. Nas etapas de atenção livre, à direita e à esquerda os índices de respostas não apresentaram diferenças estatísticas entre as duas orelhas, nos dois grupos. Somente o grupo experimental obteve valores fora dos padrões tidos para normalidade.
Para a Avaliação Simplificada do Processamento Auditivo, somente os resultados do grupo experimental se apresentaram alterados. Esses dados do desempenho das crianças dos grupos controle e experimental podem ser verificados na Tabela 3.
Os valores obtidos no TFDF pelos GC e GE estão representados na Tabela 4, com a média, desvio padrão, valores mínimos e máximos.
DISCUSSÃOA um nível neurobiológico, duas vias paralelas têm sido descritas como estando diretamente implicadas ao processamento auditivo. Uma delas tem a ver com os estímulos auditivos que são discriminados, neste caso, os que estão relacionados aos sons da fala. A segunda seria a forma como o sujeito lida com as faculdades linguísticas, mais especificamente, com o seu sistema fonológico18,19.
Este trabalho se baseia praticamente nestes preceitos. Se existe uma ligação entre as interfaces apresentadas, uma alteração em uma destas vias pode repercutir em um possível desacordo em outra via associada.
Ao se observar os resultados, o grupo controle apresentou valores máximos para os testes TFDF, PSI, Fala com Ruído e padrões de normalidade para o SSW, Dicótico de Dígitos e na Avaliação Simplificada do Processamento Auditivo. O mesmo não se pode dizer para o grupo experimental, que apresentou valores alterados para os testes de escuta dicótica e padrões de erros para o TFDF. Alterações no processamento auditivo conduz a alterações perceptivas em tarefas que envolvam discriminação fonêmica e utilização dos sons da fala.
No entanto, um dado que chamou bastante a atenção foi a igualdade de valores obtidos pelos dois grupos nos testes de Fala com Ruído e PSI. As crianças dos dois grupos obtiveram valores máximos. Ao analisar as habilidades auditivas envolvidas nesta tarefa, a conclusão é que crianças com desvio fonológico não apresentam dificuldades na capacidade de codificação da mensagem auditiva (déficit na atenção seletiva; linguagem expressiva; dificuldade de compreensão; distração; problemas comportamentais; disgrafias), pois foram capazes de assimilar a mensagem em situações de mensagem degradada, separar sinais acústicos diferentes, focar a atenção, além de criar associações audiovisuais20. Não foi possível observar nestes dois testes nenhuma diferença de valores entre as crianças. Em outro estudo21, em que se utilizaram os testes PSI e Fala com Ruído em avaliação de crianças com dificuldades escolares, na modalidade monótica, foram encontradas correlações significativas ao se analisar o percentual de acertos com o aumento da idade.
Na análise dos resultados dos testes de escuta dicótica, os valores para o grupo experimental no teste SSW, apresentaram-se alterados na quantificação dos dados, acrescido ao alto percentual de erros em sua parte qualitativa, sugerindo que crianças, com desvio fonológico, apresentam dificuldades nas habilidades auditivas relacionadas à análise e síntese auditiva, ordenação temporal e memória. Sugere-se que essas habilidades são importantes para aquisição fonológica e responsáveis pela associação fonema-grafema22. Estes dados se assemelham a outros estudos que se valeram da utilização do teste SSW para pesquisar estas habilidades em crianças12,23.
Para o teste Dicótico de Dígitos, os resultados do GE apresentaram valores com alto nível de comprometimento. As crianças, de uma forma geral, não foram capazes de separar o sinal acústico por meio da atenção seletiva. Contudo, foi possível observar uma pequena vantagem em relação ao número de acertos do teste SSW. As respostas através de dígitos parecem ser melhor compreendidas e memorizadas, quando comparadas ao estímulo por meio de sentenças com estruturas silábicas. Fato que pode ser explicado pelo componente da memória de trabalho, referido como executivo central, sendo responsável pela aquisição do vocabulário, processamento, armazenamento e evocação de informações24. Como os dígitos ou números possuem menor carga semântica, é natural existir uma vantagem sobre palavras.
Na Avaliação Simplificada do Processamento Auditivo, os resultados também se apresentaram alterados no grupo experimental, mas com relação significante entre sons não-verbais e sons verbais, uma relação diretamente proporcional para erros. A capacidade de memorizar estas sequências se apresentou bastante alterada principalmente ao se comparar com o grupo controle. Resultados semelhantes foram encontrados em outro estudo16, em crianças com desvio fonológico com idade escolar.
Ao se avaliar os dois testes dicóticos e o teste de escuta diótica, é possível perceber que as crianças apresentaram dificuldades nas habilidades avaliadas. Em vista disso, o tipo de alteração do processamento auditivo pode ser determinado por déficits na capacidade de decodificação (déficit na escrita; problemas na análise e síntese fonêmica; integração dos aspectos acústicos da fala) e organização (responsável por organizar eventos acústicos no tempo, tendo participação na ordenação dos sons presentes na fala) da informação auditiva16, que reafirmam as ligações entre dificuldades fonoarticulatórias e alterações do processamento auditivo. As habilidades auditivas prejudicadas impossibilitam o uso correto dos fonemas inseridos na fala25.
O TFDF é uma proposta de avaliação, ainda não se tem a possibilidade de mensurar algum valor para afirmar se a criança apresenta ou não dificuldades em tarefas que exijam discriminação fonêmica. No entanto, os dados do grupo controle servem como um norte para se medir a influência dos erros. Como relatado nos resultados, todos os participantes do grupo controle conseguiram alcançar os resultados máximos do instrumento. Já o grupo experimental, mesmo obtendo médias não tão baixas, apresentou erros. As tarefas são aparentemente simples, mas exigem atenção, discriminação dos estímulos, acesso lexical e associação audiovisual. Para adultos, essas investigações ocorrem de forma mais natural, com menos esforço por parte do participante, mas para as crianças normais, essas tarefas possuem um baixo valor em sua redundância, ou seja, as pistas acústicas são menos perceptíveis26, percepção que parece se diminuir nos casos de crianças com desvio fonológico.
É importante salientar que um dos traços distintivos com menor média de acertos foi [+/-voz]. Os pares de palavras, que se diferem por esse traço, apresentam diferenças de sonoridade, sendo os fonemas surdos produzidos, sem movimentação de pregas vocais e os sonoros, com a movimentação de pregas vocais. A principal forma para se discriminar os sons surdos dos sonoros está no intervalo de tempo entre a soltura da oclusão do fonema e o início da sonorização, denominado de VOT (Voice Onset Time)27. Em um estudo, que se avaliou a discriminação auditiva e sua repercussão em alterações nas habilidades de fala e escrita, os resultados foram estatisticamente significantes, e isso ficou demonstrado em situações que se avaliava a funcionalidade do VOT28.
Ao analisar os resultados obtidos pela amostra estudada, em relação aos valores dos testes de processamento auditivo e de discriminação fonêmica, observou-se que o grupo controle construiu seus resultados de forma bastante positiva, praticamente sem erros. O grupo experimental, por sua vez, apresentou erros dentro de cada avaliação. Assim, há relação entre as habilidades envolvidas com o processamento auditivo, a capacidade de discriminação fonêmica, e é claro, seu determinismo na assimilação e utilização dos sons fala. A incapacidade para se decodificar e organizar os estímulos auditivos se associa aos problemas de fala, e este, por sua vez, é acompanhado de reduções na capacidade de discriminação fonêmica em crianças com desvio fonológico. É interessante ressaltar que as localizações anatômicas e as vias fisiológicas envolvidas nestes processos são basicamente as mesmas29. Os dados se assemelham a outro estudo em que se investigaram essas relações em crianças pré-escolares de alto-risco para dislexia30.
Sobre uma visão lógica, deficiências processuais e discriminativas relacionadas ao período de aquisição fonológica, podem vir a comprometer a incorporação e reorganização dos sons da fala.
Desta forma, torna-se sugestivo que, nos casos que envolvam aquisição de fala desviante, as avaliações das habilidades do processamento auditivo e discriminação fonêmica possam acontecer de forma conjunta, a fim de se conseguir uma hipótese diagnóstica mais segura e uma conduta terapêutica mais eficaz.
CONCLUSÃOCrianças com desvio fonológico apresentam dificuldades no processamento auditivo e de discriminação fonêmica.
Déficits nas habilidades do processamento auditivo acarretam prejuízos à capacidade de se discriminar os fonemas, e os sinais destas anormalidades podem repercutir na utilização dos sons da fala.
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1. Mestrado em Distúrbios da Comunicação Humana pela Universidade Federal de Santa Maria, Fonoaudiólogo
2. Doutorado em Lingüística e Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Professor Associado da Universidade Federal de Santa Maria
Universidade Federal de Santa Maria.
Este artigo foi submetido no SGP (Sistema de Gestão de Publicações) da BJORL em 15 de dezembro de 2009. cod. 6841
Artigo aceito em 31 de janeiro de 2010.