ISSN 1806-9312  
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3907 - Vol. 75 / Edição 5 / Período: Setembro - Outubro de 2009
Seção: Artigo Original Páginas: 760 a 764
Alterações na função coclear durante a indução aguda de hiperinsulinismo em um modelo animal
Autor(es):
Roberto Dihl Angeli1, Luiz Lavinsky2, Alexandre Dolganov3

Palavras-chave: audiometria de resposta evocada, cóclea, hiperinsulinismo.

Keywords: audiometry, cochlea, evoked response.

Resumo: O hiperinsulinismo secundário à resistência periférica à insulina tem sido apontado como o fator etiológico mais frequente de síndromes tanto vestibulares como cocleares. Objetivo: Este estudo experimental registrou e analisou as alterações dos potenciais evocados auditivos através da eletrococleografia (ECoG) transtimpânica durante o hiperinsulinismo agudo induzido em um modelo animal. Material e Método: 6 ovelhas macho adultas foram divididas randomicamente em 2 grupos. Os animais submeteram-se ao exame de ECoG sob anestesia geral, e sangue periférico foi coletado para determinação de glicemia e hiperinsulinemia. Os animais do grupo intervenção (n=3) receberam insulina regular humana IV (0.1U/kG). O grupo controle (n=3) recebeu solução salina. Glicemia e insulinemia foram determinadas simultaneamente com o registro dos potenciais evocados a intervalos de 10 minutos, durante 90 minutos. Resultado: O grupo intervenção apresentou uma progressiva supressão da amplitude do potencial de ação quando comparado ao grupo controle (p=0.001). Conclusão: Os dados sugerem fortemente que o hiperinsulinismo agudo induzido suprime a atividade coclear. Os resultados podem ser atribuídos à perda da atividade da enzima Na+K+ATPase na estria vascular, levando à perda do potencial endococlear e da despolarização subsequente das células ciliadas assim como das células neurais que compõem a porção auditiva do VIII par craniano.

Abstract: Hyperinsulinism secondary to peripheral insulin resistance has been described as the most frequent etiologic factor in cochlear and vestibular syndromes. Aim: This experimental study recorded and analyzed evoked auditory potential changes using transtympanic electrocochleography (EcochG) during induced acute hyperinsulinism in an animal model. Materials and Methods: Six adult male sheep were randomly divided into 2 groups. The animals were submitted to EcochG under general anesthesia, and a peripheral blood sample was collected to measure glycemia and insulinemia. Animals in the intervention group (n=3) received regular human insulin IV (0.1 U/kg). The control group (n=3) received saline solution. Glycemia and insulinemia were measured simultaneously with the recording of evoked potentials at 10-minute intervals during 90 minutes. Results: The intervention group experienced a progressive suppression in action potential amplitude when compared to the control group (p=0.001). Conclusion: Data strongly suggest that acute induced hyperinsulinism suppresses cochlear function. Results may be attributed to loss of Na+K+ATPase activity in the stria vascularis, leading to loss of endocochlear potential and subsequent depolarization of cochlear hair cells as well as of neural cells in the auditory portion of cranial nerve VIII.

INTRODUÇÃO

Vários estudos têm demonstrado a influência do metabolismo dos hidratos de carbono sobre o funcionamento da orelha interna, sob os pontos de vista tanto clínico como experimental. A maioria destes estudos aponta o hiperinsulinismo como a alteração metabólica mais frequentemente associada a patologias cocleovestibulares1-6. D'Avila e Lavinsky, estudando o perfil glicídico de indivíduos portadores de doença de Ménière, demonstraram que 72% destes tinham graus variáveis de hiperinsulinismo detectáveis pelo teste de 5 horas de tolerância à glicose7.

Quando consideramos a resistência periférica à insulina, o hiperinsulinismo é considerado uma alteração precoce8,9. Entretanto, apesar de ser classificado como um distúrbio tênue, pode afetar significativamente o metabolismo da orelha interna e as concentrações dos seus fluídos10.

Sabe-se que a orelha interna apresenta uma pequena capacidade de armazenamento energético11,12. Paradoxalmente, sua atividade metabólica é alta, especialmente na manutenção das concentrações iônicas da endolinfa13,14. Estudo conduzido por Mendelsohn e Roderique demonstrou que a indução de hipoglicemia em roedores acarreta importante redução na concentração de potássio na endolinfa15.

Mangabeira-Albernaz e Fukuda propõem que o hiperinsulinismo bloqueie a atividade da enzima (Na+/K+)-ATPase na estria vascular3, removendo o potássio da endolinfa, retendo sódio e, assim, aumentando a pressão osmótica nesse nível10.

A impossibilidade de se observar modificações histopatológicas in vivo é reconhecido como motivo de discordância em relação ao real impacto dos distúrbios metabólicos no sistema cocleovestibular16. O objetivo do presente estudo foi monitorar as alterações nos potenciais evocados auditivos através da Eletrococleografia (ECoG) transtimpânica durante a indução aguda de hiperinsulinemia em ovelhas, fornecendo subsídios para um melhor entendimento desta associação.


MATERIAL E MÉTODO

Este estudo experimental foi conduzido nas dependências da Unidade de Experimentação Animal do Centro de Pesquisas da Instituição, tendo sido previamente aprovado pelo seu Comitê de Ética em Pesquisa, sob o registro 04-070.

O tamanho da amostra foi calculado baseando-se numa diferença estimada entre os grupos de pelo menos 3,5 unidades de desvio padrão, fixando-se o valor de alfa em 0,05 e o poder estatístico do estudo em 80%.

Seis ovelhas macho adultas, da raça Corriedale, com peso entre 40 e 43 kg, foram randomicamente divididas em dois grupos de igual tamanho (grupos controle e intervenção). Durante as etapas de experimentação, foram seguidos todos os princípios internacionais para o manuseio de animais.

Procedimentos anestésicos

Os animais necessitaram de período de jejum prévio de 48 horas, devido ao lento esvaziamento gástrico observado em ruminantes.

A sedação foi obtida com a acepromazina (Univet, São Paulo, SP) na dose de 500 mg/kg. A indução anestésica foi obtida com tiopental sódico intravenoso (Abbott, Rio de Janeiro, RJ), na dose de 15 mg/kg de peso, e mantida com a mesma droga por bomba de infusão contínua (Nutrimat II, B.Braun, São Gonçalo, RJ), na dose de 600 mg/hora, sob a supervisão de médico veterinário. Todos os animais foram submetidos a intubação orotraqueal com tubo de 8 ou 9 mm (Figura 1) acoplado a carro de anestesia com sistema fechado (Modulus 4000, Narcosul, Porto Alegre, RS), com fornecimento de oxigênio a 100%. Monitorizou-se também a saturação de oxigênio, frequência cardíaca (Biox 3700e, Ohmeda, Louisville, CO, EUA), volume corrente, frequência respiratória (Ventcare, São Paulo, SP) e temperatura retal.


Figura 1. Animal em estudo durante a etapa de experimentação.



Registro dos potenciais evocados

Os potenciais evocados auditivos foram registrados pelo sistema Morpheu All-In-One, desenvolvido pela empresa Dolsch Biomedical, de Porto Alegre, RS. Estes registros foram posteriormente analisados pelo software Clampfit 9.2, desenvolvido por Axon Instruments (Figura 2).


Figura 2. Interface propiciada pelo software Clampfit 9.2.



O eletrodo primário de punção (Medelec Ltd) foi inserido na orelha média, com sua extremidade permanecendo em contato com o promontório, através de uma pequena timpanotomia. O eletrodo secundário foi posicionado na mucosa nasal.

O estímulo acústico foi fornecido por um microfone situado no meato auditivo externo, numa intensidade de 110 dBNA e polaridade positiva (condensação). As frequências testadas foram as de 5, 6, 7, 8, 9 e 10 kHz. Os filtros utilizados foram de 15 e 15.000 Hz. O sinal acústico foi amplificado 100.000 vezes e, para cada frequência, foram fornecidos 500 estímulos, totalizando 3000 estímulos para cada um dos 10 momentos de registro.

Coleta sanguínea de glicose e insulina

As coletas de sangue periférico para determinação tanto de glicemia como da insulinemia foram realizadas através de punção jugular. A glicemia foi medida através do método enzimático-colorimétrico da glicose-oxidase (Labtest), enquanto a insulinemia foi medida por imunoensaio de eletroquimioluminescência, nos analisadores Modular Analytics E170 (Roche). Todas as análises laboratoriais foram realizadas no Laboratório de Patologia Clínica da Instituição.

Indução de hiperinsulinemia aguda

Antes da intervenção, amostras de sangue periférico foram obtidas para a determinação de glicemia e insulinemia, simultaneamente ao registro dos potenciais evocados.

Os animais do grupo de estudo (n=3) receberam insulina regular, pela via intravenosa (0,1 U/kg de peso) diluída em 20 ml de solução fisiológica. Os animais do grupo controle (n=3) receberam apenas os 20ml de solução fisiológica. Os potenciais evocados cocleares foram então registrados a cada 10 minutos, por 1 hora e meia (90 minutos), totalizando 10 momentos de coleta de dados. Simultaneamente, realizava-se a coleta de sangue periférico para o estabelecimento das curvas glicêmica e insulinêmica.

Análise estatística

Os dados foram analisados pelo software Statistical Package for the Social Sciences (SPSS), versão 12.0. Os dados basais (obtidos no tempo zero) dos diferentes grupos foram comparados através do teste t de Student para amostras independentes. A Análise de Variância (ANOVA) para amostras repetidas foi o teste empregado para avaliar as modificações da amplitude do potencial de ação (PA) coclear e os valores de glicemia. O registro do potencial de ação coclear (PA) foi apresentado em folds, ou seja, razão dos valores observados nos diferentes momentos pela medida basal. Os resultados foram apresentados graficamente pelo software SigmaPlot, versão 8.0.

O nível de significância estatístico foi definido como p < 0.05.


RESULTADOS

Durante a fase de experimentação não ocorreram perdas. Os animais apresentaram um comportamento extremamente dócil em todas as etapas de experimentação, permitindo uma adequada instrumentação tanto anestésica como cirúrgica.

A recuperação anestésica ocorreu em um período médio de 2 horas, nas dependências do Centro de Pesquisas, quando então os animais eram transportados ao local de origem aos cuidados do fornecedor.

Tanto a hiperinsulinemia como a hipoglicemia foram efetivamente induzidos, como visto nas Figuras 3 e 4. Na Figura 3 observa-se a relação entre a glicemia média durante o experimento e a amplitude média do potencial de ação coclear, em ambos os grupos.


Figura 3. Relação entre a amplitude do potencial de ação coclear e a glicemia média observada em ambos os grupos.


Figura 4. Insulinemia média observada nos grupos controle e intervenção.



Os dados basais de ambos os grupos foram considerados similares em relação à insulinemia, glicemia e amplitude do PA coclear, com respectivos valores p de 0.59, 0.14 e 0.11.

Quando avaliamos a amplitude do PA através do teste ANOVA para medidas repetidas, encontramos que o grupo intervenção apresentou uma significativa redução na amplitude do PA coclear, quando comparado ao grupo controle (p=0.001). Na Figura 5 estão demonstrados os traçados obtidos em um dos animais do grupo intervenção, onde observamos a evolução desta amplitude durante os 90 minutos de registro.


Figura 5. Traçados obtidos em animal do grupo intervenção, demonstrando a progressiva diminuição da amplitude do potencial de ação coclear.



DISCUSSÃO

O emprego de ovinos como animais de experimentação em pesquisa e treinamento cirúrgico otológico tem sido desenvolvido por este Grupo de Pesquisa desde a década passada17-20. Já está demonstrada a semelhança entre a anatomia e a morfometria entre as orelhas de ovinos e de seres humanos21. As grandes dimensões das estruturas, equiparáveis às encontradas em seres humanos, permitiram o uso de instrumentos anestésicos e cirúrgicos convencionais, sem a necessidade de adaptação.

Grande parte do sucesso no manuseio dos animais deveu-se ao auxílio de profissionais médicos veterinários altamente qualificados e treinados, com ampla experiência adquirida nos projetos anteriormente desenvolvidos pelo Grupo de Pesquisa.

Neste estudo, a eletrococleografia foi o exame destinado a monitorizar a resposta ao hiperinsulinismo agudo. Não se encontra, na literatura médica, referências sobre o uso deste método em ovinos, o que torna este estudo pioneiro no tema. A experiência adquirida pelos autores possibilitará o desenvolvimento de outros projetos destinados a avaliar os demais componentes dos potenciais evocados auditivos, como o microfonismo coclear e o potencial de somação. Como era desconhecido o espectro de frequências nas quais a estimulação forneceria respostas evocadas consistentes, foi realizada uma verdadeira varredura ou mapeamento, sendo escolhidas aquelas entre 5 e 10 kHz. Desta forma, o estímulo empregado foi o tone burst, e não o click de banda larga (BBC).

O conceito de que o hiperinsulinismo representa a primeira etapa no desenvolvimento da resistência periférica à insulina (ou intolerância à glicose) abriu um vasto campo de pesquisa acerca das suas repercussões clínicas. O impacto negativo do hiperinsulinismo na hemostasia da orelha interna deve-se provavelmente às características iônicas e metabólicas da estria vascular, responsável pela manutenção do potencial endococlear através da secreção de potássio no espaço endolinfático.

Os resultados das análises laboratoriais neste estudo experimental relevaram uma variação muito maior nos valores da insulinemia em comparação com a variação da glicemia (Figura 4), sugerindo que os efeitos da exposição sejam secundários ao hiperinsulinismo e, em menor grau, à hipoglicemia.

A resposta elétrica predominante foi a progressiva diminuição na amplitude do PA neural observada no grupo intervenção. Este fenômeno pode ser explicado por dois possíveis mecanismos:

  • O hiperinsulinismo atua diretamente nas fibras que compõem o nervo auditivo, comprometendo o transporte iônico pela membrana celular e impedindo a sua despolarização.
  • O hiperinsulinismo atua na estria vascular, comprometendo a manutenção do potencial endococlear e, desta forma, a despolarização das células ciliadas, o que vai refletir no estágio subsequente de despolarização celular da fibra neural.


  • Acreditamos fortemente que o efeito neural observado apenas reflete a interferência na atividade coclear secundária ao hiperinsulinismo agudo induzido. Em estudos recentes, conduzidos pelo nosso Grupo, a atividade coclear de ovinos, medida através das emissões otoacústicas por produto de distorção (EOAPD), foi significativamente reduzida após a indução de hiperinsulinismo agudo17,18, reafirmando a existência de um efeito coclear e não neural.

    O modelo teórico que melhor explica os achados aqui descritos é o bloqueio da atividade da enzima (Na+/K+)-ATPase na estria vascular, como proposto por Mangabeira-Albernaz e Fukuda3. Este efeito modificaria a composição iônica da endolinfa, impedindo a completa despolarização das células ciliadas internas e das fibras que compõem a porção auditiva do VIII par craniano.

    A falta de sincronismo entre o período de maior hiperinsulinemia e o período de menor amplitude do PA pode ser explicado teoricamente pelo fato de que o bloqueio da atividade da enzima apresenta um efeito algo retardado na concentração de potássio endolinfático, permanecendo ainda moléculas suficientes para a despolarização celular nos minutos iniciais.

    A resistência periférica à insulina e o hiperinsulinismo têm sido exaustivamente estudados dentro de um contexto cardiovascular, mas raramente são associados a distúrbios da orelha interna. Considerando os estudos desenvolvidos por este e outros grupos3,17,18,22,23, consideramos que a existência de patologia da orelha interna pode ser interpretada como um indicador precoce da presença de resistência à insulina, justificando a sua investigação clínica na prática clínica diária.


    CONCLUSÃO

    Os resultados deste estudo demonstram que a indução de hiperinsulinismo agudo acarreta marcantes alterações na função auditiva, demonstradas através da redução na amplitude do potencial de ação coclear. Estes resultados podem ser atribuídos à supressão da atividade da enzima (Na+/K+)-ATPase na estria vascular, levando à perda do potencial endococlear e a posterior despolarização das fibras que compõem a porção auditiva do VIII par craniano.


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    1 Mestre em Otorrinolaringologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, UFRGS, Médico Otorrinolaringologista.
    2 Professor Associado da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, UFRGS. Professor do Curso de Pós-Graduação em Cirurgia: Otorrinolaringologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Médico Otorrinolaringologista.
    3 Pesquisador Associado do Laboratório de Neurociências do Instituto de Pesquisas Biomédicas da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, PUCRS, Médico Neurologista.

    Este artigo foi submetido no SGP (Sistema de Gestão de Publicações) da BJORL em 16 de agosto de 2008. cod. 5987.
    Artigo aceito em 7 de outubro de 2008.
    Indexações: MEDLINE, Exerpta Medica, Lilacs (Index Medicus Latinoamericano), SciELO (Scientific Electronic Library Online)
    Classificação CAPES: Qualis Nacional A, Qualis Internacional C


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