INTRODUÇÃOOs índices de mortalidade de recém-nascidos de alto risco vêm progressivamente diminuindo devido aos avanços médico-científicos, especificamente na área de neonatologia. Tais progressos contribuíram para o aumento da sobrevida principalmente de recém-nascidos pré-termo e de baixo peso. No entanto, os recém-nascidos que resistem às intercorrências perinatais tornam-se propensos a manifestar desvios em seu desenvolvimento, podendo apresentar deficiências neurológicas e/ou sensoriais. Essa possibilidade acentua-se com a diminuição do peso ao nascimento e a redução da idade gestacional, caracterizando essa população como de risco para alterações neurológicas ou sensoriais, entre elas as alterações auditivas periféricas e/ou centrais1-3.
A audição é de fundamental importância no desenvolvimento de uma criança, sendo responsável por uma melhor integração do indivíduo em uma sociedade cuja comunicação oral é predominante. Alterações auditivas podem acarretar
deficits na linguagem e no desenvolvimento cognitivo, intelectual, cultural e social. Atentando para esses fatos, medidas para a detecção de alterações auditivas devem ser tomadas o mais precocemente possível no decorrer da vida do indivíduo, favorecendo o desenvolvimento da linguagem e permitindo o estabelecimento da função social.
A identificação precoce de alterações auditivas possibilita que, nos casos positivos, sejam realizados encaminhamentos necessários, tais como para intervenção médica e programas de habilitação e reabilitação4,5. O
Joint Comittee of Infant Hearing (JCIH)6 recomenda que crianças com perda auditiva sejam identificadas por meio da triagem auditiva neonatal universal (TANU), a qual deve ser realizada na alta hospitalar ou no primeiro mês de vida. No caso de falhas na triagem, deve ocorrer encaminhamento médico e fonoaudiológico. Para confirmar o diagnóstico de perda auditiva é necessário que seja realizada, então, uma bateria de testes, sendo que o diagnóstico deve ser concluído até o 3º mês de vida, preconizando o início da intervenção terapêutica até os 6 meses de idade.
O avanço da TANU em decorrência da recomendação do JCIH acarretou o aumento da demanda de crianças muito novas na clínica fonoaudiológica, as quais não respondem de maneira fidedigna a testes audiológicos subjetivos2,7-9, o que fez com que os exames objetivos se tornassem ferramentas de grande utilidade.
O Potencial Evocado Auditivo de Tronco Encefálico (PEATE) consiste no registro da atividade elétrica que ocorre no sistema auditivo, da orelha interna até o tronco encefálico, decorrente da apresentação de um estímulo acústico. É um exame objetivo simples e não invasivo para avaliação da função auditiva e tem sido amplamente utilizado para a detecção de perdas auditivas em crianças, uma vez que não requer a colaboração do paciente2,7-9. Em relação às aplicações clínicas, o PEATE permite fazer o diagnóstico de alterações no limiar auditivo, caracterizando o tipo de perda auditiva, identificar alterações retrococleares ou relacionadas ao sistema nervoso central e avaliar a maturação do sistema auditivo central em neonatos10,11.
A maturação neurológica do sistema auditivo ocorre em duas fases. A primeira fase ocorre na vida intrauterina, encerrando-se por volta do sexto mês de gestação, quando há a maturação das vias auditivas periféricas. A segunda fase inicia-se após o nascimento e se completa por volta dos 18 meses de idade, quando há a maturação das vias auditivas ao longo do sistema nervoso central, até o tronco encefálico7,12-14.
Diversos autores relatam que as respostas do PEATE em neonatos e lactentes sofrem influência do processo maturacional do sistema auditivo7,12,15-19. No caso de neonatos prematuros, o efeito da maturação é ainda mais evidente e, dessa forma, o padrão de respostas dessas crianças difere das nascidas a termo7,15,16,19-21.
A literatura nacional da área é escassa em estudos sobre a influência das questões neuromaturacionais do sistema auditivo em recém nascidos pré-termos. Devido à importância do teste no diagnóstico de alterações auditivas em crianças e com o aumento da demanda de neonatos e lactentes com poucos meses de vida para identificação precoce de alterações auditivas, é fundamental a obtenção de dados normativos. Tais dados permitem conhecer o padrão de respostas dessa população e diferenciá-lo de reais alterações, auxiliar na interpretação dos resultados e, portanto, aumentar a precisão do diagnóstico audiológico.
Diversos trabalhos reforçam a importância da obtenção de dados normativos em cada serviço, uma vez que os valores de latências das ondas dependem de vários fatores como, por exemplo, o parâmetro de estímulo, o aparelho utilizado e as características populacionais como idade9,17,18.
O objetivo do presente estudo foi analisar o padrão de respostas de neonatos e lactentes termos e prematuros para o PEATE, considerando os fatores gênero e orelha, e verificar a influência da maturação das vias auditivas nas respostas eletrofisiológicas dessa população.
MÉTODOSTrata-se de um estudo de coorte transversal e prospectivo. Foram avaliadas 66 crianças do gênero masculino e feminino, sendo 36 nascidos a termo (RNT) e 30 prematuros (RNPT), de acordo com a classificação da Organização Mundial de Saúde (OMS)22.
Todos os sujeitos incluídos nesse estudo permaneceram no alojamento conjunto e, com exceção da prematuridade, não apresentavam nenhum outro indicador de risco para perda auditiva6.
Para excluir alterações auditivas periféricas, de orelha externa e média, foram incluídos na pesquisa somente os lactentes que passaram na triagem auditiva neonatal realizada com o teste de Emissões Otoacústicas Transientes (EOAT) e que apresentaram curva timpanométrica tipo A, segundo a classificação de Jerger e Carvallo23,24. Para avaliar as condições de orelha média foi utilizado o equipamento MT10 da Interacoustics, com tom de sonda de 226 Hz. Para a avaliação das emissões otoacústicas foi utilizado o equipamento OtoRead da Interacoustics, o qual enfatiza as frequências de 1.000, 1.500, 2.000, 3.000 e 4.000 Hz, e foi considerado como critério de passa/falha a presença de 03 bandas de frequência com relação sinal/ruído acima de 5dB.
Os pais ou responsáveis das crianças que compareceram para realização da triagem auditiva neonatal e que preenchiam os critérios de inclusão do presente estudo foram esclarecidos sobre os objetivos e a importância da pesquisa. Aqueles que consentiram com a realização da mesma assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e foram incluídos no estudo.
As avaliações foram realizadas entre a alta hospitalar e o 3º mês de vida e foram constituídas pelos seguintes procedimentos: anamnese, análise das condições da orelha média com medidas de imitância acústica e avaliação eletrofisiológica por meio do PEATE.
Para o teste PEATE foi utilizado o equipamento Eclipse EP 25 - Interacoustics. O PEATE foi realizado em ambiente silencioso com isolamento elétrico e pouca luminosidade. Foram utilizados fones de inserção, com estimulação monoaural. Foi utilizada a intensidade de 80 dBNA para avaliação da integridade da via auditiva e para comparação das latências absolutas das ondas I, III e V e interpicos I-III, III-V e I-V entre os grupos. Posteriormente o estímulo foi apresentado de maneira decrescente nas intensidades de 60, 40 e 20 dBNA. A orelha contralateral foi mascarada com ruído branco de 40 dBNA a menos que a intensidade do estímulo apresentado na orelha testada.
O exame foi realizado em sono natural, geralmente após alimentação. A criança permaneceu deitada no colo da mãe, de maneira confortável. Após limpeza da pele com álcool e pasta abrasiva e aplicação do gel condutor, foram colocados eletrodos de superfície, sendo os eletrodos ativo (Fz) e o terra (Fpz) na fronte, e os eletrodos de referência nas mastoides direita (M2) e esquerda (M1). A impedância entre os eletrodos foi considerada menor que 3 KOhms, de acordo com recomendação do manual de instruções do equipamento.
Os parâmetros utilizados no registro do PEATE foram: cliques de polaridade rarefeita, filtro passa-baixo 3000 Hz e passa-alto 50 Hz, total de 2000 estímulos, taxa de apresentação de 19 estímulos/segundo e janela de análise de 15 ms. Foi realizada a duplicação de cada registro para assegurar a reprodutibilidade dos resultados obtidos.
Foram analisadas a presença e as latências absolutas das ondas I, III e V para 80 dBNA, assim como os intervalos interpicos I-III, III-V e I-V. Analisou-se também a presença e latência absoluta da onda V para os estímulos de 60, 40 e 20 dBNA e a diferença interaural da latência absoluta da onda V em todas as intensidades.
A presente pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisas, sob protocolo de número 649/2007.
Foi realizada a análise estatística dos dados, os quais foram estudados quanto à distribuição normal por meio do teste de Kolmogorov-Smirnov. Quando observou-se distribuição normal foram utilizados testes paramétricos, caso contrário, testes não paramétricos.
A homogeneidade dos grupos quanto ao gênero foi avaliada por meio do teste de qui-quadrado. A análise das latências absolutas e interpicos em relação às orelhas direita e esquerda foi realizada por meio dos testes T pareado e Wilcoxon pareado, por se tratarem de observações no mesmo indivíduo. Para as latências absolutas e interpicos nas quais não foram encontradas diferenças significativas adotou-se a unidade amostral como sendo a orelha, caso contrário o estudo foi realizado considerando as orelhas direita e esquerda separadamente. Em seguida estudou-se os resultados das latências absolutas e interpicos em relação ao gênero masculino e feminino por meio dos testes de T de student ou Mann-Whitney (não paramétrico). Para as latências absolutas e interpicos nas quais a diferença foi significativa, foi considerado o gênero masculino e feminino na comparação dos resultados entre termos e prematuros. Os resultados obtidos para latências absolutas e interpicos das ondas I, III e V e diferença interaural da onda V nos grupos de termos e prematuros foram comparados através do teste T de Student ou Mann-Whitney.
A correlação entre idade gestacional e latências absolutas e interpicos foi avaliada considerando cada grupo e a amostra total através do coeficiente de correlação de Spearman.
O nível de significância assumido foi de 5%, e os dados nos quais foi observada diferença estatisticamente significante foram destacados em negrito. O software utilizado para análise foi o SAS versão 9.1.3.
RESULTADOSForam avaliados 66 lactentes, sendo 36 RNT e 30 RNPT. A Tabela 1 contém a caracterização da amostra quanto ao sexo, idade gestacional e idade no momento do exame (idade gestacional acrescida da idade pós-natal). Verificou-se com o teste de qui-quadrado que os grupos são homogêneos quanto ao sexo (p=0,5561).
Na comparação das latências absolutas e interpicos das ondas I, III e V na intensidade de 80 dBNA e da latência da onda V nas intensidades de 60, 40 e 20 dBNA entre as orelhas direita e esquerda dos lactentes avaliados, foi observada diferença estatisticamente significante somente para o interpico I-III, como observa-se pelos resultados descritos na Tabela 2.
Na comparação das latências absolutas e interpicos das ondas I, III e V na intensidade de 80 dBNA e da latência da onda V nas intensidades de 60, 40 e 20 dBNA em relação ao gênero masculino e feminino, por meio dos testes T de Student e Mann-Whitney, não foi encontrada diferença estatisticamente significante, como verifica-se na Tabela 3 (p<0,05).
Em relação às latências absolutas e interpicos das ondas I, III e V na intensidade de 80 dBNA e à latência da onda V nas intensidades de 60, 40 e 20 dBNA observadas nos lactentes termos e prematuros, assim como a comparação entre os grupos, foram encontrados os valores apresentados na Tabela 4.
Na comparação das latências absolutas entre os termos e prematuros foram observadas diferenças estatisticamente significantes para as ondas I, III e V na intensidade de 80 dB e para onda V nas intensidades de 60 e 20 dB, sendo que em todas as intensidades os prematuros apresentaram valores maiores que os nascidos a termo. Na intensidade de 40 dBNA também foram encontradas latências mais prolongadas da onda V nos prematuros, embora essa diferença não tenha se mostrado significante na análise estatística. Os intervalos interpicos I-III, III-V e I-V observados nos prematuros estavam aumentados quando comparados aos lactentes a termo, porém, essa diferença não foi considerada significativa na análise estatística.
Foram observados valores menores ou iguais a 0,4 ms para a diferença interaural da onda V nos lactentes avaliados, sendo respectivamente em 86% dos termos e 80% dos prematuros em 80 dBNA, 83% e 77% em 60 dBNA, 75% e 80% em 40 dBNA e 89% e 83% em 20 dBNA.
Foi utilizado o coeficiente de correlação de Spearman para verificar a correlação entre idade gestacional e latências absolutas e interpicos das ondas I, III e V na intensidade de 80 dBNA e entre idade gestacional e latência absoluta da onda V nas intensidades de 60, 40 e 20 dBNA e foram obtidos os resultados apresentados nas Figuras 1, 2, 3, 4, 5 e 6.
Figura 1. Gráfico de correlação entre idade gestacional e latência absoluta da onda I na intensidade de 80 dBNA. Coeficiente de Correlação de Spearman (r= -0,188; p<0,05)
Figura 2. Gráfico de correlação entre idade gestacional e latência absoluta da onda III na intensidade de 80 dBNA. Coeficiente de Correlação de Spearman (r= - 0,232; p<0,05).
Figura 3. Gráfico de correlação entre idade gestacional e latência absoluta da onda V na intensidade de 80 dBNA. Coeficiente de Correlação de Spearman (r=- 0,266; p<0,05).
Figura 4. Gráfico de correlação entre idade gestacional e latência absoluta da onda V na intensidade de 60 dBNA. Coeficiente de Correlação de Spearman (r=-0,267; p<0,05).
Figura 5. Gráfico de correlação entre idade gestacional e latência absoluta da onda V na intensidade de 40 dBNA. Coeficiente de Correlação de Spearman (r=-0,159; p<0,05).
Figura 6. Gráfico de correlação entre idade gestacional e latência absoluta da onda V na intensidade de 20 dBNA. Coeficiente de Correlação de Spearman (r=-0,236; p<0,05).
Na análise do coeficiente de correlação de Spearman foi observada, para todos os lactentes avaliados, correlação inversa entre idade gestacional e latências absolutas das ondas I, III e V em 80 dBNA e da onda V em 60, 40 e 20 dBNA (Figuras 6, 7, 8, 9 e 10). Não foi verificada correlação entre idade gestacional e latências interpicos.
Na comparação entre os valores obtidos para latências absolutas e interpicos da amostra estudada e os valores de referência para adultos verificou-se um aumento global de todos os componentes, com exceção da latência absoluta da onda I, para a qual os valores obtidos foram semelhantes aos descritos para adultos13.
DISCUSSÃONos lactentes termos e prematuros foi possível observar a presença da onda V em todas as intensidades testadas, incluindo 20 dBNA. Esse achado é similar aos resultados obtidos em outros estudos8,19. Os critérios de inclusão adotados na presente pesquisa garantiram que fossem descartadas alterações de orelha externa, média e de origem coclear. Tais critérios de inclusão justificam a presença da onda V em até 20 dBNA, confirmando assim a ausência de perdas auditivas na população estudada.
Na amostra estudada não foi encontrada diferença estatisticamente significante na comparação das latências absolutas das ondas I, III e V e interpicos III- V e I-V em relação às orelhas direita e esquerda. Somente para o interpico I-III foi encontrada diferença estatisticamente significante, sendo que os valores obtidos na orelha esquerda foram maiores que os da orelha direita (Tabela 2). Em diversos trabalhos também não foi observada diferença significante entre as orelhas para latências absolutas e interpicos7-10,25. Esses autores referem que em indivíduos com audição periférica normal as respostas das duas orelhas na audiometria de tronco encefálico são semelhantes, uma vez que as estruturas anatômicas envolvidas são do tronco encefálico, ou seja, estruturas utilizadas pelas duas orelhas quando ocorre estimulação sonora. Segundo Munhoz26 as ondas I e II surgem ipsilateralmente ao estímulo e refletem o potencial de ação do nervo auditivo; já as ondas III, IV e V recebem contribuições contralaterais, que provavelmente são em maior número que as ipsilaterais e são atividades pós-sinápticas de diversas regiões das vias auditivas no tronco encefálico as quais são utilizadas por ambas as orelhas em resposta à estimulação sonora. Portanto, em indivíduos sem alterações auditivas periféricas os resultados de uma orelha podem ser correlacionados com os resultados esperados para a orelha oposta. No entanto, um estudo difere desses achados, uma vez que foram encontrados intervalos interpicos menores e amplitudes maiores na orelha direita dos indivíduos testados, da mesma forma como foi observado no presente estudo para o interpico I-III21.
Ao compararmos as latências absolutas e interpicos das ondas I, III e V observadas na amostra avaliada no presente estudo em relação ao gênero masculino e feminino não foi encontrada diferença estatisticamente significante em todas as intensidades testadas (Tabela 3). Esses achados são similares aos obtidos por outros estudos realizados com neonatos, lactentes e crianças7,8,18. No entanto, diferem de outros trabalhos nos quais foram avaliados neonatos, lactentes, crianças e adultos e foram observadas latências mais longas em indivíduos do sexo masculino, principalmente para as latências absolutas das ondas III e V10,17,21,26,27. De acordo com os autores, tais achados podem ser justificados por respostas cocleares mais rápidas no sexo feminino, as quais influenciariam na precocidade observada no tronco encefálico28,29.
A grande maioria dos sujeitos avaliados apresentou diferença interaural da onda latência absoluta da onda V menor que 0,4 ms. Esses achados corroboram com os relatos de outros autores, os quais referem que em indivíduos com audição simétrica entre as orelhas a diferença interaural da onda V não é maior que 0,4 ms13,18,19. Os resultados obtidos foram semelhantes aos encontrados em crianças e adultos, o que sugere que a simetria de respostas é independente da idade18.
Os valores médios, considerando o desvio padrão, verificados para as latências absolutas e interpicos das ondas I, III e V foram semelhantes aos obtidos por outros estudos realizados com recém-nascidos termos e prematuros e com parâmetros similares ao do presente estudo2,9,18-20,30,31. No entanto, os valores observados nos prematuros diferiram de um trabalho, no qual foram encontradas latências absolutas mais prolongadas na intensidade de 80 dBNA em prematuros avaliados aos 4 meses de idade7.
Cabe ressaltar que as diferenças encontradas na latência de alguns componentes do PEATE em relação aos estudos citados podem estar relacionadas a variações decorrentes da utilização de diferentes equipamentos na realização do exame. Outros autores relatam que o equipamento utilizado é um fator a ser considerado na análise dos dados, garantindo a obtenção de resultados confiáveis e aumentando a precisão diagnóstica32,33. Essa hipótese é confirmada pelo fato de os valores das latências absolutas e interpicos das ondas encontradas nos sujeitos nascidos a termo no presente estudo serem bem próximos aos encontrados no grupo controle de um estudo, o qual foi realizado com indivíduos da mesma faixa etária, o mesmo equipamento e parâmetros similares aos utilizados nesta pesquisa1.
Além disso, ao se considerar os valores mínimos e máximos dos componentes do PEATE analisados, foi observado um alto grau de variabilidade de resultados, o que resulta em uma ampla faixa de valores normais (Tabela 4). Alguns autores também descrevem esse achado entre a população de lactentes termos, prematuros e crianças8,9,30,34. Essa variabilidade pode estar relacionada a diferenças individuais do processo de maturação da via auditiva e à dificuldade em se definir a idade concepcional (idade gestacional acrescida da idade pós-natal) versus idade gestacional do recém-nascido com uma margem de erro mais acurada que ±2 semanas35,36, intervalo este de tempo em que são observadas rápidas alterações dos níveis maturacionais no tempo de transmissão auditiva do neonato, em especial do prematuro16.
Por meio do PEATE é possível avaliar a integridade das vias auditivas desde o nervo auditivo até o tronco encefálico10. Nos lactentes estudados foi possível visualizar a presença das ondas I, III e V em 80 dBNA com valores de latências absolutas e interpicos dentro da normalidade, uma vez que foram semelhantes aos encontrados por outros estudos em lactentes sem alterações auditivas e da mesma faixa etária. Os intervalos interpicos dentro da normalidade somados à presença das ondas I, III e V na intensidade de 80 dBNA com latência absoluta normal sugerem a presença da integridade da via auditiva até o tronco encefálico nos lactentes estudados. Os critérios de inclusão dessa pesquisa também justificam esse achado, pois além de terem sido descartadas alterações auditivas de origem periférica, sabe-se que a incidência de alterações centrais em lactentes sem indicadores de risco para perda auditiva é pequena.
Ao estudar o PEATE de prematuros outros autores também verificaram um aumento da latência absoluta e dos intervalos interpicos em relação aos nascidos a termo e relatam que essas variáveis sofrem influência do processo maturacional do sistema auditivo7,18,19. Entretanto esse achado difere de um estudo no qual foram avaliados prematuros com idade gestacional entre 33 e 36 semanas e não foram encontradas diferenças significantes para as latências absolutas e interpicos quando comparados aos termos37.
O aumento da latência absoluta observada nos prematuros em comparação com os termos pode estar relacionado ao retardo da condução elétrica por processo de mielinização das estruturas da via auditiva até o tronco encefálico, o qual ainda está em desenvolvimento, o que sugere que o grau de mielinização das fibras nervosas e a imaturidade das vias auditivas afeta as latências das ondas7,18. Essa hipótese é confirmada pelo atraso global verificado nas latências absolutas e interpicos dos lactentes avaliados em comparação com os valores de referência para a população adulta, bem como pela correlação inversa verificada entre idade gestacional e latências absolutas. O aumento das latências foi ainda mais pronunciado nos lactentes prematuros, uma vez que essa população se encontra em etapas anteriores do processo maturacional quando comparado aos termos, pois este processo é dependente da idade gestacional. Tal fato também foi relatado em outros estudos7,15,19,20.
Em relação aos intervalos interpicos, o atraso no tempo de condução central em comparação à população adulta também pode estar relacionado a mudanças na velocidade de condução neural associada com a mielinização e/ou mudanças na eficiência sináptica dos vários núcleos da via auditiva7,9. A porção do tronco encefálico que contem as vias auditivas triplica de comprimento entre a 21ª semana fetal e o 1º ano de vida, sendo que a via auditiva continua aumentando até por volta do terceiro ano de vida em virtude do aumento do diâmetro do tronco encefálico15. No entanto, os valores dos intervalos interpicos vão diminuindo à medida que as vias ficam mais longas, uma vez que estas continuam se especializando em sua função após o nascimento, aumentando a velocidade de condução em um ritmo que compensa exatamente o crescimento físico da via auditiva15,38.
Pela correlação inversa observada entre idade gestacional e latências absolutas verificou-se que com o aumento da idade gestacional e consequentemente da maturação do sistema auditivo central ao nível do tronco encefálico ocorre uma diminuição contínua das latências absolutas de todas as ondas nos lactentes termos e prematuros. Essa diminuição está relacionada à progressiva mielinização das estruturas do sistema nervoso central, aumento do diâmetro axonal, o aprimoramento da sincronia da atividade neural, estabelecimento de conexões estruturais efetivas e maior funcionalidade das sinapses, todas decorrentes do progresso maturacional do sistema auditivo central. Esses processos acarretam a melhora da morfologia e a redução da latência dos componentes dos potenciais evocados auditivos7,20,34,38. Outros estudos também relatam uma diminuição sistemática das latências em função do aumento da idade7,12,17,18,20,30. Dessa forma, conclui-se que a idade gestacional é um fator a ser considerado na interpretação do PEATE de neonatos e lactentes.
Alguns estudos relatam que o desenvolvimento e a maturação do sistema auditivo periférico, o qual engloba as orelhas externa e média, cóclea e oitavo nervo (sítio gerador da onda I), estão completos ao redor de 24 semanas gestacionais e que esse sistema apresenta-se totalmente formado ao nascimento39,40. O aumento observado na latência da onda I nos RNPT quando comparados aos termos e adultos e a correlação inversa entre latência absoluta da onda I e idade gestacional fornecem evidências de um processo de desenvolvimento coclear e mielinização contínua do nervo auditivo, que continuam a ocorrer após o nascimento no RNPT. Já nos RNT, por terem sido encontrados valores de latência absoluta da onda I semelhantes aos de normalidade para adultos, verifica-se que a maturação do sistema auditivo periférico já estava completa ao nascimento ou logo nas semanas seguintes.
Embora tenha sido observada uma diminuição da latência absoluta da onda I em função da idade gestacional para os lactentes termos e prematuros, os valores médios observados para a latência absoluta dessa onda na intensidade de 80 dBNA nos sujeitos termos foram similares aos valores estabelecidos para adultos na literatura10,13,17,32. Nos lactentes prematuros os valores da latência absoluta da I estavam levemente aumentados, porém ainda assim eram próximos aos encontrados em indivíduos com idade superior a 24 meses. Já os valores das ondas III e V foram significativamente maiores nos lactentes avaliados em comparação com os valores de referência para adultos.
Diante do exposto, verificou-se que a maturação da onda I ocorre mais rápido e encontra-se completa ao nascimento ou logo nas semanas seguintes, considerando-se o parto a termo. As estruturas geradoras da onda III e principalmente da onda V são mais centrais e sofrem influência do processo maturacional por mais tempo, equiparando-se aos dos adultos por volta do segundo ano de vida7,12,14,15,39,40. Conclui-se então que a maturação da via auditiva até o tronco encefálico segue o sentido caudorostral conforme descrito por Eggermont41 e Zimmerman et al.30, sendo a via periférica mais precoce e a rostral mais tardia.
A partir da análise dos dados do presente estudo e diante da grande importância do PEATE no diagnóstico de alterações auditivas em crianças, é recomendado que em cada serviço sejam estabelecidos dados normativos para a população pediátrica levando-se em consideração variáveis como sexo, equipamento e idade gestacional. Tais dados devem ser utilizados como referência na análise dos resultados de crianças pequenas, possibilitando a diferenciação entre respostas esperadas e alteradas em cada faixa etária.
CONCLUSÃOA partir da análise dos resultados foi possível verificar que a maturação do sistema auditivo influencia as respostas do potencial evocado auditivo de tronco encefálico da população de lactentes. Dessa forma, para aprimorar a precisão diagnóstica e evitar interpretações equivocadas dos resultados, deve-se considerar a idade gestacional na análise dos resultados desse teste em neonatos e lactentes.
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1. Mestrado, Fonoaudióloga, Mestre em Saúde da Criança e do Adolescente. Centro de Investigação em Pediatria (CIPED), Faculdade de Ciências Médicas (FCM), Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP)
2. Doutorado, Fonoaudióloga. Professora Doutora e Coordenadora do Curso de Fonoaudiologia da Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP
Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP.
Endereço para correspondência:
Raquel Leme Casali
Rua José Antônio Marinho 417 Barão Geraldo
Campinas SP 13084-783.
Tel. (0xx19) 3722-2602 / (0xx19) 9117-1077
E-mail: rlcasali@gmail.com
Este artigo foi submetido no SGP (Sistema de Gestão de Publicações) da BJORL em 7 de dezembro de 2009. cod. 6823
Artigo aceito em 5 de maio de 2010.
CNPq - Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico.