ISSN 1806-9312  
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382 - Vol. 69 / Edição 2 / Período: Março - Abril de 2003
Seção: Artigo Original Páginas: 256 a 259
Tratamento conservador da síndrome de Gradenigo
Autor(es):
Felippe Felix[1],
Maria Cecília Domingues de Olivaes[2],
Ronaldo A. O. C. Gismondi[3],
Heraldo Belmont[4],
José A. de P. Felix[5]

Palavras-chave: síndrome de Gradenigo, petrosite, paralisia abducente

Keywords: Gradenigo's syndrome, petrositis, abducens palsy.

Resumo: A síndrome de Gradenigo, uma complicação rara de otite média, é caracterizada por otorréia purulenta, paralisia de nervo abducente e dor na área de inervação do nervo trigêmeo. Sua ocorrência está relacionada ao acometimento do ápice da parte petrosa do osso temporal e estruturas vizinhas a essa área. Os autores relatam no artigo o caso de um paciente de 7 anos de idade com esta síndrome e o sucesso na adoção da conduta conservadora com antibioticoterapia sem mastoidectomia.

Abstract: Gradenigo's syndrome, a rare complication of otitis media, consists of suppurative otitis, abducens nerve palsy and pain in the trigeminal nerve area. The occurrence of this disease is associated with osteitis of petrous apex of temporal bone and the neighbor structures. The authors describe in this article the case of a 7 year-old boy with this syndrome treated successfully with conservative treatment instead of surgical treatment.

Introdução

Na era pré antibiótica, a disseminação da infecção do ouvido médio para a mastóide e ápice petroso freqüentemente resultava em complicações intracranianas sérias, como trombose de seio cavernoso, meningite e morte. Com o advento de novas técnicas diagnósticas e potentes antibióticos, estas complicações se tornaram cada vez mais raras, já que passaram a ser interrompidas em sua fase inicial. Neste artigo, vamos relatar um caso e discutir a síndrome de Gradenigo.

A síndrome foi descrita pela primeira vez em 1907 por Giuseppe Gradenigo (1859-1926), e consistia na tríade de otite média complicada com otorréia purulenta, dor na área de inervação do primeiro ou segundo ramo do nervo trigêmeo e paralisia do nervo abducente. Sua causa pode ser explicada pela disseminação da infecção por contigüidade do ouvido médio até o ápice da parte petrosa do osso temporal através das células ósseas aeradas, localizadas próximas à área de passagem dos nervos abducente e trigêmeo.

O tratamento para esta afecção constitui grande polêmica na literatura mundial, com muitos autores justificando a intervenção cirúrgica precoce, enquanto outros poucos acreditam que o tratamento conservador consegue reverter os sinais e sintomas desta síndrome e minimizar a ocorrência de seqüelas.

Neste artigo os autores procuram relatar um caso da síndrome de Gradenigo e discutir o tema com ênfase no tratamento adotado, e outras alternativas possíveis, através de uma revisão da literatura.

Apresentação do caso

Paciente, masculino, 7 anos e 10 meses, pardo, apresentava quadro clínico inicial de febre, rinorréia clara e otalgia à direita, evoluindo 6 dias depois com cefaléia intensa localizada à direita, febre alta, vômitos e otorréia purulenta à direita, associada à diplopia. Ao final de uma semana, procurou atendimento médico em nossa instituição.

O exame físico mostrava paciente em regular estado geral, febril, com rigidez de nuca, paralisia do 6º par craniano à direita (Figura 1) e dor na área de inervação do ramo oftálmico do trigêmeo à direita; não havia sinais flogísticos nas mastóides. A otoscopia esquerda era normal e, à direita, havia apenas hiperemia da membrana timpânica.

A tomografia computadorizada de crânio (TCC) apresentava velamento das células mastoídeas bilateralmente, com maior acentuação à direita, compatível com mastoidite aguda; não havia sinais de abscesso cerebral (Figura 2). A análise do líquor mostrava 10 células/mm3 (100% polimorfonucleares), 51 mg/dl de proteínas e 66 mg/dl de glicose; a cultura foi negativa. O swab da secreção do ouvido direito mostrava no exame direto a presença de diplococos gram-positivos e alguns cocos gram-positivos, e na cultura cresceu Streptococcus alfa-hemolítico. A ressonância nuclear magnética (RNM) confirmava os achados de mastoidite aguda e revelava petrosite temporal à direita (Figura 3). Com base nos achados clínicos e radiográficos foi feito o diagnóstico de Síndrome de Gradenigo.

Na internação, iniciou-se antibioticoterapia venosa, inicialmente com oxacilina e ceftriaxone sendo substituído 7 dias depois por cefepime sendo continuado por mais 21 dias, num total de 28 dias de terapia. No segundo dia de antibioticoterapia houve regressão da cefaléia e rigidez de nuca. Durante a internação, o paciente apresentou agravamento das náuseas e vômitos e dor abdominal no quadrante superior direito. Os exames laboratoriais, incluindo sorologia, confirmaram hepatite A aguda.

Ao final de 28 dias internado, o paciente apresentava-se assintomático, exceto pela paralisia do 6º par craniano à direita. Feito TCC, que mostrava-se normal, obteve alta hospitalar com amoxilina e clavulanato por mais 7 dias.

No acompanhamento ambulatorial, 3 semanas após deixar o hospital, houve involução total da paralisia do 6º par craniano à direita (Figura 4). O paciente repetiu a RNM 2 meses após a alta, mostrando-se normal.

Discussão

O paciente deste caso apresentava sinais e sintomas clássicos da Síndrome de Gradenigo cuja etiopatogenia pode ser entendida pela descrição da anatomia da porção petrosa do osso temporal. Esta área tem a forma de pirâmide; na sua base encontra-se a mastóide e o ouvido médio e seu ápice encontra-se separado apenas pela dura-máter do gânglio do nervo trigêmeo e do canal de Dorello, por onde passa o nervo abducente. A disseminação da base para o topo ocorre através das células aeradas; estas são encontradas em 80% das pessoas na mastóide e em apenas 30% no ápice da parte petrosa1. Nessas últimas células, há osteíte e conseqüente leptomeningite, levando ao distúrbio dos nervos cranianos pela proximidade das estruturas nervosas já citadas. Entretanto, há relato de apicite petrosa em ossos temporais não pneumatizados com provável disseminação direta da infecção por osteomielite, planos faciais e canais vasculares2.

O intervalo de tempo do início da otite até o comprometimento dos nervos cranianos pode variar de 1 semana, como no caso apresentado, até 2 a 3 meses3. Os patógenos mais comuns são os Streptococcus hemolitiícos e pneumococos4, mas alguns autores relatam grande freqüência de Staphylococcus aureus e em casos crônicos, Pseudomonas aeruginosa1. A maioria dos pacientes se apresenta com hiperestesia na área de inervação do trigêmeo, principalmente no seu ramo oftálmico, diplopia e evidências de infecção em ouvido médio.

A petrosite pode ser classificada em aguda ou crônica, de acordo com seu curso clínico e gravidade da doença5,6. A forma aguda é caracterizada por infecção inespecífica com processo inflamatório envolvendo a mucosa e o tecido ósseo, com achados semelhantes em ouvido médio e mastóide, enquanto a forma crônica é marcada por espessamento da membrana mucosa do osso petroso como resultado do proliferação fibrosa. Freqüentemente, nessa última forma, cria-se um espaço cístico central cercado por mucosa espessa envolta por tecido ósseo. Estas áreas levam ao encarceramento da infecção do processo crônico, tornando difícil o tratamento com terapia antimicrobiana apenas.

Os avanços na radiologia proporcionaram diagnóstico mais fácil do acometimento do ápice petroso, ao passo que o desenvolvimento dos antibióticos tornaram-no cada vez mais raro. A tomografia computadorizada7,8 pode mostrar velamento de células aéreas e envolvimento periostal com erosão em ápice petroso. A presença ou não de células aéreas próximo ao ápice da parte petrosa não descarta seu acometimento, como já foi discutido anteriormente. A ressonância nuclear magnética2,9 é útil para avaliar lesões em tecidos moles, mostrando, na maioria das vezes, imagem hipointensa em T1 na topografia de ápice petroso, hiperintensa em T2 e maior acentuação da região com o uso de contraste venoso (gadolíneo). No caso, houve ainda evidência de acometimento do seio cavernoso mostrando estreitamento da artéria carótida na sua porção intracavernosa (Figura 3).

O diagnóstico diferencial deve ser feito com hidrocefalia ótica10, abscessos intracerebrais e tumores de ápice petroso (como meningioma, neuroma ou metástases), colesteatoma e aneurisma intracraniano3.

Dentre as possíveis complicações11,12 encontramos meningite, acometimento de outros nervos cranianos (como facial e troclear), abscesso intracraniano, abscesso parafaríngeo/pré-vertebral, disseminação pelo plexo simpático ao redor da artéria carótida (levando à síndrome de Claude-Bernard-Horner) e disseminação para a base do crânio levando ao acometimento de nervos IX, X e XI (síndrome de Vernet). Casos graves podem evoluir com hemorragia por lesão da parede da carótida e/ou trombose dos seios venosos basais3.

Historicamente, o tratamento da petrosite tem sido por intervenção cirúrgica13. Entretanto, algumas situações têm permitido a opção por um tratamento mais conservador, especialmente quando não há sinais de otite crônica. Esta forma de tratamento para apicite petrosa aguda vem mostrando bons resultados com o uso de antibióticos de amplo espectro e com boa penetração intracraniana associado a miringotomia. No caso apresentado foi iniciado ceftriaxona com oxacilina, substituídos 7 dias depois por cefepime, em virtude do quadro de hepatite aguda e possível hepatotoxicidade da oxacilina, mantido até completar 4 semanas de antibioticoterapia venosa. Na época da alta, já sem sinais de infecção, foi mantido por mais 7 dias antibioticoterapia por via oral com amoxilina/clavulanato. Foi descartada a realização de miringotomia ou qualquer intervenção cirúrgica neste caso. O tratamento mais agressivo com mastoidectomia fica reservado para pacientes com quadro refratário a terapia conservadora ou que demonstrem sinais de processo crônico13.

Na literatura encontramos poucos relatos de tratamento conservador. Minnoti14, em 1999, utilizou como tratamento miringotomia, antibioticoterapia venosa por 4 dias (com melhora da paralisia de sexto par ao fim) e oral por mais 3 semanas. Marianowski15, em 2001, relatou miringotomia com antibioticoterapia venosa por 33 dias (ceftriaxona, metronidazol e amicacina, este último por apenas 3 dias), confirmando a melhora total da paralisia do nervo abducente após aproximadamente 60 dias do início do tratamento. Tutuncuoglu16 (1993) relatou o uso de ceftriaxona e metronidazol por 2 semanas seguido de cotrimoxazol por mais 6 semanas, ocorrendo melhora da paralisia com 3,5 meses. A melhora da dor facial na área de inervação do nervo trigêmeo ocorreu sempre dentro da primeira semana após início da antibioticoterapia intravenosa. Neste caso apresentado, a melhora da dor facial, apresentada como cefaléia, ocorreu com 2 dias de uso de antibióticos e a paralisia do nervo abducente resolveu-se completamente com 48 dias após o início do tratamento.


Figura 1. Paciente olhando para direita; notar que olho direito não acompanha o esquerdo neste movimento.


Figura 2. TC com velamento de células da mastóide direita, tecidos com densidade de partes moles ocupando conduto auditivo externo e orelha média.


Figura 3. RNM com líquido nas células da mastóide e na orelha média bilateralmente; redução do calibre da artéria carótida interna direita na sua porção intracavernosa.


Figura 4. Paciente olhando para direita; notar completa melhora da paralisia do nervo abducente à direita.


Comentários Finais

A síndrome de Gradenigo, apesar da ocorrência rara após o surgimento dos antibióticos, deve ser sempre considerada quando houver dor facial e paralisia de nervo abducente num quadro de otite média. Sua abordagem clássica consistia em uma intervenção cirúrgica agressiva. Entretanto, novos relatos vem descrevendo bons resultados com tratamento conservador, reservando a cirurgia para casos crônicos e refratários à terapia clínica.

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[1] Graduando de Medicina do 6o ano da Universidade Federal Fluminense.
[2] Prof. Adjunto da Disciplina de Pediatria da Faculdade de Medicina da Universidade Federal Fluminense.
[3] Graduando de Medicina do 6o. ano da Universidade Federal Fluminense.
[4] Chefe do Serviço de Radiologia do Hospital da Casa de Portugal.
[5] Prof. Adjunto da Disciplina de Otorrinolaringologia da Faculdade de Medicina da Universidade Federal Fluminense.

Trabalho realizado no Hospital Universitário Antonio Pedro da Universidade Federal Fluminense.

Endereço para correspondência: Felippe Felix - R.Cel. Moreira César 229 sala 1815

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