INTRODUÇÃOA utilização de cadáveres para aprendizado e treinamento médico teve início em 500 a.C. e sua história caminhou paralelamente ao aparecimento e desenvolvimento do que hoje conhecemos como Medicina. Por muitos anos a prática foi proibida por questões religiosas e éticas, mas foi após o Renascimento com Leonardo da Vinci, Michelangelo e Andreas Vesalius que a anatomia humana e os métodos de dissecção foram consolidados1.
O estudo em cadáveres é fundamental em faculdades de medicina, enfermagem, fisioterapia e outras áreas da saúde. O treinamento de técnicas operatórias em cadáveres também tem importante papel na formação e aprimoramento de cirurgiões. A legislação brasileira vigente, através da Lei no. 8.501 de 30 de novembro de 1992, determina que somente o cadáver não reclamado junto às autoridades públicas no prazo de 30 dias pode ser destinado para fins de ensino e pesquisa2.
O treinamento em laboratório da dissecção do osso temporal já é realizado rotineiramente para o aprendizado da anatomia cirúrgica e para a formação de otorrinolaringologistas, estando de acordo com a teoria de Fitts e Posner para aquisição de habilidades motoras3.
Assim, se de um lado temos a limitação legislativa e a dificuldade de obtenção de cadáveres, por outro temos a necessidade de desenvolvimento de novas técnicas de ensino como a criação de simuladores e treinamento em ambientes virtuais.
O objetivo deste projeto foi desenvolver uma réplica de osso temporal, com fidelidade anatômica adequada, para realização de treinamento de dissecção em laboratório.
MATERIAIS E MÉTODOSO projeto foi analisado e aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa através do protocolo 054/09.
Como modelo primário foi utilizado um osso temporal do lado esquerdo adquirido junto ao Serviço de Verificação de Óbitos (SVO) de São Paulo, através do ofício no. 18/2008.
Após a devida limpeza da peça, foi realizada ampla mastoidectomia com identificação do seio sigmoide, tégmen mastoide, nervo facial na porção vertical e canal semicircular lateral. Após broqueamento da parede posterior do conduto auditivo foram retiradas a membrana timpânica e a cadeia ossicular. (Figura 1)
Figura 1. Osso temporal humano após ampla mastoidectomia.
Através de técnicas de moldagem com a utilização de silicone de alta fidelidade e acrílico termopolimerizante (Reg. ANVISA 10234680006) foram confeccionados três módulos (principal, sistema tímpano-ossicular e complexo mastoide) para posterior montagem. A membrana timpânica foi feita com papel vegetal. Ressaltamos que a técnica para realização do complexo mastoide foi modificada a fim de se obter um material poroso, similar à pneumatização desta região do osso temporal. (Figuras 2 e 3)
Figura 2. Módulo principal e sistema tímpano-ossicular.
Figura 3. Módulo do complexo mastoide.
Antes da montagem dos três módulos foi realizada pintura com tinta acrílica de algumas estruturas, a saber: (Figura 4)
Figura 4. Simulador cirúrgico.
- azul: seio sigmoide
- vermelho: tégmen mastoide
- amarelo: porção mastoide do nervo facial e meato acústico interno
Para a avaliação do simulador foram selecionados cinco cirurgiões otológicos com experiência para realização de dissecção experimental e posterior preenchimento de questionário, levando em consideração a aparência externa, a simulação de procedimentos (colocação de tubo de ventilação, mastoidectomia, descompressão da porção mastoide do nervo facial e acesso translabiríntico ao meato acústico interno) e a impressão final. Os procedimentos citados foram realizados em um laboratório de cirurgia experimental, com equipamentos rotineiramente utilizados para dissecção de ossos temporais.
RESULTADOSAs opiniões dos cirurgiões são observadas na Tabela a seguir. Cada marca (*) representa a opinião de cada cirurgião. (Tabela 1)
DISCUSSÃOAté 1992 havia carência de leis que regulamentassem a utilização de cadáveres para fins acadêmicos. Diversos problemas eram enfrentados pelas instituições de ensino médico para obtenção de corpos de indigentes4. As já conhecidas questões éticas e religiosas barravam a doação de cadáveres não identificados pelos estabelecimentos hospitalares5. Aspectos financeiros, como a concessão de auxílio-funeral pela Previdência Social, também dificultavam este processo5.
A Lei no. 8.501 de 30 de novembro de 1992 disciplina as condições da destinação de cadáveres para ensino e pesquisa. Os cadáveres não identificados e não reclamados junto às autoridades públicas num prazo de trinta dias poderão ser encaminhados para instituições de ensino. Em caso de identificação, porém sem informações de parentes ou responsáveis legais, a autoridade competente deverá publicar notícia de falecimento nos principais jornais da cidade por pelo menos dez dias, a título de utilidade pública. Não poderão ser encaminhados os corpos com suspeita de morte não natural ou de ação criminosa. Além disso, a lei define que para fins de reconhecimento, a autoridade ou instituição responsável manterá sobre o falecido informações relativas às características gerais, fotos, ficha datiloscópica e identificação, se houver2.
Porém, sabendo que o cadáver só é doado após trinta dias e que muitas vezes ele não é formalizado em até 72 horas post-mortem, o processo de degeneração impossibilita sua utilização6. Além disso, temos observado a disseminação de faculdades de medicina e de outras áreas da saúde, o que aumenta ainda mais a demanda por cadáveres.
Estes fatores, aliados à constante pressão por melhores resultados, obrigam os educadores a pesquisarem novas ferramentas de treinamento para cirurgiões7. Desse modo, simuladores sintéticos e baseados em ambientes virtuais estão sendo desenvolvidos para compensar a deficiência de cadáveres8,9.
A teoria de Fitts e Posner demonstra que o aprendizado é um processo interno do ser humano, dependente da prática e que tende a ser permanente. Este processo ocorre em três estágios - cognitivo, associativo e autônomo - onde, conforme o indivíduo avança em seu treinamento, melhor se tornam seus resultados, sua consistência, com menor número de erros e aumento da capacidade de identificar e corrigir problemas3.
O treinamento em simuladores, assim como a dissecção convencional, pode separar a aquisição de habilidades da prática médica assistencial10. Na área de otologia, já foi desenvolvido um simulador virtual de dissecção do osso temporal (VOXEL-MAN Temposurg Simulator) que permite visualização tridimensional de tecidos e oferece resposta sensitiva ao operador (resistência, direções, velocidade da broca). Zirkle et al.11 acreditam que o uso deste equipamento tem o potencial de melhorar as habilidades dos residentes em otorrinolaringologia. Porém, o equipamento não oferece possibilidade de utilização dos materiais de rotina na cirurgia otológica, tais como microscópio, aspirador e micromotor. Além disso, seu alto custo dificulta a disseminação na sua utilização.
O presente estudo pretende demonstrar que este simulador possibilita o treinamento de dissecção do osso temporal em laboratórios convencionais, já que possui fidelidade anatômica adequada e oferece sensação realística do ato cirúrgico. Porém, alguns problemas foram levantados, como a inelasticidade da membrana timpânica, a maior densidade da resina em comparação ao osso temporal e a ausência do nervo facial, já que neste simulador o nervo foi sinalizado apenas com tinta. Apesar destas críticas, que servirão para aperfeiçoamento do simulador, a dissecção foi considerada satisfatória pelos cirurgiões que o analisaram.
CONCLUSÃOA dissecção neste simulador otológico não substitui o treinamento em ossos temporais de cadáveres, porém é uma alternativa promissora para o ensino prático de cirurgia otológica. Com a crescente dificuldade na obtenção de osso temporais naturais, o desenvolvimento de novas ferramentas de ensino deve ser encorajado para o contínuo aprimoramento de cirurgiões.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS1. LYONS A.S.; PETRUCELLI R.J. Medicine: An Illustrated History. Harry N. Abrams; Revised edition. New York, 1997.
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5. ESPÍRITO SANTO, A.M.; THEOPHILO, F.V.; FONSECA, H.; PRATES, J.C.; ANDRADE, O.P.M.; FREIRE,P.S. Uso de cadáveres no estudo de anatomia humana nas escolas da área da saúde. Rev Goiana Med. 1981;27(1/2):107-16
6. WATANABE, I. O Ensino da Anatomia Humana: o dilema da escassez de cadáveres. Jornal da USP, São Paulo; 1998. p.2, 30
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9. OLSZEWSKI, R.; VILLAMIL, M.B.; TREVISAN, D.G.; NEDEL, L. P.; FREITAS, C.M.D.S.;REYCHLER, H.; MACQ, B. Towards an integrated system for planning and assisting maxillofacial orthognathic surgery. Computer Methods and Programs in Biomedicine.2008;91:13-21
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11. ZIRKLE M.; ROBERSON D.W.; LEUWER R.; DUBROWSKI A. Using a virtual reality temporal bone simulator to assess otolaryngology trainees. Laryngoscope. 2007;117:258-63
1. Especialização em Otologia clínica e cirúrgica - UNIFESP, Médico assistente do serviço de Otorrinolaringologia do Hospital do Servidor Público Estadual - IAMSPE.
2. Residente em Otorrinolaringologia do Hospital do Servidor Público Estadual - IAMSPE.
3. Técnico em Próteses Dentárias - Colégio Bernardino de Campos, Sócio-proprietário J&R Laboratório de Próteses Dentárias.
4. Doutor em Otorrinolaringologia - UNIFESP, Coordenador do Internato do Hospital do Servidor Público Estadual - IAMSPE.
Hospital do Servidor Público Estadual - Instituto de Assistência Médica ao Servidor Público Estadual Serviço de Otorrinolaringologia - Diretor Dr. Samir Cahali
Endereço para correspondência:
Rua Dias de Toledo 261 apto 1301 Saúde
04143-030 São Paulo SP Brasil
Este artigo foi submetido no SGP (Sistema de Gestão de Publicações) da BJORL em 16 de setembro de 2009. cod. 6647
Artigo aceito em 16 de dezembro de 2009