INTRODUÇÃO
A epistaxe é uma das emergências mais freqüentes na prática médica. Na maioria dos casos (90%) é originária da porção anterior da cavidade do nariz (plexo de Kisselbach ou área de Little), onde pode ser controlado por cauterização química, eletrocoagulação ou tamponamento nasal anterior. Quando o sangramento se origina das porções mais profundas da cavidade nasal (10%), o tratamento clássico é o tamponamento nasal ântero-posterior utilizando-se gaze, sonda de Foley, esponjas etc. Muitas vezes o sangramento é intenso e persistente, não sendo controlável pelos métodos clássicos, sendo necessárias ligaduras, embolizações arteriais ou outros procedimentos intervencionistas1,2.
Em crianças as causas mais freqüentes de epistaxe são: processos infecciosos, geralmente das vias aéreas superiores; sinusites evidentes ou ocultas; processos alérgicos; discrasias sanguíneas ou da coagulação; tumores endonasais e traumas externos. Entre as discrasias sanguíneas encontram-se: Doença de Von Willebrand, leucemias, alguns casos de hipersensibilidade a fármacos e a síndrome de Bernard-Soulier.
REVISÃO DE LITERATURA
A síndrome de Bernard-Soulier é uma rara desordem hereditária caracterizada por plaquetopenia, plaquetas gigantes e ausência de interações plaquetárias seletivas induzidas pelo fator de Von Willenbrand devido a anormalidades da glicoproteina Ib presente na superfície das plaquetas. Foi descrita pela primeira vez em 1948 por Bernard e Soulier. Apresenta herança genética por traço autossômico recessivo. Anormalidades laboratoriais são comumente demonstradas mesmo nos heterozigotos clinicamente não afetados3.
Clinicamente, caracteriza-se por hemorragias freqüentemente severas, tempo de sangramento prolongado com plaquetopenia leve a moderada. No relato de séries de crianças com a síndrome: Rodeghiero et al4 colocaram a epistaxe como a manifestação clínica mais freqüente e significativa; De Moerloose et al5 relataram o caso de uma mulher que desde criança sofria de epistaxes recorrentes, hemorragia gengival e equimoses; Lubianca Neto et al6 relataram o caso de uma criança com epistaxe profusa que necessitou de embolização da artéria maxilar interna via angiografia.
O diagnóstico da Síndrome de Bernard-Soulier deve ser baseado no quadro clínico e confirmado pelos exames laboratoriais6. Podem ocorrer: epistaxe recorrente, hemorragia gengival, equimoses, facilidade de formar hematomas, púrpuras e petéquias. Entre as anormalidades laboratoriais podem aparecer plaquetopenia leve a moderada, plaquetas gigantes, tempo de sangramento prolongado, ausência de agregação pela ristocetina, ausência ou defeito do complexo de glicoproteína Ib na membrana plaquetária, mas atividade normal de fator VIII e fator de Von Willenbrand7.
O tratamento de Síndrome de Bernard-Soulier baseia-se em manter ou restaurar o equilíbrio hemodinâmico. Utiliza-se a infusão de plaquetas e, em casos de epistaxe, o tamponamento nasal6.
APRESENTAÇÃO DO CASO CLÍNICO
R.G.O., com 9 anos de idade, do sexo feminino, melanodérmica, encaminhada ao serviço de Otorrinolaringologia do Hospital das Clinicas da Universidade Federal de Goiás apresentando epistaxe volumosa, com história de vários episódios anteriores de epistaxe e tamponamentos nasais anteriores e algumas transfusões sanguíneas com sangue total e concentrado de plaquetas.
Ao exame otorrinolaringológico, apresentava epistaxe ativa nas duas fossas nasais. Restante do exame otorrinolaringológico sem alterações. Foi realizado tamponamento nasal anterior com sucesso. Antecedentes: paciente em acompanhamento pelo serviço de Hematologia Pediátrica do Hospital das Clinicas da Universidade Federal de Goiás para investigação diagnóstica há 2 anos com história de sangramento gengival, epistaxes de repetição, melena, hematêmese desde os 12 meses de idade. Iniciando investigação diagnóstica para coagulopatia que revelou hemograma com anemia microcítica e hipocrômica, leucócitos normais e plaquetopenia acentuada com macroplaquetas. TTPa normal e TP de 83% com TS aumentado. Teste de agregação plaquetária com ristocetina negativo. Na presença destas alterações laboratoriais firmou-se o diagnóstico de Síndrome de Bernard-Soulier. A paciente encontra-se atualmente estável, tendo recebido algumas transfusões de concentrado de plaquetas e hemácias desde o seu diagnóstico. Foram solicitadas avaliações junto ao serviço de Otorrinolaringologia para realização de tamponamentos nasais. Até o presente momento não foram necessárias intervenções cirúrgicas como ligaduras arteriais ou procedimento de embolização arterial.
DISCUSSÃO
A síndrome de Bernard-Soulier é uma rara desordem hereditária, sendo autossômico recessivo3 com quadro clínico representado por hematomas prolongados, petéquias, púrpuras, hipermenorragia e epistaxes4,5,6,7, como em nossa paciente com manifestação otorrinolaringológica mais relevante de epistaxes severas e de repetição.
Anormalidades laboratoriais são comumente demonstradas mesmo nos heterozigotos clinicamente não-afetados3; em nossa paciente foram observados hemograma com anemia microcítica e hipocrômica, leucócitos normais e plaquetopenia acentuada com macroplaquetas; TTPa normal e TP de 83% com TS aumentado; teste de agregação plaquetária com ristocetina negativo, levando a confirmação do diagnóstico da síndrome de Bernard-Soulier, que deve ser baseado no quadro clínico e confirmado pelos exames laboratoriais6.
Deve ser lembrada a possibilidade de ocorrência de epistaxe recorrente, hemorragia gengival, equimoses, facilidade de formar hematomas, púrpuras e petéquias, assim como anormalidades laboratoriais tipo plaquetopenias leve a moderada, plaquetas gigantes, tempo de sangramento prolongado, ausência de agregação pela ristocetina, ausência ou defeito do complexo de glicoproteina Ib na membrana plaquetária, mas atividade normal de fator VIII e fator de Von Willenbrand7, que devem ser investigados em conjunto com a participação do otorrinolaringologista e hematologista.
O tratamento de Síndrome de Bernard-Soulier objetiva manter ou restaurar o equilíbrio hemodinâmico1, podendo ser utilizada hemoterapia com infusão de plaquetas e, em casos de epistaxe, o tamponamento nasal.
COMENTÁRIOS FINAIS
A síndrome de Bernard-Soulier, mesmo sendo uma trombocitopatia rara, deve ser lembrada como causa de epistaxe, principalmente quando o sangramento for repetitivo e severo. Salientamos a necessidade da investigação diagnóstica e do tratamento multidisciplinar com a participação do otorrinolaringologista e do hematologista pediátrico.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1. Stamm A.C. Microcirurgia naso-sinusal. Rio de Janeiro: Revinter 1995:289-297. 2. Merland Jj, Melki Jp, Chiras J, Riche Mc, Hadjean E. Place of embolization in the treatment of severe epistaxis. Laryngoscope 1980;90:1694-1704. 3. Bernard J, Soulier JP. Sur une nouvelle variete de dystrophie trombocytire hémorragipare congénitale. Sem Hôp Paris 1948;24:3217. 4. Rodeghiero F, Castaman G, Pesavento G, Bonato F, Muleo G, Consarino C. Recurrent life threatening epistaxis in a child with Bernard-Soulier Syndrome controlled by bilateral ligation of external carotids and ethmoidal arteries. Acta Haematol 1986;77:183-185. 5. De Moerleoose P, Vogel JJ, Clemetson KJ, Petile J, Bienz D, Bouvier CA. Bernard-Soulier syndrome in a Swiss family. Schweiz Med Wochensche 1987;1177:1817-1821.
6. Lubianca Neto JF, Brito LBT, Santos EF. Epistaxe como manifestação da Síndrome de Bernard-Soulier. Jornal de Pediatria 1997;73(2):111-114. 7. Pansatiankul BJ, Opartkiattikul N, Sangtawesin W. Bernard-Soulier Syndrome: a case report. Southeast Asian J Trop Med Public Health 1993;24:219-221.
1 Mestre e Doutoranda em Otorrinolaringologia pela Universidade de São Paulo, Assistente do Serviço de Otorrinolaringologia do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Goiás. 2 Médicos Residentes de Otorrinolaringologia do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Goiás. 3 Médico-Assistente do Serviço de Otorrinolaringologia do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Goiás 4 Professor-Assistente e Chefe do Serviço de Otorrinolaringologia do Hospital das Clinicas da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Goiás.
Instituição: Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Goiás.
Endereço para correspondência: Simone Adad Araújo - Rua 20, número 324, ap. 201, Setor Central - Goiânia/ GO CEP 74030-110
Telefone: (0xx62) 224.2282 - e-mail: saadad@bol.com.br
Artigo recebido em 8 de janeiro de 2001. Artigo aceito em 29 de outubro de 2001.
|