INTRODUÇÃOA sialometaplasia necrosante (SN) é doença inflamatória e rara que acomete mais comumente as glândulas salivares menores do palato duro e possui importância clínica pela possibilidade de simular neoplasias malignas, como os carcinomas mucoepidermóide e epidermóide1,2. No entanto, a maior evidência de sua natureza benigna é a evolução espontânea para a cura, geralmente entre 3 e 12 semanas, além da ausência de recidivas3,4.
Recentemente, observamos um caso de sialometaplasia necrosante em mulher de 70 anos e resolvemos publicá-lo em vista de sua relativa raridade e da apresentação atípica, como forma cística em assoalho da boca. Além disso, chamamos a atenção dos cirurgiões para essa lesão que, embora simule uma entidade maligna, tem evolução benigna, curando-se espontaneamente.
REVISÃO DE LITERATURAA entidade foi inicialmente descrita por Abrams e cols. em 19735 e apresenta-se mais comumente como nódulo ulcerado do palato duro em todas as regiões onde haja glândula salivar6. Seu pico de incidência é dos 45 aos 55 anos, mas já foi relatada em pacientes entre os 14 e os 83 anos3. Não há predomínio racial e, aparentemente, ocorre mais no sexo masculino, com relação 2,3:13. A sua etiologia permanece desconhecida, todavia fatores como tabagismo, etilismo, trauma ou mesmo infecção tenham sido aventados. Para a maioria dos autores3,4, o infarto das glândulas salivares menores parece ser a causa mais provável, embora haja divergências.
APRESENTAÇÃO DO CASO CLÍNICOPaciente do sexo feminino, branca, de 70 anos de idade, previamente sadia, procurou médico com queixa de aparecimento há uma semana de massa em assoalho da boca, de crescimento rápido, indolor, sem febre, sem outras alterações associadas.
Ao exame físico, observou-se nódulo endurecido, no assoalho da boca, em topografia de glândula salivar sublingual à direita, inelástica, sem adesão aos planos profundos e sem ulceração. Não havia nódulos à palpação cervical. Exames laboratoriais de rotina sem quaisquer alterações. À ultra-sonografia da região, sob suspeita de calculose em ducto salivar, notou-se lesão de características císticas em glândula salivar sublingual direita. Com base neste quadro, foi sugerida cirurgia para retirada do nódulo. Durante o ato cirúrgico, observou-se massa cística, não encapsulada, endurecida, de fácil dissecção acometendo topografia da glândula salivar sublingual direita. Toda a lesão foi ressecada e enviada para exame anatomopatológico.
Exame Anatomopatológico
Macroscopia
Estrutura nodular de formato piramidal pesando 3g e medindo 3 x 2,2 x 1,3 cm, apresentando superfície externa lobulada, de coloração pardo-escura, de consistência cística. A superfície de corte demonstra tecido em parte negro, aparentemente hemorrágico e em parte pardo-amarelado.
Microscopia
Glândula salivar menor apresentando cavidade revestida por epitélio escamoso estratificado sem atipias e contendo sangue (Figuras 1 e 2) ao lado de extensas áreas de hemorragias recente e antiga em meio a tecido conjuntivo fibroso, muitas vezes hialinizado contendo ductos revestidos por epitélio escamoso estratificado sem atipias circundados por moderado infiltrado inflamatório linfocitário (Figura 3). O epitélio escamoso forma blocos sólidos ou trabéculas de padrão infiltrativo (Figura 4).
Figura 1. Glândula salivar menor apresentando cavidade contendo sangue (HE, 32x);
Figura 2. Cavidade revestida por epitélio escamoso estratificado sem atipias (HE, 100x);
Figura 3. Ducto revestido por epitélio escamoso metaplásico sobre membrana basal espessada e circundado por moderado infiltrado inflamatório linfocitário (HE, 200x);
Figura 4. Epitélio escamoso sem atipias formando blocos e trabéculas infiltrativos lembrando carcinoma epidermóide invasivo (HE, 400x).
Diagnóstico: sialometaplasia necrosante.
A paciente apresentou boa evolução pós-operatória, com cicatrização da ferida cirúrgica trinta dias após. Acompanhada, clinicamente, há um ano, não apresenta evidências de recidiva da lesão. Queixa-se apenas de diminuição de sensibilidade em algumas regiões da língua.
DISCUSSÃOTrata-se de relato de sialometaplasia necrosante acometendo glândula salivar sublingual de paciente idosa, apresentando-se, atipicamente, como massa cística. O diagnóstico foi baseado no exame histopatológico5, uma vez que os achados clínicos não são suficientes para confirmar, com segurança, essa enfermidade. A SN manifesta-se clinicamente por úlceras profundas, indolores, irregulares, com crescimento rápido, podendo estender-se até o osso, simulando um carcinoma escamoso1,2,7. Com freqüência, essas lesões estão cobertas por exsudato inflamatório ou necrótico, comumente circundado por halo eritematoso7. Nós acreditamos que a forma cística da SN, como aqui relatada, seria a fase anterior à ulceração, porém não há dados suficientes para comprovar essa afirmação.
Histologicamente, pode-se observar lóbulos das glândulas seromucosas com metaplasia malpighiana dos canalículos e dos ácinos adjacentes, associados a granuloma inflamatório5. A arquitetura lobular permanece conservada e não se notam atipias citonucleares. Esse quadro é compatível com o observado no presente caso e demonstrado nas figuras 3 e 4.
A maioria dos casos descritos na literatura se localiza nas glândulas salivares menores do palato duro, porém há vários relatos atingindo as glândulas do palato mole8, trígono retromalar8, cavidade nasal e nasofaringe9, seio maxilar10, lábio inferior11,12, mucosa oral8, assoalho da boca8, língua13 e glândulas salivares maiores14,15. A idade de apresentação nos quase 150 casos relatados na literatura variava entre 14 e 83 anos, sendo que, na maioria dos pacientes, a lesão foi diagnosticada durante a 5a e 6a décadas de vida11. Nossa paciente apresentou-se em idade superior a esse pico e em glândula salivar menor sublingual, topografia de menor incidência.
A etiologia da SN permanece ainda desconhecida. De acordo com certos autores, o problema inicial seria vascular16, com isquemia causando necrose dos lóbulos salivares, seguida de metaplasia malpighiana reacional, reação inflamatória e ulceração. As causas dos distúrbios do suprimento sangüíneo poderiam ser decorrentes de tabagismo, etilismo, hiperlipidemia, trauma, clampeamento vascular, embolia, trombose, procedimentos cirúrgicos ou tumores17. Ao que parece, haveria bloqueio ductal por estomatite nicotínica ou isquemia secundária a espasmo arteriolar4 ou, ainda, conseqüência de edema produzido por traumatismo, infecção ou comprometimento intra-operatório. No caso atual, não há história de nenhum desses fatores de risco possíveis.
A evolução da SN é geralmente favorável, sem recorrências7 e não há recomendação terapêutica17. Apesar dessas características benignas, é sempre necessário afastar a possibilidade de carcinoma escamoso. Por essa razão, a biópsia é obrigatória e deverá ser suficientemente generosa para permitir ao patologista demonstrar a preservação do padrão lobular glandular8. A cirurgia serviria nesses casos mais como método diagnóstico que terapêutico.
COMENTÁRIOS FINAISOs autores chamam atenção que a SN pode apresentar-se atipicamente e em localizações incomuns, por isso reafirmam a relevância do diagnóstico diferencial com neoplasias malignas. Ainda mais, frisam a importância de se conhecer melhor essa enfermidade, que, embora relativamente incomum, pode representar grande sofrimento e temor para o paciente e seus familiares.
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1 Médico Anatomopatologista da Associação de Combate ao Câncer do Brasil Central e Professor Adjunto de Endocrinologia da Faculdade de Medicina do Triângulo Mineiro (FMTM).
2 Acadêmicos de Medicina da FMTM.
3 Médico Otorrinolaringologista.
Trabalho realizado na Faculdade de Medicina do Triângulo Mineiro
Endereço para correspondência: Dr. Marcus Aurelho de Lima - Disciplina de Endocrinologia - Hospital Escola - Faculdade de Medicina do Triângulo Mineiro
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Artigo recebido em 29 de junho de 2001. Artigo aceito em 27 de agosto de 2001.