ISSN 1806-9312  
Quarta, 30 de Outubro de 2024
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381 - Vol. 69 / Edição 2 / Período: Março - Abril de 2003
Seção: Artigo Original Páginas: 252 a 255
Rinite vasomotora pós-cirúrgica: diagnóstico diferencial de rinoliquorréia
Autor(es):
Roberto E.S. Guimarães[1],
Helena M. G. Becker[2],
Alexandre V. Giannetti[3],
Paulo Fernando T. B. Crossara[4],
Celso G. Becker[5],
Luciana M. Nogueira[6]

Palavras-chave: rinoliquorréia, rinite, vasomotora.

Keywords: CSF rhinorrhea, vasomotor, rhinitis.

Resumo: A fístula liquórica é complicação presente em cerca de 30% dos casos de cirurgias em base de crânio e deve ser diagnosticada corretamente a fim de evitar complicações graves, como, por exemplo, a meningite. Nas últimas décadas o otorrinolaringologista tem exercido importante papel no diagnóstico e tratamento desta entidade através da correção da fístula. Relatamos neste trabalho o caso de uma paciente submetida à cirurgia de base de crânio com acesso endonasal que apresentou uma evolução similar à fístula liquórica. Acredita-se que esta pseudo fístula liquórica ocorre nesses pacientes por uma alteração do suprimento autonômico das glândulas nasais com predomínio do parassimpático. O otorrinolaringologista deve estar atento para esta manifestação e tê-la sempre em mente ao fazer o diagnóstico de fístula liquórica. A dosagem de glicose no líquido nasal na suspeita de fístula liquórica é um importante meio diagnóstico e deve ser realizada, sempre que possível, antes da cirurgia corretiva.

Abstract: The CSF fistula is a postoperative event in around 30% of the skull base surgeries and should be correctly diagnosed to avoid severe complications as meningitis. In the last decades, the otorhinolaryngologist has developed an important role in this condition in the diagnosis and treatment by repairing the fistula. This article presents a case of a patient who underwent an endonasal surgery of the skull base and had presented a clinical behavior similar to CSF fistula. It is believed that the pseudo CSF fistula happens because of a dysfunction of the autonomic innervation of the nasal glands and a consequent increased activity parasympathetic. The otorhinolaryngologist must be aware of this problem and should consider it in the differential diagnosis of CSF fistula. The analysis of nasal fluid for glucose levels in an important and easy method to diagnose CSF fistula and must be done before the corrective surgery.

INTRODUÇÃO

A fístula liquórica (FL) é complicação presente em cerca de 30% dos casos de cirurgias em base de crânio e deve ser diagnosticada corretamente a fim de evitar complicações graves, como, por exemplo, a meningite. Nas últimas décadas o otorrinolaringologista tem exercido importante papel no diagnóstico e tratamento desta entidade através da correção da fístula por meio de técnicas extracranianas que são consideradas de menor complexidade cirúrgica quando comparadas às intracranianas, o que diminui a morbi-mortalidade pós-operatórias.

O objetivo deste trabalho é relatar um caso de pseudo fístula liquórica como complicação pós-operatória de cirurgia de base de crânio, sua provável fisiopatologia, diagnóstico e tratamento.



REVISÃO DA LITERATURA

A rinoliquorréia (RLR) é definida como a presença de líquido cefaloraquidiano (LCR) na cavidade nasal e implica na existência de uma abertura óssea e dural colocando em comunicação o espaço subaracnóideo com as cavidades contaminadas das vias aéreas superiores. Manifesta-se, principalmente, por rinorréia hialina unilateral, podendo evoluir para meningite. Lewin (1954) relata que a incidência de meningite nos casos de RLR é de 25% mesmo naqueles em que ela tenha cessado espontaneamente1. Leech e Paterson (1973) relatam uma incidência de 9% de meningite em RLR2.

As fístulas liquóricas (FL) podem ser classificadas como traumática e não-traumáticas. Fístulas traumáticas são as mais comuns e geralmente relacionadas a traumatismos crânio- faciais. Podem também ser secundárias às vias de acesso cirúrgico para a base do crânio ou às cirurgias microendoscópicas para o tratamento das doenças nasossinusais. Apesar do desenvolvimento das técnicas neurocirúrgicas, as FL são observadas em cerca de 30% das cirurgias de base de crânio3. Fístulas não-traumáticas são menos freqüentes. Podem ser devidas à hipertensão liquórica ou podem estar presentes em líquor normotenso, resultantes de fatores congênitos4.

Os sintomas dos pacientes com fístula liquórica são rinorréia clara, hialina, muitas vezes unilateral e que piora com esforço físico, tosse, espirro e mudança de posição da cabeça. Meningites de repetição sem causa aparente podem fazer parte do quadro clínico5.

Exames complementares são importantes para o diagnóstico correto. A tomografia computadorizada de crânio e seios paranasais com injeção de contraste liquórico (cisternotomografia) pode demonstrar o local da fístula em 46 a 81% dos casos, de acordo com vários autores6,7.

A dosagem de glicose na secreção nasal apresenta elevada acuidade diagnóstica na RLR. A concentração de glicose maior ou igual a 30 mg/dl no líquido testado confirma a presença de rinoliquorréia em paciente com glicemia normal5,8,9. O teste com glicofita, por outro lado, não é recomendado, pois apresenta grande número de resultados falso positivos. Segundo Calcaterra (1980), a glicofita pode dar reação positiva com pequena quantidade de glicose, podendo assim, caracterizar como líquor outras secreções, tais como secreção da glândula lacrimal ou secreção nasal9.

Na suspeita de rinoliquorréia é importante considerar os diagnósticos diferenciais desta patologia, como, por exemplo, a rinite vasomotora que pode simular uma fístula liquórica que, se não diagnosticada corretamente, pode levar a procedimentos invasivos e até a intervenções cirúrgicas para correção da pseudo fístula. A dosagem de glicose na secreção nasal é sempre menor que 30 mg/dl nos casos de pseudo fístula.

Rinite vasomotora resulta primariamente de disfunção autonômica. A prevalência do parassimpático pode ser induzida por estimulação central ou periférica. É importante o conhecimento da anatomia e fisiologia da inervação autonômica nasal para identificarmos as causas possíveis de rinite vasomotora.

As fibras pré-ganglionares parassimpáticas da mucosa nasal nascem de corpos celulares no núcleo salivatório superior e emergem do tronco encefálico via nervo intermédio. As fibras deixam o gânglio geniculado para formar o nervo grande petroso superficial que, ao sair do osso temporal, se une ao nervo petroso profundo para formar o nervo vidiano. As fibras parassimpáticas fazem sinapse no gânglio pterigopalatino e são distribuídas para as glândulas da mucosa nasal e glândula lacrimal, onde fornecem o suprimento secretório-motor. As fibras simpáticas nascem dos cornos laterais da substância cinzenta dos primeiro e segundo segmentos torácicos da medula e fazem sinapse no gânglio cervical superior. As fibras desmielinizadas pós-ganglionares formam o plexo periarterial ao redor da artéria carótida interna e formam o nervo petroso profundo que se junta ao grande petroso superficial formando o nervo vidiano. Estas fibras passam pelo gânglio pterigopalatino onde não fazem sinapse e são distribuídas pela mucosa nasal. O suprimento simpático nasal é dirigido principalmente para o sistema vascular e em pequena quantidade para as glândulas3,10.

A estimulação da cadeia cervical simpática produz vasoconstrição da mucosa nasal, a qual é abolida após secção do nervo vidiano. Isto demonstra que o nervo vidiano é a via mais importante de inervação simpática da mucosa nasal. Contrariamente, estimulação de fibras parassimpáticas causa congestão do tecido cavernoso do nariz e produção de secreção fluida11.

Alteração de estado emocional, cansaço e dor podem resultar em estimulação hipotalâmica que causa um excesso de estímulo parassimpático produzindo a reação vasomotora nasal. O outro mecanismo possível é pela estimulação do principal gânglio parassimpático: o pterigopalatino12. Krajina e Poljak (1975) sugeriram que a rinite vasomotora possa ser resultante de estimulação do gânglio mesmo por estímulo externos. Sangramento no gânglio pode ser um possível estímulo13.

Traumas nasais resultantes de septoplastias, rinoplastias e fraturas nasais podem atuar como fator etiológico em potencial para causar rinite vasomotora12,14. Segal et al. (1999) demonstraram uma diferença estatisticamente significativa na freqüência de rinite vasomotora entre pacientes que apresentaram traumas nasais e controles12. Beekhuis (1976) relatou a ocorrência de 10% de rinite vasomotora em pacientes submetidos a rinoplastia14.

Apresentação do caso clínico

Paciente NPS, 52 anos, sexo feminino, foi admitida no Hospital das Clínicas-UFMG em março de 1998 com quadro clínico de acromegalia de seis anos de evolução. A dosagem hormonal sérica confirmou o aumento do hormônio de crescimento (62 mg %), enquanto as demais funções da hipófise mostravam-se preservadas. A ressonância magnética revelou um macroadenoma hipófisário. A paciente foi submetida a exérese cirúrgica do referido tumor. O acesso à hipófise via transeptoesfenoidal foi realizado pela equipe de Otorrinolaringologia. Durante o procedimento cirúrgico removeu-se toda a massa tumoral, não sendo observado saída de líquido céfalo raquidiano e realizou-se o fechamento com fragmentos de gordura e Surgicelâ no interior da fossa hipofisial e do seio esfenóide com fragmentos ósseos.

A paciente apresentou no pós-operatório imediato rinorréia hialina, bilateral, o que levou à suspeita de FL.

A tomografia de base anterior do crânio e fossa hipofisial com contraste intratecal realizada neste período não evidenciou saída de líquor para os seios. O teste com glicofita foi positivo, mas a dosagem de glicose no líquido nasal encontrada foi de 10 mg/dl, valor considerado normal. Observou-se também que não havia aumento de drenagem do líquido nasal com a manobra de Valsalva. Devido a estes achados, suspeitou-se de uma pseudo fístula liquórica e optou-se por tratamento clínico com brometo de ipatrópio intranasal. A paciente apresentou melhora dos sintomas em 24 horas e manteve-se assintomática em controles até dois anos pós tratamento. Do ponto de vista endocrinológico cursou com hipotireoidismo e o restante dos hormônios com níveis séricos normais. A última dosagem do hormônio do crescimento encontra-se normal (2,4 mg/dl). Houve melhora das características de acromegalia. A ressonância magnética mostra hipófise preservada e sem recidiva tumoral.

Discussão

Fístula liquórica é uma complicação presente em cerca de 30% das cirurgias de base de crânio3. Seu correto diagnóstico e tratamento são importantes para evitar complicações. Os sintomas dos pacientes com fístula liquórica são rinorréia clara, hialina, muitas vezes unilateral e que piora com esforço físico, tosse, espirro e mudança de posição da cabeça. A paciente do nosso caso clínico apresentou sintomas no pós operatório imediato de adenoma de hipófise que simularam uma fístula.

Os exames complementares neste caso foram importantes para a definição do diagnóstico. A tomografia computadorizada de seios da face com injeção de contraste liquórico pode demonstrar o local da fístula em 46 a 81% dos casos6,12. Neste caso, a tomografia realizada não evidenciou uma fístula, o que não excluiu o diagnóstico. A dosagem de glicose menor que 30 mg/ml na secreção nasal foi de fundamental importância para o diagnóstico de pseudo fístula pois este exame apresenta elevada acuidade diagnóstica e sua concentração maior ou igual a 30mg/ml confirma a presença de rinoliquorréia em paciente com glicemia normal5,8,9.

Há poucos casos de rinite vasomotora relacionados com trauma cirúrgico relatados na literatura. Segal et al. (1999) demonstraram uma diferença estatisticamente significativa na freqüência de rinite vasomotora entre pacientes que apresentaram traumas nasais e controles12. Beekhuis (1976) relatou a ocorrência de 10% de rinite vasomotora em pacientes submetidos a rinoplastia14. Os autores acreditam que o trauma nasal ocasionado pelo acesso cirúrgico nesta paciente tenha levado a alterações anatômicas nos tecidos nasais, que culminaram na estimulação direta do parassimpático ou na denervação simpática, ocasionando a rinite vasomotora.

O tratamento da pseudo fístula é realizado com sucesso com uso de bloqueadores parassimpáticos como atropina ou brometo de ipatrópio que restauram o equilíbrio autonômico da mucosa nasal. A boa resposta ao tratamento reforça o correto diagnóstico.

Comentários finais

O otorrinolaringologista e neurocirurgião devem estar atentos para o fato de que a rinorréia hialina pós-operatória pode ser uma rinite vasomotora, caracterizando uma pseudo fístula liquórica. Este diagnóstico diferencial pode evitar procedimentos invasivos e até mesmo cirurgias desnecessárias.

A dosagem de glicose na secreção nasal na suspeita de fístula liquórica é um importante meio diagnóstico e deve, sempre que possível, ser realizada antes da cirurgia corretiva. A prova terapêutica deve ser realizada quando há suspeita de rinite vasomotora para confirmação diagnóstica.

Referências Bibliográficas

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[1] Professor Adjunto do Departamento de Oftalmo-Otorrino e Fonoaudiologia da Faculdade de Medicina da UFMG.
[2] Professora Adjunta do Departamento de Oftalmo-Otorrino e Fonoaudiologia da Faculdade de Medicina da UFMG.
[3] Mestre em Neurocirurgia. Neurocirurgião do Hospital das Clínicas da UFMG.
[4] Doutorando em Otorrinolaringologia. Preceptor do Hospital das Clínicas - UFMG.
[5] Professor Assistente do Departamento de Oftalmo-Otorrino e Fonoaudiologia da Faculdade de Medicina da UFMG.
[6] Residente de Otorrinolaringologia do Hospital das Clínicas- UFMG.

Departamento de Oftalmo-Otorrino e Fonoaudiologia da Faculdade de Medicina - UFMG

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