ISSN 1806-9312  
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3970 - Vol. 76 / Edição 2 / Período: Março - Abril de 2010
Seção: Editorial Páginas: 164 a 171
Estudo da audição em crianças com fissura labiopalatina não-sindrômica
Autor(es):
Maria Isabel Ramos do Amaral1, José Eduardo Martins2, Maria Francisca Colella dos Santos3

Palavras-chave: fissura palatina, otite média, perda auditiva.

Keywords: cleft palate, otitis media, hearing loss.

Resumo: Crianças com fissura labiopalatina apresentam frequentemente otite média, em decorrência de alterações anatômicas e/ou funcionais da tuba auditiva. Objetivo: Analisar o desempenho de crianças fissuradas na Avaliação Audiológica Básica (AAB) e Triagem do Processamento Auditivo (TPA). Forma do Estudo: Corte transversal prospectivo. Material e Métodos: Foram avaliadas 44 crianças, do sexo masculino e feminino, na faixa etária de 8 a 14 anos, portadores de fissura labiopalatina não-sindrômica encaminhadas pela Instituição onde a pesquisa foi realizada. A AAB foi composta pela anamnese, otoscopia, audiometria tonal liminar, logoaudiometria e imitanciometria. A TPA foi composta pelos testes de Localização Sonora em Cinco Direções, Memória Sequencial para sons verbais e não-verbais e Teste Dicótico de Dígitos. Resultados: Na AAB verificamos que 77,27% das crianças apresentaram resultados normais na audiometria tonal liminar, 13,6% apresentaram perda auditiva condutiva e 2,2% apresentou perda mista. 21,2% apresentaram curva timpanométrica tipo C, 7,1% curva tipo B e 3,5% curva tipo Ad. A TPA esteve alterada em 72,7% das crianças, sendo que 45,5% apresentaram alteração no Teste Dicótico de Dígitos. Conclusão: As crianças fissuradas tiveram desempenho alterado tanto na AAB quanto nos testes da TPA, o que justifica a avaliação e o acompanhamento fonoaudiológico e otorrinolaringológico nestes casos.

Abstract: Children with cleft lip/palate often present otitis media as a result of anatomic and/or functional alterations of the Eustachian tube. Aim: to analyze the results of Basic Audiologic Evaluation (BAE) and Auditory Processing Screening (APS) in children with cleft lip/palate. Study design: prospective cross-sectional cohort. Materials and methods: Forty-four male and female children, within the 8 to 14 age range with non-syndromic cleft lip/palate, referred by the institution where the study was carried out. The BAE was made up by an interview, otoscopy, threshold tonal audiometry, logoaudiometry and impedance test. The APS was made up of 3 basic tests: Sound Localization Test, Sequential Memory for verbal and non-verbal sounds and Dichotic Listening Test. Results: The BAE revealed that 77.27% of the children presented normal hearing; 13.6% had conductive hearing loss and 2.2% presented mixed hearing loss. 21.2% of the children had type C tympanometry curve; 7.1% had a type B curve and 3.5% had an Ad curve. The APS was altered in 72.7% of the children and 45.5% of them presented altered results on the Dichotic Listening Test. Conclusion: children with cleft lip/palate had altered results on BAE and APS, which justifies audiological and medical follow-up.

INTRODUÇÃO

A audição é o principal elo de ligação do ser humano com o meio ambiente. Para que a comunicação seja possível, precisamos inicialmente ouvir e compreender, para então elaborarmos uma resposta e expressa-la por meio da linguagem.1 Os primeiros anos de vida têm sido considerados primordiais para o desenvolvimento da linguagem e é por meio da audição que a criança entra em contato com o mundo sonoro e com as estruturas da língua, que posteriormente constituirão um sistema de comunicação estruturado.2 A integridade anatomofisiológica do sistema auditivo, a maturação das vias auditivas e a estimulação sonora adequadas são essenciais à aquisição e desenvolvimento da linguagem oral.

Os problemas auditivos podem constituir-se em um quadro clínico isolado ou se apresentarem associados a outras alterações. Dentre as alterações encontradas que se associam à audição, enfatizamos as fissuras labiopalatinas (FLP). As FLP congênitas desenvolvem-se durante o período embrionário e o início do período fetal, sendo representadas, clinicamente, pela ausência do fechamento do lábio, palato ou ambos.3 Estima-se que para cada 1000 indivíduos nascidos vivos, um seja portador de algum tipo de fissura labiopalatina.4

Existem diversas classificações utilizadas para categorizar e descrever anatomicamente o tipo de fissura. A classificação de Spina5 é atualmente a mais utilizada, e baseia-se na localização da lesão em relação ao forame incisivo. A fissura pré-forame incisivo acomete lábio e arcada alveolar e podem ser uni ou bilaterais. A fissura pós-forame incisivo acomete palato duro e palato mole e pode ser uni ou bilaterais. As fissuras que acometem ambas as regiões pré e pós-forame incisivo são chamadas de transforames.

O indivíduo portador de fissura labiopalatina pode apresentar problemas de fala, dentários, ortodônticos e emocionais. Em crianças portadoras de FLP, a alteração mais frequente relacionada à audição é a otite média, em decorrência de malformações anatômicas e/ou funcionais da tuba auditiva e região do esfíncter velofaríngeo (EFV). Para melhor compreensão de como isso ocorre é necessário maior entendimento das estruturas envolvidas.

O EFV é uma cinta muscular localizada entre a oro e a nasofaringe, compreendendo a musculatura do palato mole e das paredes laterais e posterior da faringe, além de íntima relação com a tuba auditiva, pois a musculatura apresenta inserções na própria cartilagem da tuba e na base do crânio adjacente.6

A tuba auditiva é um conduto que comunica a cavidade timpânica com a nasofaringe. Durante a maior parte do tempo a tuba permanece fechada, e sua principal função é equilibrar a pressão do ar na orelha média com a pressão atmosférica. Também tem as funções de proteção contra a pressão e secreções provenientes da nasofaringe e drenagem das secreções produzidas na orelha média.7 O músculo tensor do véu palatino é responsável pela abertura da tuba auditiva e realiza esse movimento abaixando ligeiramente a porção anterior do véu durante a deglutição. Para a ocorrência efetiva desse mecanismo, a integridade do palato e das estruturas que o compõem é essencial.

Sendo assim, a principal razão para a ocorrência da otite média secretora nas crianças com FLP é descrita na literatura como sendo a disfunção tubária crônica, devido a uma falha no mecanismo de abertura da tuba. Nos casos de fissura palatina a tuba auditiva não se abre na deglutição pelo fato do músculo tensor do véu palatino não exercer sua função, uma vez que o mesmo permanece firme em sua inserção no palato, ou apresenta alterações em seu trajeto e inserção. Se a ventilação não ocorre, a obstrução tubária funcional pode levar à presença de um líquido estéril na orelha média. Mesmo obstruída funcionalmente, a tuba pode abrir-se e provocar aspiração de secreções da nasofaringe, criando condições para a persistência de uma otite média secretora. Esta alteração otológica é mais frequente nas fissuras transforame e pós-forame incisivo, já que estas afetam palato duro e palato mole6,8.

A presença de secreção na orelha média ou de perfuração da membrana do tímpano acarreta em dificuldades na transmissão do som. O caráter oscilante, característico da otite média recorrente, leva a uma flutuação na detecção dos sons e essa situação acarreta falta de consistência de estimulação auditiva, dificuldade de integração binaural, além de distorção da mensagem recebida, o que prejudica o desenvolvimento da audição, fala e linguagem. A perda auditiva restringe, portanto, o processo de organização e categorização da informação acústica (processamento auditivo). Essa situação cria uma desvantagem para a criança desenvolver a linguagem tanto na área de recepção quanto de expressão e compreensão, e podem aparecer problemas relacionados à leitura e escrita (troca de grafemas), e até dificuldades comportamentais e/ou desajustes sociais.9

A detecção precoce da perda auditiva é possível por meio da realização dos testes da Avaliação Audiológica Básica (AAB), que indicam o grau e tipo de perda além de informações sobre a integridade do sistema auditivo periférico como um todo. A identificação de possíveis distúrbios do processamento auditivo por meio da Triagem do Processamento Auditivo (TPA) possibilita a conduta terapêutica fonoaudiológica adequada, além da orientação aos familiares e aos profissionais envolvidos.

Sendo assim, o objetivo deste estudo foi analisar o desempenho de crianças portadoras de fissura labiopalatina e/ou palatina não-sindrômicas na Avaliação Audiológica Básica e Triagem do Processamento Auditivo.


MATERIAL E MÉTODO

Este trabalho trata-se de um estudo de coorte histórica com corte transversal, desenvolvido na Área de Assistência/CEPRE da Faculdade de Ciências Médias (FCM) da Universidade Estadual de Campinas aprovado pelo Comitê de Ética da FCM/UNICAMP, sob o parecer no442/2005. Foram avaliadas 44 crianças na faixa etária de 8 a 14 anos do sexo masculino e feminino, portadoras de fissura labiopalatina e/ou palatina não-sindrômica, encaminhadas pela Sociedade Brasileira de Pesquisa e Assistência para Reabilitação Craniofacial (Sobrapar). Esta sociedade presta atendimento a pacientes com fissuras e/ou outros quadros dismórficos.

Foram considerados critérios de exclusão pacientes com outros quadros dismórficos associados à fissura labiopalatina, portadores de síndromes concomitantes com a fissura e/ou não operadas ainda. As crianças foram selecionadas pela Sobrapar, sendo que foram convocadas todas aquelas atendidas pela Instituição na faixa etária proposta e que não se enquadravam nos critérios de exclusão, por carta e/ou telegrama ou ligação telefônica.

Apesar da análise dos resultados não ter sido realizada de acordo com o tipo de fissura de cada criança, não foram incluídas na amostra crianças portadoras de fissura somente labial, uma vez que esse tipo de fissura não acomete as estruturas do EFV, podendo comprometer os resultados do estudo. Os tipos de fissura apresentados pela amostra encontram-se descritos na Tabela 1.




Após assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido pelos pais e responsáveis, foram realizados os seguintes procedimentos: Anamnese, Otoscopia, Audiometria Tonal Liminar, Logoaudiometria, Imitanciometria e Triagem do Processamento Auditivo.

A Anamnese permitiu o levantamento de dados a respeito do histórico de Otite Média recorrente na Infância e uso ou não do tubo de ventilação (TV), além de dados referentes ao desenvolvimento global da criança e principais queixas auditivas relacionadas ao desempenho escolar e aprendizado. A otoscopia foi realizada pelo médico Otorrinolaringologista, a fim de observar a presença de cerume, perfuração ou não da membrana timpânica e/ou outras possíveis alterações.

Os testes da Avaliação Audiológica Básica foram realizados em Cabina Acústica, sob os moldes propostos por Munhoz et al., 2003.10 Foram empregados o Audiômetro Interacoustic AC-30 com fone TDH-39 e Imitanciômetro Interacoustic AZ-7,devidamente calibrados.

A classificação quanto ao grau da perda auditiva para crianças utilizada, considerando-se que perdas auditivas menores que 25 dBNA podem prejudicar a aquisição e desenvolvimento da linguagem, foi sugerida por Northern e Downs2.

Os demais critérios de normalidade adotados foram:

Valores em porcentagem de 88 a 100% no IPRF.11

Pico de máxima compliância ao redor da pressão 0 daPa, volume equivalente de 0,3 a 1,3ml e reflexo acústico de 70 a 90 dB acima do limiar de audibilidade para tom puro.12

Os testes da TPA aplicados foram realizados de acordo com a padronização brasileira proposta por Pereira e Schochat13 e Colella-Santos14, a saber:

Teste de Localização Sonora em Cinco Direções:

Este teste visa a avaliar a habilidade auditiva de localização sonora. O estímulo utilizado para este teste foi o guizo, percurtido em cinco direções sem pista visual. A criança foi orientada a apontar qual a direção do som. O critério de referência considerado normal é acertar quatro ou cinco direções, desde que direita e esquerda estejam corretas.

Teste de Memória Sequencial para Sons Verbais e Nãoverbais:

Este Teste visa a avaliar a habilidade auditiva de memória para sons em sequência (ordenação temporal). Para os sons verbais foram utilizadas as sílabas "pa", "ta", "ca" e "fa" ditas em três ordens diferentes, sem pista visual. Para os sons não-verbais foram utilizados quatro objetos sonoros (guizo, sino, coco e agogô) apresentados em três sequências diferentes. O critério de referência considerado normal é acertar duas ou as três sequências apresentadas.

Teste Dicótico de Dígitos

Este teste avaliou a habilidade de figura-fundo para sons verbais, por meio da etapa de integração binaural. Considera-se normal para crianças de 8 anos a porcentagem maior ou igual a 85% na orelha direita e 82% na orelha esquerda. Para as crianças com idade igual ou superior a 9 anos, considera-se normal porcentagem maior ou igual a 95% em ambas as orelhas.

Método Estatístico

Para realizar as análises descritivas e cruzamento de dados, utilizamos o Software Estatístico MINITAB. Computamos o número de acertos para cada criança, de acordo com o sexo e por orelha. O desempenho das crianças avaliadas foi classificado como normal ou alterado em cada teste, e a perda auditiva foi classificada em tipo e grau. Consideramos também o resultado geral da AAB e TPA, sendo que a classificação normal ou alterada foi realizada após comparação de todos os parâmetros com os critérios de normalidade já existentes.

Para verificar diferenças estatísticas e dependência entre as variáveis, utilizamos o Software Estatístico SPSS versão 15.0. O teste principal foi o não paramétrico Qui-Quadrado de Pearson, e quando necessário foi utilizado o teste não-paramétrico de Fisher. O nível de significância adotado foi fixado em 0,05 ou 5%.


RESULTADOS

A idade dos sujeitos avaliados variou de 8 a 14 anos (média 10,2 e desvio padrão 2,1), sendo 25 do sexo masculino (57%) e 19 do sexo feminino (43%). A análise estatística foi realizada a fim de verificar a independência entre as variáveis sexo e idade, sendo que as crianças foram divididas em 2 grupos por faixa etária: 8 a 11 anos (grupo 1) e 12 a 14 anos (grupo 2). A análise estatística mostrou não haver diferença entre as faixas etárias e sexo, e por isso, os dados foram tabulados em um único grupo de faixa etária (p=0,576- qui-quadrado de Pearson).

Inicialmente, apresentamos, no Gráfico 1, os dados coletados na anamnese referentes ao histórico de episódios de otite média na infância, uso de TV e perfuração da membrana timpânica.


Gráfico 1. Crianças fissuradas segundo os dados coletados na anamnese
com os pais .



Dentre as crianças que os pais relataram o uso do TV, apenas 2 (4,5%) apresentaram perda auditiva.

A classificação de tipo e grau da perda auditiva e os resultados da imitanciometria estão relacionados nas Tabelas 2 e 3, respectivamente. A análise estatística mostrou não haver diferença estatisticamente significante entre os sexos, considerando as porcentagens de acertos por orelha.(p=0,68-Teste Qui-Quadrado de Pearson).

Os resultados referentes à média de porcentagens de acertos obtidos, considerando-se os testes de Memória Sequencial para Sons Verbais, teste de Memória Sequencial para Sons Não-Verbais e teste Dicótico de Dígitos, encontram-se na Tabela 4.




Os resultados referentes à distribuição total das crianças consideradas alteradas e normais, quanto a avaliação Audiológica Básica e Triagem do Processamento Auditivo, encontram-se no Gráfico 2.


Gráfico 2. Distribuição das crianças consideradas normais e alteradas, quanto à Avaliação Audiológica Básica e Triagem do Processamento Auditivo.



No Gráfico 3 foi realizado o cruzamento dos dados relacionados à porcentagem de crianças que obtiveram resultados alterados na TPA em relação aos resultados da AAB (normal ou alterado).


Gráfico 3. Crianças fissuradas segundo os resultados alterados da TPA em relação à AAB.




DISCUSSÃO

Os dados relacionados na Tabela 1 demonstram o tipo de fissura apresentado pelas crianças da amostra. Foram excluídas do estudo aquelas portadoras de fissura isolada de lábio. Pesquisas relatam que as alterações funcionais e morfológicas nos indivíduos com FLP atuam como fatores predisponentes de uma alta ocorrência de disfunção tubária, resultando em otite secretora e suas complicações15,16 e que a fissura isolada de lábio e/ou arco dentário, uma vez que não há envolvimento de palato, parece não interferir na sensitividade auditiva desta população, apresentando audição dentro dos padrões de normalidade.17-19

De acordo com os dados coletados na anamnese realizada com os pais, observamos que 68,2% das crianças apresentaram histórico de episódios de otite média aguda na infância. Esse dado encontra-se de acordo com a literatura pesquisada, que aponta para a maior ocorrência de episódios de otites repetidas na população portadora de FLP, especialmente nos primeiros anos de vida.20,21 Além disso, 22,7% dos pais relataram o uso de tubo de ventilação no tratamento da otite média, e 9,1% relataram que houve perfuração timpânica em decorrência das otites médias frequentes (Gráfico 1).

Na literatura pesquisada, há uma grande discussão a respeito do uso de ventilação precoce no tratamento das otites médias secretoras em crianças FLP. O uso precoce e agressivo do TV é defendido por alguns autores em decorrência da grande incidência de otite média nessa população, e das possíveis consequências que a perda pode acarretar. Broen et al.22 referem a importância da inserção precoce do TV, pois quanto mais tardiamente eles foram inseridos nas crianças de sua pesquisa, pior foram os resultados auditivos encontrados. Mais recentemente, Sheahan et al.23 destacou em seu artigo publicado a posição de alguns autores defendendo uma conduta mais conservadora em relação ao TV, baseada na prevenção das alterações auditivas sem o uso agressivo e precoce dos mesmos.

Em nosso estudo, o dado coletado na anamnese referente a 22,7% das crianças terem feito uso do TV é relevante, uma vez que dessas apenas 2 (4,5%) apresentaram perda auditiva. E dentre as crianças que não operaram, 8 (18,18%) apresentaram perda auditiva. Portanto, há indícios de que o TV foi eficaz no tratamento das alterações auditivas em decorrência da otite média secretora nas crianças de nossa pesquisa, e está de acordo com outros estudos que encontraram achados semelhantes e destacam a importância do TV em protocolos de avaliação e tratamento das alterações otológicas decorrente da FLP.24 Vale destacar que, segundo a literatura, existem possíveis sequelas após a extrusão do TV, como a otorreia e/ ou necessidade de re-inserção. Portanto, é necessário o acompanhamento adequado e regular das crianças que são submetidas a esse procedimento.25

Ao analisarmos os resultados obtidos na audiometria tonal liminar, verificamos que 34 das crianças apresentaram resultados normais (77,27%), 6 crianças (13,6%) apresentaram perda auditiva do tipo condutiva de grau discreto, 3 crianças (6,8%) apresentaram perda auditiva condutiva de grau leve e 1 criança (2,2%) apresentou perda mista de grau moderado (Tabela 2). Os resultados encontrados apontam para maior incidência de perdas auditivas do tipo condutiva na população com FLP e estão de acordo com a literatura pesquisada.




Chu e Mcpherson26 estudaram retrospectivamente 180 prontuários de crianças chinesas portadores de FLP atendidas do Cleft Lip And Palate Centre, Prince Philip Dental Hospital/University de Hong Kong. Os resultados indicaram que 13,4% dos pacientes apresentaram perda auditiva do tipo condutiva, e 23,7% dos pacientes apresentaram resultados timpanométricos alterados. Assim como em nosso estudo, a idade e sexo não demonstraram ter relação significante com os resultados alterados.

Em outro estudo de análise de prontuários de 101 pacientes com FLP na faixa etária de 8 a 25 anos, realizado por Goudy et al.3, foi constatado a maior incidência de perda auditiva do tipo condutiva. Dos pacientes que apresentaram perda auditiva condutiva, 75% deles foi de grau leve, 21% de grau moderado e apenas 4% apresentaram perda mista de grau severo. Em nosso estudo não tivemos nenhum resultado de grau severo nas perdas auditivas encontradas, mas observamos ainda uma criança com perda auditiva do tipo mista de grau moderado.

Os resultados em relação à curva timpanométrica e pesquisa do Reflexo Acústico Contralateral foram analisados por orelha (direita e esquerda), totalizando 85 orelhas, sendo que 3 orelhas não realizaram o teste devido à perfuração timpânica. Verificamos que 68,2% das crianças apresentaram curva tipo A, 21,2% curva tipo C, 7,1% curva tipo B e 3,5% curva tipo Ad. O Reflexo Acústico Contralateral estava presente em 54,5% das crianças e 45,5% apresentaram ausência deste reflexo. (Tabela 3)




A curva timpanométrica tipo C foi a alteração mais frequente. Ela é caracterizada por pico de máxima admitância, deslocada para pressão negativa, compatível com disfunção da tuba auditiva. Diversos estudos relacionam a alta incidência de disfunção da tuba auditiva em pacientes com FLP, assim como atribuem a ela a principal causa da otite média secretora nessas crianças, pois as condições anatômicas e/ou funcionais desta encontram-se alteradas e favorecem a condição inflamatória permanente e acúmulo de líquido estéril na cavidade timpânica.20,27,28 A curva timpanométrica tipo B é indicativa de presença de líquido na orelha média, consequente de uma inflamação e presença de otite média secretora. Poucos estudos foram encontrados na literatura referente à incidência da curva timpanométrica tipo Ad em pacientes com FLP. Porém, a curva tipo Ad é descrita como sendo relacionada com a flacidez do sistema tímpano-ossicular, devido a decorrentes casos de otites médias e/ou disjunção da cadeia ossicular.29 Em nosso estudo, as duas crianças que apresentaram a curva tipo Ad tiveram relatadas na anamnese diversos episódios de otite média na infância.

Alguns estudos foram encontrados enfocando não só a parte auditiva das crianças com FLP, mas também a relação da perda auditiva com alterações de linguagem e de aprendizado. Jocelyn et al.30 comparou em seu trabalho os resultados das avaliações das habilidades de fala e linguagem com as condições audiológicas de 16 crianças com FLP e crianças de um grupo controle. Esses autores concluíram que as crianças fissuradas apresentam menor índice de desenvolvimento cognitivo e de linguagem. Em nosso trabalho, não foi objetivo avaliar essas habilidades. Porém, por meio da Triagem do Processamento Auditivo realizada, podemos destacar as influências que uma perda auditiva, mesmo discreta, pode acarretar em relação ao processamento dos sons, diretamente relacionado ao processo de aprendizagem, desempenho escolar e convívio social dessas crianças.

As alterações que envolvem o Processamento Auditivo (PA) referem-se ao modo com que o indivíduo não só recebe, mas analisa e interpreta os sons por meio das estruturas do sistema auditivo. O PA caracteriza-se, portanto, à série de processos que sucedem no tempo e que permitem com que um indivíduo realize análises acústicas e metacognitivas dos sons. O PA diz respeito predominantemente, à função do sistema nervoso central e córtex cerebral e está relacionado às habilidades envolvidas na decodificação, organização e codificação da informação sensorial auditiva. Tais habilidades dependem da capacidade biológica inata, integridade do sistema auditivo periférico e central e das experiências acústicas no meio ambiente.31 Os resultados relacionados a TPA aplicada encontram-se na Tabela 4 e Gráfico 2.

Em relação ao Teste de Localização Sonora em Cinco Direções aplicado, 11,4% (5/44) das crianças apresentaram alteração, e 88,6% (39/44) apresentaram resultados normais. Esse teste avalia a habilidade de localização dos sons, por meio do mecanismo auditivo de discriminação da fonte sonora.

Em relação aos Testes de Memória Sequencial para Sons Verbais e Não-verbais, 11,4% (5/44) das crianças apresentaram resultados alterados em ambos os testes, e 88,6% (39/44), resultados normais. Estes testes avaliam a habilidade de ordenação temporal de sons verbais e nãoverbais, por meio do mecanismo auditivo de discriminação de sons em sequência.

Por último, em relação ao Teste Dicótico de Dígitos, 45,5% (20/44) das crianças apresentaram resultados alterados para a faixa etária, e 54,5% (24/44) resultados normais. O Teste Dicótico de Dígitos tem sido reconhecido na literatura como importante no diagnóstico das alterações do processamento auditivo32 e é indicado como clinicamente adequado para ser utilizado em uma triagem do processamento auditivo, por ser de rápida aplicação e cálculo dos resultados, facilmente entendido por adultos e crianças.14,33 Este teste avalia a habilidade de figura-fundo para sons verbais, por meio do mecanismo auditivo de reconhecimento de sons verbais em escuta dicótica.

Analisando os resultados de uma forma geral, podemos observar que dentre as crianças com resultados alterados na AAB (61,3%), 72,7% dessas apresentaram TPA alterada. Além disso, as crianças com resultados normais na AAB (38,7%) também obtiveram resultados alterados na TPA (64,7%) (Gráfico 3). A partir desses resultados, destacamos em nosso estudo a importância da realização da Avaliação do Processamento Auditivo sempre que possível nessas crianças, levando em conta as queixas apresentadas, mesmo que os resultados da Avaliação Audiológica Básica estejam normais.

Embora tenham sido encontrados poucos estudos que relacionem a FLP e processamento auditivo, existem evidências de que as crianças com FLP apresentam pior desempenho, quando comparados com as crianças sem fissura. Belloni e Colella-Santos34, ao estudarem 25 crianças portadoras de FLP na faixa etária de 8 a 14 anos, com o objetivo de analisar o processamento auditivo da amostra, por meio dos testes de Localização Sonora, Memória Sequencial para Sons Não-verbais e Verbais, Dicótico de Dígitos e Dicótico Não Verbal, encontraram alteração em 68% das crianças da amostra. O estudo destacou a importância e necessidade da Avaliação do Processamento Auditivo fazer parte da avaliação fonoaudiológica das crianças com FLP sempre que possível, e fornecer subsídios adequados que possam nortear o processo terapêutico.

Cassab e Zorzetto35, ao aplicaram o Teste da fusão auditiva-revisado (AFT-R) em crianças com FLP, com o objetivo de investigar uma das habilidades do processamento auditivo central - o processamento temporal do sistema auditivo (resolução temporal) - em indivíduos com FLP, e comparar esses achados ao desempenho de crianças sem FLP na mesma faixa etária, encontraram alterações importantes entre os dois grupos, sendo que o grupo de crianças com FLP apresentou resultados piores em relação ao grupo controle. Das 30 crianças do grupo com FLP, foi observado que 22 apresentaram histórico de otite média nos primeiros anos de vida, sendo que 19 dessas demonstraram desempenho alterado no teste.

Em artigo publicado, Lemos et al.,36, estudaram os resultados do Teste Dicótico de Dígitos (etapa de escuta direcionada) em crianças com FLP, e compararam com um grupo controle. Foram avaliadas 27 crianças com FLP e 25 crianças do grupo controle. Os autores observaram que o grupo com FLP apresentou porcentagens de acertos inferiores em relação ao grupo controle, tanto para a orelha direita quanto a orelha esquerda.

Diante de todo o comprometimento auditivo que pode apresentar a criança com FLP, destacamos a importância do acompanhamento otorrinolaringológico e audiológico o mais precoce possível, e o mais completo possível, envolvendo a audição periférica e central. O adequado tratamento da otite média secretora depende não só do correto diagnóstico e conduta ORL, mas também do acompanhamento periódico. Um diagnóstico tardio e a consequente omissão do tratamento adequado pode levar a complicações agudas ou episódios prolongados de otite média, comprometimento da audição e consequentes efeitos sobre o desenvolvimento cognitivo e linguístico da criança.37

É importante ressaltar que mesmo perdas auditivas discretas e leves acarretam em significativos prejuízos para a criança no que se refere ao desenvolvimento da lingua gem, aprendizado e rendimento escolar, pois se perdem pistas acústicas, especialmente relacionadas com o som das vogais. Sendo assim, o correto tratamento médico e fonoaudiológico evitará o estabelecimento de lesões auditivas periféricas e centrais irreversíveis nas crianças com FLP, que poderão afetar o desenvolvimento da linguagem oral e escrita, acarretando problemas de aprendizagem, desempenho escolar e convívio social.


CONCLUSÃO

A partir dos resultados do estudo pôde-se concluir que, nesse grupo de 44 crianças portadores de FLP, o histórico de recorrentes episódios de otite média na infância esteve presente na maioria dos relatos dos pais, seguidos de uso de tubo de ventilação e perfuração da membrana timpânica. A perda auditiva condutiva discreta teve maior incidência e a curva timpanométrica alterada mais frequente foi do tipo C, sugerindo disfunção tubária. Em relação à TPA, esta esteve alterada tanto em crianças com alterações audiométricas quanto nas crianças com audição periférica normal, sendo que o teste Dicótico de Dígitos foi o de maior incidência de alterações. Sendo assim, a presença de FLP contribui para a ocorrência de problemas auditivos, e requer adequado acompanhamento fonoaudiológico e otorrinolaringológico.


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1. Fonoaudióloga, Mestranda em Saúde da Criança e do Adolescente pelo Centro de Investigação em Pediatria/CIPED/FCM/UNICAMP.
2. Otorrinolaringologista, Médico do Setor de Otologia - Implante Coclear da Disciplina de Otorrinolaringologia/Cabeça e Pescoço da UNICAMP.
3. Fonoaudióloga. Doutora em Ciências dos Distúrbios da Comunicação Humana pela UNIFESP/EPM, Docente e Coordenadora do Curso de Fonoaudiologia da Faculdade de Ciências Médicas da UNICAMP.

Este artigo foi submetido no SGP (Sistema de Gestão de Publicações) da BJORL em 11 de junho de 2009. cod. 6442

Artigo aceito em 19 de outubro de 2009
Indexações: MEDLINE, Exerpta Medica, Lilacs (Index Medicus Latinoamericano), SciELO (Scientific Electronic Library Online)
Classificação CAPES: Qualis Nacional A, Qualis Internacional C


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