INTRODUÇÃOA saliva exerce papel muito importante na manutenção das funções orais. A perda ou diminuição do fluxo salivar podem dificultar o exercício de funções como mastigação, fala e deglutição e está associada com um impacto negativo na qualidade de vida do paciente. A habilidade das glândulas salivares em concentrar iodo as torna potenciais alvos durante e após a iodoterapia1.
Complicações agudas graves com a iodoterapia são extremamente raras. Entretanto, efeitos colaterais a médio e longo prazos são bem descritos na literatura como sialodenite, perda temporária do paladar, xerostomia e cáries1-3.
Xerostomia é a sensação de boca seca relatada pelo paciente4. A xerostomia pode ser causada por diversos fatores como doenças locais e sistêmicas, diversos medicamentos, radiação e quimioterapia. Alexander et al.2 e Caglar et al.5 relataram taxas de xerostomia associadas à iodoterapia tão altas quanto 42.9% e 54%, respectivamente, normalmente 1 ano após a terapia. Nossos estudos têm mostrado que 11.2% dos pacientes submetidos à iodoterapia têm persistido com queixas de xerostomia durante todo o dia (dados não publicados).
O tratamento da xerostomia é difícil e pode ser alcançado com o alívio sintomático pela administração de gomas de mascar sem açúcar, hidratação frequente, substitutos salivares e sialogogos. A pilocarpina é um agente parassimpatomimético com propriedades β-adrenérgicas que estimula os receptores colinérgicos na superfície das glândulas exócrinas, causando uma redução nos sintomas de xerostomia. Efeitos adversos graves são raros com o uso da pilocarpina, mas efeitos colaterais como sudorese, aumento da frequência urinária e rubor são comuns, com intensidade tipicamente média a moderada por um período curto de duração6.
O objetivo deste estudo piloto é descrever a eficácia e a viabilidade da pilocarpina no tratamento de xerostomia em pacientes submetidos à iodoterapia.
PACIENTES E MÉTODOSEste artigo é parte de um grande estudo transversal retrospectivo, com coleta prospectiva de alguns dados, que teve por critérios de inclusão: pacientes tratados por carcinoma bem-diferenciado de tireoide, submetidos ou não à iodoterapia adjuvante entre 1997 e 2006, em seguimento no ambulatório de Cirurgia de Cabeça e Pescoço do Hospital A. C. Camargo, para avaliação de possíveis efeitos colaterais da iodoterapia sobre a função das glândulas salivares. Quatrocentos pacientes, que preencheram os critérios de inclusão, foram convidados e destes, 184 pacientes aceitaram participar do estudo e assinaram o termo de consentimento aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Instituição (processo n° 762/06). Cento e oitenta pacientes eram portadores de carcinoma papilífero e somente 4 pacientes eram portadores de carcinoma folicular. A média de idade dos pacientes foi de 49.9 anos e a idade mediana de 49 anos (25-89 anos). Cento e oito (58.7%) pacientes foram submetidos à iodoterapia adjuvante. Setenta e oito (42.4%) pacientes faziam uso de algum tipo de medicação xerostômica (anti-hipertensivo, anti-histamínico, antidepressivo). Todos os pacientes foram submetidos à sialometria e cintilografia de glândulas salivares.
Sialometria foi realizada como descrito por Koseki et al.7, e saliva total não estimulada foi coletada em tubo Falcon de 15 ml por 5 minutos e o volume total divido por 5 para se obter o fluxo em ml/min. Para o fluxo salivar total estimulado foi fornecido ao paciente uma pastilha de ácido cítrico (Cewin®, Sanofi-Synthelabo, Brasil), o mesmo foi orientado a não mastigar a pastilha, e a saliva coletada com a mesma técnica descrita anteriormente. Os parâmetros de normalidade adotados foram baseados nos dados publicados por Jensen et al. (fluxo não-estimulado > 0.3 ml/min; estimulado > 1.5 ml/min)4.
Para verificar a eficácia da pilocarpina no tratamento da xerostomia em pacientes submetidos à iodoterapia, adotaram-se os seguintes critérios de inclusão: pacientes submetidos à iodoterapia adjuvante apresentando ao mesmo tempo 1-queixa de xerostomia, 2-valores anormais de fluxo salivar à sialometria4 e 3-disfunção à cintilografia de glândulas salivares pela análise visual. Pacientes que apresentassem contraindicações para o uso da pilocarpina como asma, hipertensão, doenças cardíacas e glaucoma de ângulo fechado não participariam do estudo. Pressão arterial foi aferida antes do início do tratamento, o qual consistiu na administração de 5 mg de pilocarpina 3 vezes ao dia como recomendado pela literatura6, principalmente antes das refeições e a noite, durante 1 semana. Os pacientes preencheram um questionário controle sobre os efeitos colaterais e relataram todos os sintomas durante 7 dias.
RESULTADOSDos 108 pacientes submetidos à iodoterapia adjuvante, 65.4% (70 pacientes) relataram xerostomia pelo menos um período do dia e 11.2% (12 pacientes) durante todo o dia. Destes 70 pacientes, somente 9 pacientes preencheram os critérios de inclusão para o protocolo de tratamento com pilocarpina. A média de idade dos pacientes foi 52.1 anos e a idade mediana 56 anos (36-65 anos). A dose média de iodo recebida durante a iodoterapia foi de 150 mCi (100-450 mCi). Destes nove pacientes, quatro não foram incluídos no estudo. Um paciente não aceitou participar do protocolo, e três pacientes apresentaram hipertensão arterial não controlada. Os dados dos pacientes incluídos no protocolo de pilocarpina estão sumarizados na Tabela 1.
O efeito colateral mais comumente relatado pelos pacientes foi a sudorese, afetando 4 dos 5 pacientes. Cansaço e dor de cabeça foram relatados por 3 dos 5 pacientes. Aumento da frequência urinária, lacrimejamento, calafrios, tontura e náusea foram constatados em 2 dos 5 pacientes. Alterações na pressão arterial e taquicardia foram observados em um mesmo paciente. Avaliando o alívio da xerostomia após o uso da pilocarpina, dois pacientes relataram melhora significativa na sensação de boca seca, mas um deles apresentou diversos efeitos colaterais considerando o uso por longo período inaceitável.
DISCUSSÃODiferentemente da radioterapia externa, a iodoterapia com I131 não destrói completamente a habilidade das glândulas salivares em produzir saliva, preservando assim parênquima funcionante para responder a estímulos. Xerostomia é relatada estar presente em 11 a 54% dos pacientes submetidos à iodoterapia2,5. Como os tumores bem-diferenciados de tireoide apresentam um bom prognóstico, a redução dos efeitos colaterais tardios da iodoterapia é essencial para manter a qualidade de vida destes pacientes.
Ao contrário da radioterapia externa, a qual apresenta diversos estudos mostrando a eficácia da pilocarpina no estímulo das glândulas salivares8-15, faltam estudos na literatura mostrando a eficácia da pilocarpina para aliviar os sintomas de xerostomia associada à iodoterapia. Silberstein16 publicou resultados com o uso de 5 mg de pilocarpina de 8 em 8 horas em um estudo cego, controlado com 60 pacientes por uma semana logo após a iodoterapia na tentativa de prevenir a ocorrência de sialodenite associada ao I131. Este estudo mostrou que a pilocarpina não reduz a ocorrência de sialodenite causada pelo iodo radioativo. Estes resultados confirmam dados publicados por Alexander et al.2 dez anos atrás, o qual não observou diferença significativa entre pacientes que receberam pilocarpina durante a iodoterapia e aqueles que não receberam.
Objetivando mostrar uma outra aplicação da pilocarpina, Aframian et al.17 publicaram um estudo mostrando a eficácia de uma única dose de 5 mg de pilocarpina para aumentar fluxo salivar não-estimulado e estimulado em cinco pacientes portadores de câncer de tireoide submetidos à iodoterapia adjuvante há pelo menos 3 meses antes da realização do estudo. Os resultados mostraram significante aumento do fluxo salivar não-estimulado e estimulado em quatro pacientes, sem alterações significativas das pressões sistólica e diastólica, pulso e temperatura corporal. Até o momento, não há na literatura estudos utilizando a pilocarpina como tratamento a longo prazo para alívio da xerostomia associada à iodoterapia, nem avaliando a tolerabilidade deste medicamento nestes pacientes.
CONCLUSÕESO presente estudo mostra resultados não favoráveis ao uso da pilocarpina como tratamento de rotina para estes pacientes. Os efeitos colaterais com 3 doses de 5 mg ao dia por uma semana não foram bem tolerados por pacientes com câncer de tireoide e o uso desta medicação não deve ser recomendado, visto que os benefícios não sobrepujam os efeitos colaterais.
AGRADECIMENTOSFundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo - FAPESP pelos financiamentos 05/60474-0 e 06/50061-2.
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1. Doutora, Estomatologista.
2. Livre Docente, Diretor do Departamento de Cirurgia de Cabeça e Pescoço e Otorrinolaringologia, Hospital A. C. Camargo.
Hospital A. C. Camargo
Endereço para correspondência:
Luiz Paulo Kowalski
Hospital A.C. Camargo Departamento de Cirurgia de Cabeça e Pescoço e Otorrinolaringologia
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FAPESP - Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo processos 05/60474-0 e 06/50061-2
Este artigo foi submetido no SGP (Sistema de Gestão de Publicações) da BJORL em 9 de novembro de 2009. cod. 6777
Artigo aceito em 31 de janeiro de 2010