INTRODUÇÃOO câncer da laringe constitui 2% dos casos de câncer no Brasil, com a estimativa de 9.320 casos novos no ano de 2009, segundo o Instituto Nacional de Câncer-INCA1.
O carcinoma epidermoide é o tipo histológico mais comum e, apesar dos sintomas precoces, ainda é frequentemente diagnosticado em estádio avançado. O atraso no diagnóstico e no tratamento pode ser dividido em etapas. A primeira etapa, até chegar ao atendimento especializado, foi influenciada tanto pelo paciente que negligencia seus sintomas como pelo atraso no atendimento primário. Outra etapa consiste no diagnóstico e no tratamento propriamente dito. Embora o tempo gasto na primeira etapa seja habitualmente maior, sendo responsabilizado pelo estádio avançado da doença, a demora em iniciar o tratamento também pode proporcionar um resultado pior2,3. O presente estudo procura averiguar o tempo despendido a partir do atendimento especializado até o início do tratamento, bem como sua relação com algumas características clínicas e epidemiológicas dos pacientes atendidos em um serviço público de referência.
MATERIAL E MÉTODOO estudo é uma série de casos retrospectiva, com revisão dos prontuários de 272 pacientes com carcinoma epidermoide de laringe, atendidos consecutivamente entre janeiro de 1996 e dezembro de 2004. Foi avaliado o intervalo de tempo entre a primeira consulta no departamento de cirurgia de cabeça e pescoço e o início do tratamento cirúrgico ou radioterápico, assim como sua relação com características clínicas e epidemiológicas, incluindo estadiamento, gênero, idade, escolaridade e naturalidade. Adicionalmente, foi avaliada a demora do tratamento em diferentes momentos (triênios). A variável quantitativa contínua (tempo) não apresentou distribuição normal, confirmada pelo teste de Kolmogorof-Smirnoff, assim foram empregados os testes não-paramétricos de Mann-Whitney e Kruskal-Wallis, considerando significativas as diferenças com p<0,05. Os intervalos de tempo foram expressos em medianas, quartis e percentis. O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da instituição sob o registro 659.
RESULTADOOs pacientes apresentaram idade média de 58 anos (36 a 83 anos), sendo 237 masculinos e 35 femininos. O tempo de queixa teve mediana de 6 meses. Quarenta e sete por cento eram naturais do estado de São Paulo, 70% eram analfabetos ou tinham primeiro grau incompleto e 63% apresentavam tumor primário avançado (T3 ou T4). Quanto ao tratamento, 132 se submeteram à cirurgia e 85 à radioterapia. Cinquenta e cinco pacientes não foram acompanhados, sendo que 19 pacientes não foram tratados com cirurgia ou radioterapia por falta de condições clínicas, recusa ou óbito. Vinte e sete pacientes não retornaram para tratamento, outros seis foram encaminhados para radioterapia e não retornaram para o seguimento programado e três pacientes optaram por realizar o tratamento em outra instituição.
Entre os 217 pacientes tratados, o intervalo de tempo entre a primeira consulta e o início do tratamento variou de 1 a 347 dias, com mediana de 49 dias. Para o tratamento radioterápico, a mediana foi de 58 dias, enquanto que para cirurgia foi de 43 dias (Figura 1). Quanto à naturalidade, os pacientes naturais do estado de São Paulo demoraram a mediana de 47 dias para iniciar o tratamento, enquanto que os naturais de outros estados ou países demoraram 53 dias (Figura 2, p=0,49). Os pacientes analfabetos ou com primeiro grau incompleto demoraram 51 dias, enquanto que aqueles com primeiro grau completo ou maior escolaridade demoraram a mediana de 46 dias (Figura 3, p=0,33). Em relação ao estadiamento, os pacientes com tumores T1 ou T2 apresentaram demora de 47 dias enquanto os T3 ou T4 demoraram a mediana de 49 dias para iniciar o tratamento (Figura 4, p=0,28). Nos diferentes triênios analisados, entre 1996 e 1998 a mediana foi de 54 dias, entre 1999 e 2001 foi de 42 dias e entre 2002 e 2004 foi de 52 dias (Figura 5, p=0,09). Os pacientes masculinos tiveram espera mediana de 48 dias e os femininos 53 dias (p=0,29). Quanto à faixa etária, também não foi observada diferença na espera para o tratamento (Figura 6, p=0,24).
Figura 1. Tempo entre a primeira consulta e início do tratamento de acordo com a modalidade terapêutica.
Figura 2. Tempo entre a primeira consulta e início do tratamento de acordo com a naturalidade.
Figura 3. Tempo entre a primeira consulta e início do tratamento de acordo com a escolaridade.
Figura 4. Tempo entre a primeira consulta e início do tratamento de acordo com o estádio T.
Figura 5. Tempo entre a primeira consulta e início do tratamento nos diferentes triênios.
Figura 6. Tempo entre a primeira consulta e início do tratamento de acordo com a faixa etária.
DISCUSSÃOO diagnóstico das neoplasias malignas da laringe é baseado no exame anatomopatológico. Como as biópsias destas lesões exigem a realização de endoscopia ou laringoscopia direta, o diagnóstico definitivo geralmente é firmado pelo especialista. No período analisado, a quase totalidade das biópsias foi realizada por laringoscopia direta, realizada sob anestesia geral, o que pode ter contribuído para aumentar o tempo pré-tratamento. Em relação ao tratamento radioterápico, não disponível na instituição, o tempo reflete também o encaminhamento a outro serviço, porém com o paciente estadiado e com diagnóstico histológico. Não é objetivo do estudo a comparação do tempo despendido entre as duas opções terapêuticas, e sim constatar o tempo para tratamento em pacientes que chegam ao serviço especializado. Segundo Primdahl et al., atualmente são solicitados mais exames de imagem e a radioterapia tem planejamento mais complexo, porém cita a disponibilidade de equipamento (acelerador linear) como fator preponderante no maior atraso observado para o início do tratamento, que na Dinamarca aumentou de 50 para 70 dias entre 1992 e 20022. Estes autores estimaram que o acréscimo de 20 dias poderia reduzir em 10% as taxas de controle2. Brouha et al. reportaram intervalo mediano de 49 dias entre a primeira consulta em uma clínica especializada na Holanda e o início do tratamento, sendo que este intervalo foi maior nos tumores da laringe4. Indiscutivelmente, a espera pelo tratamento depende da disponibilidade de recursos humanos e materiais, dependendo da infraestrutura de um centro cirúrgico ou de radioterapia. Em um hospital geral, especialmente quando os recursos são limitados, as prioridades de tratamento também podem gerar conflitos. Em um sistema que funciona no limite da capacidade, pequenas variações sazonais na incidência da doença ou indisponibilidade temporária do equipamento podem refletir acentuadamente neste intervalo de tempo. Apesar da complexidade crescente do atendimento, que atualmente incorpora multidisciplinaridade e padroniza maior quantidade de métodos complementares, muitas etapas podem ser realizadas simultaneamente, o que permite que o preparo do paciente seja realizado em curto intervalo de tempo. Considerando a busca incessante de ganho terapêutico, deve ser mais valorizada a possibilidade de encurtar a espera pelo tratamento. Este é um objetivo factível, que pode ser atingido com o uso racional dos recursos. Infelizmente a demora no período pré-diagnóstico não está ao alcance de intervenção direta da equipe médica. Embora o tempo de queixa seja geralmente maior do que o atraso no diagnóstico e tratamento, segundo Allison et al., a demora superior a um mês no atendimento primário está significativamente associada a doença em estádio avançado, não sendo observada relação com o tempo de queixa4. Teppo et al. referem o atraso no diagnóstico, e não o tempo de queixa, como determinante da sobrevida doença-específica5. Outros autores também sugerem que o atraso no tratamento pode influenciar o prognóstico destes pacientes, de forma direta ou indireta. Os carcinomas epidermoides podem apresentar diferentes tempos de duplicação tumoral, mas invariavelmente crescem, e o aumento do volume tumoral tem implicações diretas no tratamento cirúrgico ou radioterápico. O crescimento do tumor pode exigir maior ressecção em área nobre, com as suas consequências na reconstrução e na morbidade, podendo até mesmo tornar-se irressecável. Igualmente importante, a taxa de controle da radioterapia está relacionada ao volume tumoral. Kowalski e Carvalho observaram que os pacientes com incremento no estadiamento TNM antes do tratamento tiveram pior resultado, quando pareados com pacientes que mantiveram o estadiamento inicial6. Barton et al., avaliando tumores iniciais da laringe, não observaram influência do tempo pré-tratamento no prognóstico, porém o tempo de espera, avaliado entre a biópsia e o inicio da radioterapia, teve mediana de apenas 24 dias7. Por outro lado, Jensen et al. reportaram aumento mediano de 46% no volume tumoral em 62% dos pacientes que aguardavam o início do tratamento após mediana de 28 dias8. Este último estudo pode ter sobrevalorizado o crescimento tumoral por um viés de seleção dos pacientes, pois foram incluídos apenas os pacientes com exames de imagem repetidos em datas distintas antes do tratamento.
A maioria dos pacientes apresentava baixa escolaridade e doença em estádio avançado. Os resultados demonstram que não houve prioridade de tratamento baseada em características clínicas ou epidemiológicas. Surpreendentemente, o atraso no tratamento foi semelhante ao relatado em um países desenvolvidos2,4. Aproximadamente 10% dos pacientes não retornaram após a primeira consulta, persistindo a dúvida se apenas recusaram o tratamento ou se foram atendidos em outra instituição. O atraso de 49 dias (mediana) para início do tratamento é exagerado, uma vez que metade dos pacientes foi tratada após intervalo de tempo igual ou superior a este. Considerando o possível crescimento tumoral neste período, reduzir este tempo pode ter impacto no prognóstico semelhante ou até superior à incorporação de novas tecnologias.
CONCLUSÃOO tempo entre o atendimento inicial com o especialista e o início do tratamento apresentou mediana de 49 dias, similar ao relatado em outros estudos, mas superior ao adequado para um tratamento oncológico.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS1. Instituto Nacional de Câncer-INCA. Tipos de Câncer [Site na Internet]. Disponível em http://www2.inca.gov.br/wps/wcm/connect/ tiposdecancer/site/home/laringe. Acessado em 19 de janeiro de 2010.
2. Primdahl H, Nielsen AL, Larsen S, Andersen E, Ipsen M, Lajer C et al. Changes from 1992 to 2002 in the pretreatment delay for patients with squamous cell carcinoma of larynx or pharynx: a Danish nationwide survey from DAHANCA. Acta Oncol. 2006;45:156-61.
3. Allison P, Franco E, Black M, Feine J. The role of professional diagnostic delays in the prognosis of upper aerodigestive tract carcinoma. Oral Oncol. 1998;34:147-53.
4. Brouha XD, Tromp DM, Koole R, Hordijk GJ, Winnubst JA, Leeuw JR. Professional delay in head and neck cancer: analysis of the diagnostic pathway. Oral Oncol. 2007;43:551-6.
5. Teppo H, Koivunen P, Hyrynkangas K, Alho OP. Diagnostic delays in laryngeal carcinoma: professional diagnostic delay is a strong independent predictor of survival. Head Neck. 2003;25:389-94.
6. Kowalski LP, Carvalho AL. Influence of time delay and clinical upstaging in the prognosis of head and neck cancer. Oral Oncol. 2001;37:94-8.
7. Barton MB, Morgan G, Smee R, Tiver KW, Hamilton C, Gebski V. Does waiting time affect the outcome of larynx cancer treated by radiotherapy? Radiother Oncol. 1997;44:137-41.
8. Jensen AR, Nellemann HM, Overgaard J. Tumor progression in waiting time for radiotherapy in head and neck cancer. Radiother Oncol. 2007;84:5-10.
1. Doutorado - UNIFESP, Cirurgião de Cabeça e Pescoço - Hospital Heliópolis
2. Mestrado - HOSPHEL, Cirurgiã de cabeça e Pescoço - Hospital Heliópolis
3. Doutorado - USP, Cirurgião de Cabeça e Pescoço - Hospital Heliópolis
4. Livre Docência - USP, Cirurgião de Cabeça e Pescoço - Hospital Heliópolis
Hospital Heliópolis.
Endereço para correspondência:
Ali Amar
Rua Casa do Ator 764/31
04546-003 São Paulo SP
Este artigo foi submetido no SGP (Sistema de Gestão de Publicações) do BJORL em 4 de dezembro de 2009. cod. 6816.
Artigo aceito em 12 de julho de 2010.