INTRODUÇÃO
O censo do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística / 2000) revela que há no Brasil 24,5 milhões de pessoas com deficiência, o que corresponde a 14,5% da população. Destes, 16,7% apresentam deficiência auditiva, ou seja, existem no Brasil 5.735.099 (cinco milhões setecentos e trinta e cinco mil e noventa e nove) surdos1.
Problemas de comunicação interpessoal estão presentes em todo sistema de saúde e tornam-se mais significantes quando englobam barreiras de linguagem e cultura. A comunidade surda, que utiliza a língua de sinais como meio de comunicação, encontra obstáculos no acesso aos serviços do setor de saúde2.
A palavra comunicar vem do latim communicare, que tem por significado "pôr em comum". Ela pressupõe entendimento entre as partes envolvidas. Daí a pertinência de duas questões: em relação aos pacientes surdos, os médicos conseguem compreender suas expressões não-verbais? Os indivíduos surdos compreendem as informações do médico?
As informações recebidas pelos pacientes colaboram na relação médico-paciente, diminuem a sensação de isolamento e aumentam a satisfação e a participação no tratamento. Comunicar as questões relacionadas ao diagnóstico e ao tratamento é um dever dos médicos e um direito dos pacientes 3-4.
A relação dos médicos com seus pacientes que não têm deficiência auditiva geralmente é estabelecida pelo código verbal, mecanismo habitualmente não utilizado pelos pacientes surdos. Diante disso surge a necessidade de recorrerem a um outro canal para se expressar, representado pela Língua de Sinais5. Contudo, esta linguagem quase sempre não é compreendida por aqueles que lhes prestam assistência na área de saúde. Analisar o processo de construção das formações discursivas, os vínculos estabelecidos e investigar as relações que ocorrem neste cenário torna-se imprescindível para viabilizar um atendimento adequado, do ponto de vista técnico e humano.
A partir de uma visão inclusivista a Organização Mundial de Saúde apresentou em 2003 um novo modelo de avaliação das deficiências, Classificação Internacional de Funcionalidade - CIF. Até então as pessoas com deficiências eram avaliadas apenas pelos parâmetros do Código Internacional de Doenças - CID. O CID faz aferição sob o ângulo da enfermidade e o CIF realiza sua avaliação a partir da funcionalidade. Cumpre salientar que o Brasil assinou acordo, juntamente com outros países, comprometendo-se a adotar oficialmente esta nova referência a partir do ano de 20046.
A adoção do CIF não elimina o uso do CID, como destaca Rizzo6 que assim se expressou: "A informação sobre o diagnóstico, associada à informação sobre a funcionalidade, permite uma visão mais ampla da realidade da pessoa, o que facilita a decisão sobre o tipo de intervenção a ser realizada". Vale a pena repetir sua comparação: "É como se o CID fosse uma fotografia e a CIF um filme".
Admitindo-se a complexidade da relação do médico com pacientes surdos, torna-se necessário conhecer os aparatos legais que a regem, bem como compreender a identidade da pessoa surda e os fatores culturais que caracterizam a comunidade surda, sendo estes os diferenciais essenciais na qualidade dos serviços prestados a essa população.
OBJETIVO
O objetivo deste artigo é analisar a produção científica que aborda os aspectos legais e socioculturais da relação do paciente surdo com o médico em publicações que integram a Biblioteca Virtual em Saúde - BVS.
MÉTODOS
Esta revisão foi realizada em junho de 2006 na Biblioteca Virtual em Saúde - BVS, utilizando-se as bases de dados da Literatura da América Latina e do Caribe em Ciências da Saúde (LILACS) e da Literatura Internacional (MEDLINE). O período avaliado foi de 1996 a 2006, utilizando-se os termos "paciente", "surdo", "saúde" e "comunicação" como palavras-chave. Realizou-se também busca não-sistemática em publicações científicas referentes ao tema relação médico-paciente.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
A comunicação do paciente surdo com o médico ouvinte
Pacientes surdos utilizam o sistema de saúde de modo diferente dos pacientes ouvintes e relatam dificuldades representadas por medo, desconfiança e frustração. A conseqüência é buscarem assistência médica com menos freqüência7. Isso fica evidente no depoimento de uma paciente que assim se expressou: "Tive medo de não ser compreendida, tive que esperar mais ou menos 5 dias para minha mãe chegar e ir comigo ao médico".
É inegável a necessidade de uma melhor comunicação dos médicos com os pacientes surdos, no entanto a comunicação com as pessoas surdas continua negligenciada nos sistemas de saúde8. Por isso, a linguagem não-verbal é um recurso de comunicação que precisa ser conhecido e valorizado na prática das ações em saúde. Mesmo que não se conheça a Língua de Sinais, é fundamental interpretar seus aspectos suprassegmentais que incluem gestos, expressões faciais e corporais9. Outra paciente abordou esta questão da seguinte maneira: "Seria bom se os profissionais da saúde soubessem a Língua de Sinais. A doença muitas vezes não pode esperar até que se consiga um intérprete, o quadro pode se agravar. Foi o que aconteceu comigo".
Em geral, os médicos não estão suficientemente preparados para cuidar do paciente surdo, pois na formação acadêmica o currículo não contempla as habilidades necessárias para atender essa população10. Sem dúvida, uma efetiva comunicação com pacientes surdos é primordial na área de saúde, isto porque uma comunicação inadequada pode levar a erros no diagnóstico das doenças e no tratamento11.
A especialização crescente dos médicos resulta na fragmentação do paciente, dando origem à separação entre a medicina das doenças e a medicina dos doentes, fazendo com que o paciente receba assistência de vários profissionais sem formar vínculos com nenhum deles. Afinal o ser humano não é a soma de suas partes, pelo contrário, é uma unidade da qual o ser biológico, psíquico e social não podem ser separados12.
Cumpre ressaltar que a língua escrita poderia ser uma maneira de superar a dificuldade na assistência a pacientes deficientes auditivos ou pessoas surdas que se comunicam oralmente, mas esta é imprópria para os indivíduos que ficaram surdos antes da aquisição da linguagem oral e aprenderam a Língua de Sinais como primeira língua10. Para estas pessoas, o português é uma segunda língua, e como qualquer língua estrangeira, seu aprendizado é difícil9. Tal fato fica claro na observação de um paciente que assim se expressou na Língua de Sinais: "O médico escreve a hora que tem que tomar remédio, isso é fácil. Difícil é entender as explicações da doença, para que serve o remédio".
A competência para estabelecer uma comunicação eficiente, respeitando as diferenças culturais, deve incluir os aspectos da comunicação não-verbal e habilidades de perceber e decodificar a mensagem transmitida pelo paciente4. Um dos maiores fatores que interferem na qualidade e adequação da assistência prestada pelos profissionais da saúde aos pacientes surdos, é a não-consciência de quem é a pessoa surda, associado a inabilidade de uma comunicação não-verbal13.
Experiências relatadas pelos pacientes que buscam assistência em saúde mostram que acompanhados de intérpretes, médicos que sabem a Língua de Sinais ou se esforçam para melhorar a comunicação, usando figuras, desenhos e expressões não verbais, melhoram a qualidade da assistência à saúde7.
O surdo, sua língua e a relação médico-paciente
A surdez caracteriza-se pela redução da percepção do som, em grau variado, o que dificulta a aquisição da linguagem oral de forma natural. Aí, então, a comunidade surda passa a usar a língua de sinais como primeiro meio de comunicação, sendo este um dos fatores que despertam o sentimento de pertencimento a uma cultura, embora nem todas as pessoas surdas se consideram membros de uma comunidade, com características únicas, linguagem e normas sociais. Um fato a ser ressaltado é que a surdez distingue-se de outras deficiências, não pela deficiência física propriamente dita, mas pela dificuldade de estabelecer comunicação entre pessoas14.
Para vencer estas barreiras surgiram as Línguas de Sinais, presentes nos cinco continentes. No Brasil a LIBRAS (Língua Brasileira de Sinais) foi reconhecida como meio legal de comunicação e expressão da comunidade surda pela Lei Federal nº 10.436/02. Em 22 de dezembro de 2005, foi publicado no Diário Oficial da União o Decreto nº 5.626 que a regulamenta. Destacaremos o artigo 25 do Capítulo VII que garante a saúde das pessoas surdas:
"A partir de um ano da publicação deste Decreto, o Sistema Único de Saúde - SUS - e as empresas que detêm concessão ou permissão de serviços públicos de assistência à saúde, na perspectiva da inclusão plena das pessoas surdas ou com deficiência auditiva em todas as esferas da vida social, devem garantir a atenção integral à saúde, nos diversos níveis de complexidade e especialidades médicas, efetivando:
I - ações de prevenção e desenvolvimento de programas de saúde auditiva;
II - tratamento clínico e atendimento especializado, respeitando as especificidades de cada caso;
IX - atendimento às pessoas surdas ou com deficiência auditiva na rede de serviços do SUS e das empresas que detêm concessão ou permissão de serviços públicos de assistência à saúde, por profissionais capacitados para o uso de Libras ou para sua tradução e interpretação; e
X - apoio à capacitação e formação de profissionais da rede de serviços do SUS para o uso de Libras e sua tradução e interpretação"15.
Nesta linha de ação o Ministério da Saúde elaborou o manual "A Pessoa com Deficiência e o Sistema Único de Saúde", destinado aos médicos, enfermeiros e outros profissionais das equipes de saúde, no qual propõe a inclusão social das pessoas com deficiência como meta mais abrangente. Entre as informações contidas neste manual destaca-se a seguinte: "A atenção integral à saúde, destinada à pessoa com deficiência, pressupõe uma assistência específica à sua condição, ou seja, serviços estritamente ligados à sua deficiência, além de assistência a doenças e agravos comuns a qualquer cidadão"16.
A aprovação da Lei Federal nº 10.436/02 resultou da luta da comunidade surda brasileira que utiliza a língua de sinais. Cabendo às instituições públicas oportunizar programas que visem à formação dos profissionais da área de saúde no atendimento e tratamento dos pacientes surdos17.
A Língua de Sinais não é uma escolha, é a língua da comunidade surda. O acesso à informação nesta língua não está bem definido, pois existem barreiras que dificultam a compreensão das doenças e as decisões referentes à saúde18. Em estudo realizado nos Estados Unidos, verificou-se que os pacientes surdos preferem ser atendidos por médicos que sabem a Língua de Sinais ou médicos que são surdos7.
Comunicando-se por uma língua espaço-visual e com características culturais próprias, as pessoas surdas podem apresentar significantes lacunas no conhecimento na área da saúde19. Para exemplificar esta dificuldade, destacamos a seguinte manifestação de um paciente surdo: "A comunicação é difícil entre os profissionais da saúde, falta compreender melhor o surdo, só dar receita, não resolve".
CONCLUSÃO
Esta revisão mostrou que pacientes surdos e médicos quando se encontram, deparam-se com barreiras comunicativas que comprometem o vínculo a ser estabelecido e a assistência prestada, podendo prejudicar o diagnóstico e o tratamento.
Em primeiro lugar é necessário conhecer as particularidades da identidade e da cultura surda de modo a propiciar o desenvolvimento de habilidades comunicativas e favorecer a relação entre pacientes surdos e médicos.
Como determina a Lei de LIBRAS 10.436/02, os direitos da comunidade surda precisam ser resguardados, assegurando a formação dos profissionais da área de saúde na adequada assistência a esta parcela significativa da população.
Conhecer e compreender as várias questões que envolvem o atendimento à pessoa surda vai favorecer a interação entre pacientes e médicos, reduzindo significativamente o desconforto de ambos no encontro clínico.
Pode-se concluir que são necessários estudos na área de saúde referentes à assistência ao paciente surdo, haja visto a escassez de material bibliográfico e de pesquisa.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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1 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Saúde da Universidade Federal de Goiás. Fonoaudióloga e intérprete da LIBRAS - Língua Brasileira de Sinais - do Centro Estadual de Apoio ao Deficiente. 2 Professor Emérito da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Goiás. Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Saúde da Universidade Federal de Goiás. 3 Professora Adjunta III, Doutora docente da Faculdade de Enfermagem - UFG - Universidade federal de Goiás. Docente da Faculdade de Enfermagem. Universidade Federal de Goiás - Programa de Pós-Graduação em Ciências da Saúde. Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Goiás Endereço: 1ª Avenida S/N - Setor Universitário Goiânia GO. Endereço para correspondência: Neuma Chaveiro Av. K esq. c/ 6-A nº 138 apto. 101 Ed. Sândalo Setor Aeroporto Goiânia GO 74075-200 Tel. (0xx62) 3223-0517/ 9983-1780 - Fax (0xx62) 3209-6151 - E-mail: neumachaveiro@ig.com.br Este artigo foi submetido no SGP (Sistema de Gestão de Publicações) da RBORL em 6 de dezembro de 2006. cod. 3546. Artigo aceito em 11 de janeiro de 2007.
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