INTRODUÇÃOAs infecções nasossinusais são entidades clínicas de alta prevalência. No entanto, complicações secundárias a estas afecções vêm apresentando nítido decréscimo desde o advento da antibioticoterapia1,2,3,4,5. Apesar disso, a alta morbidade e eventual mortalidade associadas às complicações das sinusites justificam a avaliação cuidadosa dos casos de sinusopatias agudas ou crônicas, assim como a pronta investigação quando a evolução clínica não é satisfatória6,7,8,9. Tais complicações podem ser orbitárias, intracranianas ou ósseas6,9,10,11,12. As sinusites agudas parecem ser a causa mais freqüente de infeções orbitárias1,4, assim como responsáveis por 50-75% dos abscessos intracranianos9,13.
As complicações orbitárias das sinusites são conhecidas há mais de 60 anos14. Em 1937, Hubert faz a primeira descrição de um caso de sinusite aguda com complicação orbitária, propondo a primeira classificação de complicações orbitárias de sinusites14, a qual é posteriormente modificada por Smith & Spencer e mais tarde (1970) por Chandler et al1,4,7. Em 1983, Moloney revê a classificação de Chandler, dando maior ênfase à diferenciação entre abscesso e celulite orbitária e, finalmente, em 1997, Mortimer et al propõem a retirada da tromboflebite de seio cavernoso da classificação das sinusites com complicações orbitárias, já que esta é uma afecção central.
A grande importância da sinusite como fonte de infeções orbitárias talvez resida em algumas características anatômicas das cavidades paranasais e orbitárias que parecem facilitar a disseminação de um processo infeccioso, como se segue:
1- presença de delgada lâmina óssea - lâmina papirácea - eventualmente deiscente em alguns pontos, que separa a mucosa do seio etmoidal anterior do conteúdo orbitário;
2- a drenagem venosa dos seios paranasais realizada através de veias não-valvuladas, permitindo livre fluxo sangüíneo entre etmóide, órbita e conteúdo intracraniano;
3- septo orbitário ou fáscia palpebral, o qual é uma deflexão da periórbita, separando o conteúdo pré-septal do espaço pós-septal (envolve a órbita)1,7,8,9.
Dessa forma observamos que as vias de disseminação das sinusites podem ser hematogênicas, por contigüidade e por continuidade1,4,9,11,14,15.
As complicações orbitárias apresentavam taxa de mortalidade de até 17%, na era pré-antibiótica, além de perda visual em outros 20%14. As complicações intracranianas, mesmo atualmente, mantém uma alta taxa de mortalidade (aproximadamente 11%)6,8,9,13,16,17,18,19.
Os objetivos deste estudo são apresentar as características clínicas, radiológicas, tratamento e evolução dos pacientes internados nos últimos 15 anos, na Clínica Otorrinolaringológica do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HC-FMUSP), com diagnóstico de sinusite aguda e complicação orbitária.
CASUÍSTICA E MÉTODOOs autores realizaram um estudo retrospectivo, através da avaliação de dados de prontuário médico de 128 pacientes internados na Divisão de Clínica Otorrinolaringológica do HC-FMUSP, no período de dezembro de 1982 a dezembro de 1997, com diagnóstico de sinusite aguda com complicação orbitária, sendo incluídos apenas os pacientes com acompanhamento ambulatorial de pelo menos 6 meses após a alta hospitalar. Foram excluídos os pacientes com mucocele ou complicações de sinusites crônicas, assim como os pacientes com tromboflebite de seio cavernoso (Chandler V), por ser considerada uma complicação intracraniana.
Os pacientes foram classificados em 4 grupos de acordo com as complicações orbitárias diagnosticadas, conforme a classificação proposta por Chandler et al, 1970. Chandler I- complicações pré-septais; Chandler II- celulite orbitária; Chandler III- abscesso subperiosteal e Chandler IV- abscesso orbitário.
Foram analisados os seguintes dados dos pacientes: sexo, idade, queixa principal e tempo de queixa, exame radiológico (radiografia e tomografia computadorizada), seio paranasal acometido (por avaliação radiológica ou através de descrição de cirurgia), diagnóstico, tratamento clínico ou cirúrgico realizado e evolução.
RESULTADOSEm nosso estudo, a idade variou de 10 meses a 62 anos de idade, com idade média de 17,39 anos. A distribuição dos pacientes segundo a faixa etária foi: 0-10 anos - 28,91% dos pacientes; 11-20 anos - 40,63%; 21-30 anos - 16,41%; 31-40 anos - 4,69% e acima de 40 anos - 9,38% (Figura 1). Setenta e quatro pacientes (57,81%) eram do sexo masculino, perfazendo uma relação masculino:feminino de 1,34:1.
Observou-se que 71 pacientes (55,47%) apresentavam menos de 5 dias de queixa. Os sintomas mais comuns foram: edema periorbitário (118 pacientes - 92,19%), cefaléia (64 casos - 50,00%) e rinorréia (41 pacientes - 32,03%).
Cento e dezenove pacientes (92,97%) foram submetidos a radiografia simples de seios paranasais, enquanto 91 pacientes (71,09%) realizaram tomografia computadorizada de seios paranasais (cortes axiais e coronais) e/ou órbita e/ou crânio. Os nove pacientes (7,30%) que não realizaram radiografia simples de seios paranasais apresentavam quadro clínico característico de complicação pós-septal, tendo sido prontamente submetidos à tomografia computadorizada de seios paranasais e órbita. Trinta e sete pacientes (28,91%) não realizaram tomografia computadorizada de seios paranasais. Todos apresentavam quadro de celulite palpebral, com boa evolução clínica durante a internação.
Os pacientes foram distribuídos conforme o seio paranasal acometido, sendo que esta distribuição é apresentada na Figura 2.
A distribuição dos pacientes segundo a classificação de Chandler para complicações orbitárias é apresentada na Figura 3.
Antibioticoterapia endovenosa foi indicada em todos os pacientes. Em 83 (64,84%) pacientes (47 pacientes Chandler I, 24 Chandler II e 12 Chandler III) houve ótima evolução apenas com tratamento clínico. Em 45 (35,16%) pacientes houve necessidade de abordagem cirúrgica; destes, 14 eram pacientes classificados como Chandler I (22,95% dos pacientes com este diagnóstico), sendo que 13 apresentavam abscesso palpebral e 1 foi submetido à sinusectomia devido à evolução clínica insatisfatória; 6 pacientes com Chandler II (20%); 21 pacientes com Chandler III (63,63%) e 4 pacientes com Chandler IV (100%).
Todos os pacientes evoluíram com melhora significativa ou remissão completa do quadro orbitário e sinusal no momento da alta hospitalar. Sete pacientes (5,47%) apresentaram recorrência da doença após a alta hospitalar, necessitando de nova abordagem terapêutica após a qual apresentaram remissão do quadro, sem novas recorrências. Não houve mortalidade ou casos com seqüelas oftalmológicas detectadas no acompanhamento ambulatorial.
Figura 1. Distribuição dos Pacientes segundo a Faixa Etária
Figura 2. Distribuição dos Pacientes segundo o Seio Paranasal acometido
Figura 3. Distribuição dos Pacientes segundo a Classificação de Chandler para Complicações Orbitárias
DISCUSSÃOConforme observado no presente estudo, há uma alta predominância de acometimento de indivíduos na 1ª e 2ª décadas de vida. Estes dados coincidem com os relatados por diversos autores4,9,11,20, apesar de não ser bem determinado o motivo de tal distribuição. Singh et al21 citam que talvez o grau de pneumatização do osso etmoidal na infância facilitaria a progressão do processo infeccioso, o que justificaria a maior ocorrência de complicações de sinusites agudas na infância e início da adolescência.
O tempo de história dos pacientes (menos de 5 dias em nosso estudo) é uma variável pouco relatada na literatura consultada. Mortimer et al (1997) encontraram um tempo médio de queixas de 8 dias.
Com relação aos sintomas iniciais, nossos achados (edema periorbitário, cefaléia, rinorréia e febre) são compatíveis com os citados por outros autores20,21. Chamamos a atenção para a alta taxa de queixas de abaulamento orbitário nestes pacientes (92,19% em nossa casuística), dados estes citados em outros estudos6,8,12,13,16,17,18,19,21,22.
Para fins de diagnóstico complementar, a radiografia simples de seios paranasais foi realizada em 92,97% dos pacientes, enquanto a Tomografia computadorizada foi solicitada em 71,09% dos pacientes. De acordo com Chandler et al (1970), o diagnóstico das sinusites com complicações orbitárias pode ser feito com radiografia simples de seios paranasais e cuidadosa avaliação clínica. Em estudos mais recentes cita-se a necessidade da tomografia computadorizada de seios paranasais como exame de escolha para o diagnóstico, classificação e acompanhamento desses pacientes4,10,11,14,20,21. Em nosso estudo, os pacientes internados entre 1982 e 1987 com diagnóstico de celulite palpebral e sinusite aguda com boa evolução após tratamento clínico foram aqueles onde a CT de seios paranasais não foi realizada. O uso da ressonância magnética deve ficar reservado para aqueles casos onde após toda a investigação, permaneça a dúvida quanto à afecções potencialmente graves como a tromboflebite de seio cavernoso11,13,17,18.
Os seios paranasais mais freqüentemente envolvidos foram maxilar, etmoidal e frontal, o que foi previamente citado9,10,11,14,15,22.
Os pacientes com complicações orbitárias apresentaram, na maioria dos casos, quadro inicial de celulite palpebral, o que proporcionou a possibilidade de tratamento clínico isolado (antibioticoterapia endovenosa) na maioria dos pacientes com Chandler I (77,05%). Dos pacientes com Chandler I submetidos a procedimento cirúrgico, a drenagem de abscesso palpebral sob anestesia local foi o procedimento mais adotado. A sinusectomia endonasal foi necessária em apenas 1 paciente, sendo indicada após 48 horas de tratamento clínico, quando a evolução não foi considerada satisfatória. Estes dados são compatíveis com os relatados na literatura1,6,7,10,11,15,22.
Abscessos subperiosteais (Chandler III) foram a 2ª complicação mais freqüente. Houve necessidade de tratamento cirúrgico em 63,63% dos pacientes, no entanto 32,32% apresentaram remissão espontânea após tratamento clínico. Estes últimos pacientes apresentaram quadro clínico frusto com relação à presença de possível complicação pos- septal, de tal forma que a realização de CT de seios de paranasais ocorreu tardiamente (24 a 48 horas após a internação). Neste momento, pequenas coleções subperiosteais foram observadas, porém a manutenção do tratamento conservador foi a conduta adotada já que a evolução clínica foi satisfatória. Na verdade há controvérsia na literatura quanto à indicação de cirurgia nestes pacientes. Enquanto alguns autores acreditam haver indicação cirúrgica formal sempre que diagnosticado coleção subperiosteal7,9,21, outros1,6,10,14,22 julgam ser possível a introdução de tratamento clínico conservador em alguns casos, acompanhado de avaliação rigorosa da acuidade visual. Dentre estes últimos autores, Backer (1995) cita a dificuldade em se diferenciar radiologicamente a celulite subperiosteal (onde o tratamento clínico poderia ser satisfatório) dos casos em que há presença de pequenas coleções subperiosteais (onde haveria necessidade de abordagem cirúrgica), tendo sido encontrado em seu estudo uma taxa de 20% de falsos positivos com a tomografia computadorizada. Segundo Backer (1995), além de outros autores1,6,10,14,22, cirurgia deve ser indicada após 48 horas de tratamento se não houver melhora da proptose, quemose ou alteração de mobilidade ocular extrínseca, ou ainda antes, se houver acometimento da acuidade visual. Em nosso Serviço comumente indicamos abordagem cirúrgica precoce nos pacientes Chandler III.
Celulite orbitária (Chandler II) ocorreu em 23,43% dos pacientes, sendo realizada cirurgia em 20% destes pacientes. Tais dados coincidem com o observado em estudos prévios6,10,11,22. Abscesso orbitário (Chandler IV) foi observado em 3,12% dos casos. Nestes, a possibilidade de compressão vascular e isquemia do nervo óptico com conseqüente amaurose leva à necessidade de descompressão cirúrgica urgente11. Isto justifica a indicação de cirurgia em 100% destes casos. O abscesso pode ser conseqüência de organização de celulite orbitária ou ruptura de periórbita em casos de abscesso subperiosteal1,4,6,7,15,18.
Não observamos casos com evolução fatal ou seqüelas tardias em nossos pacientes, a despeito da taxa de morbimortalidade relativamente alta citada na literatura5. Acreditamos que o tratamento clínico intensivo, associado com a indicação cirúrgica precoce nos casos com complicações mais agressivas e/ou com evolução clínica insatisfatória foram dados primordiais para alcançarmos tais resultados.
CONCLUSÃOOs 128 pacientes internados na Divisão de Clínica Otorrinolaringológica do HCFMUSP apresentaram, na maioria das vezes, idade até 20 anos, sexo masculino, queixando-se de abaulamento palpebral, cefaléia e rinorréia, com menos de 5 dias de início do quadro.
Todos os pacientes foram tratados com antibioticoterapia endovenosa, sendo necessário procedimento cirúrgico em 45 pacientes. A maior parte dos pacientes submetidos à cirurgia (21 casos) apresentava abscesso subperiosteal. Todos os pacientes apresentaram evolução satisfatória, não havendo registro de óbito ou seqüelas.
Os autores concluem que o diagnóstico precoce aliado à terapêutica clínica adequada e indicação cirúrgica precisa são condições essenciais para se prevenir evolução fatal ou seqüelas irreversíveis nos pacientes que apresentam complicações orbitárias de sinusites.
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1 Médico Professor Doutor da Clínica Otorrinolaringológica do Hospital das Clínicas da FMUSP.
2 Médico Professor Doutor da Clínica Otorrinolaringológica do Hospital das Clínicas da FMUSP.
3 Médicos Ex-Residentes da Clínica Otorrinolaringológica do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP).
4 Professor-Associado da Disciplina de Otorrinolaringologia da FMUSP.
Trabalho realizado na Divisão de Clínica Otorrinolaringológica do Hospital das Clínicas da FMUSP - Serviço do Prof. Dr. Aroldo Miniti
Endereço para correspondência: Dr.Richard Louis Voegels - Rua Pedroso Alvarenga, 1255 cj. 26/27 - CEP 04531-021 São Paulo, SP Brasil - E-mail: voegels@ibm.net
Artigo recebido em 27 de outubro de 1999. Artigo aceito em 27 de dezembro de 2001.