INTRODUÇÃOA ototoxicidade ainda é um grande desafio para medicina nos dias atuais. Não obstante o grande número de pesquisas que são realizadas sobre o tema pelos mais renomados pesquisadores e centros de pesquisa em todo o mundo e pelo gradual avanço no conhecimento da fisiopatologia da ototoxicose, ainda não se conseguiu o satisfatório controle sobre o processo lesivo da orelha interna provocado pelos ototóxicos, em seres humanos. A irreversibilidade da lesão em grande parte dos casos é o outro ponto crítico do processo de ototoxicidade, levando a um problema social importante em conseqüência do estabelecimento da surdez1,2.
Dentre as drogas ototóxicas, indubitavelmente os aminoglicosídeos são os mais largamente utilizados devido à sua alta eficácia antimicrobiana e baixo custo. Recentemente vários estudos vêm sendo desenvolvidos visando encontrar mecanismos de proteção da orelha interna contra estes agentes lesivos, mostrando resultados promissores e vislumbrando um caminho na direção da solução deste grave problema.
Uma nova linha de pesquisa que a cada dia ganha importância é a que estuda os mecanismos endógenos de proteção da orelha interna. Enzimas antioxidantes têm sido demonstradas, como: catalase, superóxido-dismutase, glutationa-peroxidase, glutationa-redutase, glutationa-S-transferase. Também a glutationa, um tripeptídeo presente em todas as células de mamíferos, tem mostrado ação protetora sobre as células ciliadas externas in vitro contra citotoxicidade3,4.
Recentemente descobriu-se que pequenas doses não-tóxicas de amicacina ou gentamicina, administradas durante um determinado período de tempo, como habituação, previamente a administração de doses ototóxicas do mesmo aminoglicosídeo utilizado na habituação, protege a cóclea do efeito lesivo dose-dependente desta droga, o que poderia ser explicado pelo desencadeamento destes mecanismos endógenos de autodefesa5,6. Nestes estudos, dentre os métodos de avaliação da orelha interna nas lesões induzidas por drogas, a microscopia eletrônica de varredura e as emissões otoacústicas têm se destacado por sua praticidade e fácil execução.
Contribuindo para o entendimento dos mecanismos fisiopatológicos de otoproteção na orelha interna contra ototoxicidade induzida por drogas, este trabalho foi desenvolvido com os objetivos específicos de determinar se subdoses de habituação de gentamicina também protege contra ototoxicidade por amicacina e determinar se a amplitude de resposta da emissão otoacústica produto de distorção é um método de correlação para avaliar o nível de integridade morfológica das células ciliadas externas, em cobaias.
MATERIAL E MÉTODONo estudo foram utilizadas 31 cobaias albinas macho. Das 62 cócleas, duas foram desprezadas por apresentarem problemas técnicos na preparação, sendo incluídas 60 cócleas no estudo. Escolhemos cobaias albinas como animal experimental pela facilidade de manejo, dissecção coclear e manipulação e ainda pela igual facilidade de infusão de drogas anestésicas e drogas em experimentação seja pela via intraperitoneal, intramuscular ou subcutânea, quando comparados a outros animais experimentais.
Os cuidados seguiram as diretrizes do Guia para Cuidados e Uso de Animais de Laboratório do Institute of Laboratory Animal Resources, Comission on Life Sciences, National Research Council7. O protocolo experimental seguiu ainda os princípios éticos do Colégio Brasileiro de Experimentação Animal (COBEA) e foi submetido à análise e aprovação prévia da Comissão de Ética em Experimentação Animal (CETEA) da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, sob protocolo nº 086/2004.
Critérios de InclusãoOs animais foram selecionados no Biotério Central da Faculdade Medicina de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, através da presença do Reflexo de Preyer e peso variando entre 400 e 600 gramas. Após um repouso auditivo de 24 horas, os animais eram avaliados e submetidos à otoscopia externa. Os animais que apresentavam sinais de otite externa ou otite média aguda, cerume de difícil remoção, alterações inflamatórias do conduto auditivo externo ou mesmo conduto auditivo muito estreito para acomodar adequadamente a sonda do equipamento de emissões otoacústicas (EOA), eram descartados do experimento. Os que apresentavam rolha de cerume e tinham a mesma removida eram mantidos. Todos os animais incluídos eram então submetidos a uma triagem auditiva por emissão otoacústica produto de distorção (EOAPD) em cabine com isolamento acústico e sob anestesia com ketamina (65 mg/Kg). As cobaias que apresentavam EOAPD presentes nas duas orelhas eram selecionadas para o experimento e as demais excluídas.
Grupos de EstudoPara realização do estudo as cobaias foram divididas em quatro grupos:
GRUPO 1 - CONTROLE - SORO FISIOLÓGICO: Seis animais - doze cócleas, com administração de Soro Fisiológico 0,9% intramuscular em dose única diária, no mesmo volume correspondente à dose de amicacina para o peso da cobaia, durante 30 dias consecutivos.
GRUPO 2 - CONTROLE - GENTAMICINA: Cinco animais - dez cócleas, com administração intramuscular de Gentamicina na dose única diária de 10mg/kg/dia durante 30 dias consecutivos.
GRUPO 3 - ESTUDO - AMICACINA: Dez animais - dezoito cócleas, com administração intramuscular de Amicacina na dose única diária de 400mg/kg/dia, por doze dias consecutivos.
GRUPO 4 - ESTUDO - GENTAMICINA AMICACINA: Dez animais - vinte cócleas, com administração de intramuscular de Gentamicina na dose única diária de 10mg/kg/dia do 1º ao 30º dia, seguido pela de administração intramuscular de Amicacina na dose única diária de 400mg/kg/dia, por mais doze dias (31º ao 42º dia).
O uso de Gentamicina foi feito em dose considerada incapaz de provocar lesão significativa na orelha interna, baseado em estudo prévio de Maudonnet6 e confirmado pelo nosso Grupo Controle 2. O objetivo do uso da mesma era promover apenas uma habituação das CCE previamente à exposição a uma droga potencialmente ototóxica - a amicacina.
O uso da amicacina foi feito em dose considerada potencialmente ototóxica, baseada em estudos prévios de Oliveira et al.5 e Canedo8 e confirmado pelos resultados do Grupo de Estudo 3. O objetivo do uso da mesma era testar um possível aumento da resistência das células ciliadas externas (CCE) à lesão provocada pela amicacina quando expostas a uma dose prévia de habituação realizado com subdoses de gentamicina, efeito este estudado no Grupo de Estudo 4.
Avaliação Funcional AuditivaA avaliação funcional auditiva foi realizada através do Teste de Emissões Otoacústicas Produto de Distorção, utilizando-se o Equipamento ILO 92 CAE System Otodynamics LTD. As cobaias eram sedadas com ketamina para serem submetidas aos testes. Antes da realização do registro das EOAPD eram submetidas à otoscopia para avaliação do conduto auditivo externo e membrana timpânica. Somente as cobaias com emissões otoacústicas (EOA) presentes foram incluídas no estudo.
No Grupo 1 (Controle com SF 0,9%), Grupo 2 (Controle com Gentamicina) e Grupo 3 (Amicacina), as EOAPD foram realizadas no 1º dia de administração e 1 dia após o término da administração das drogas ou solução salina. No Grupo 4 (Gentamicina Amicacina) as EOAPD foram realizadas no 1º dia de administração da Gentamicina, no 31º dia quando se interrompia o uso de gentamicina e iniciava-se o uso de Amicacina e no 43º dia, 24 horas após a última dose de amicacina, imediatamente antes do sacrifício. Neste estudo utilizamos intensidades iguais de 70 dB NPS. A intensidade do estímulo desencadeante pode variar numa faixa de 0 a 70 dB NPS e podem ser medidas na faixa de 500 a 8000Hz. A metodologia descrita é a mesma utilizado por Hyppolito et al.9,10.
Consideramos mais importante as EOA nas freqüências mais agudas, que avaliam qualitativamente o estado funcional das células ciliadas externas na espira basal da cóclea, onde predominam as lesões por ototoxicidade induzida por aminoglicosídeos. Foram consideradas as EOAPD como presentes ou ausentes. Foi também analisado a variação da amplitude das EOA entre o início e o fim do experimento e comparado com o resultado da análise morfológica da orelha interna em cada cobaia.
Avaliação MorfológicaNo dia seguinte à ultima dose da droga ou solução salina administrada em cada um dos quatro grupos e, após realizada as EOAPD, os animais foram sacrificados com injeção letal de tiopental sódico (Thionembutal®) intraperitonial e as bulas imediatamente retiradas bilateralmente e abertas, expondo-se as cócleas. Em seguida, a abertura da bula timpânica, as cócleas eram preparadas para análise à microscopia eletrônica de varredura onde os principais passos foram: fixação através de banhos de glutaraldeído a 2,5%, solução tampão-fosfato 0,1M e tetróxido de ósmio; desidratação com etanol; secagem realizada no equipamento Bal-Tec CPD 030 através do método do ponto crítico, metalização das estruturas por vaporização de fina camada de ouro através do vaporizador Bal-Tec SCD 050 e fixação da cóclea em porta-espécime metálico (Figura 1).
Figura 1. Porta-espécime mostrando cóclea preparada para estudo em microscópio eletrônico.
Terminados os processos anteriores, as estruturas foram levadas para análise à microscopia eletrônica de varredura (MEV). O microscópio eletrônico utilizado foi o JEOL SCANNING MICROSCOPE - JSM 5200. A análise estrutural foi padronizada pelo estudo de um campo do terço médio das quatro espiras cocleares no aumento de 500 vezes. Uma vez que a varredura era feita na superfície do órgão de Corti, a imagem era congelada, fotografada e estudada através de um cocleograma (Figura 2). A condição de integridade ou não das células ciliadas foi definida pela análise dos estereocílios das mesmas. Células com estereocílios perfeitos eram consideradas íntegras. Células com estereocílios ausentes ou disformes eram consideradas lesadas5,9,10. As células ciliadas externas (CCE) normais e lesadas eram então contadas e tabuladas para análise estatística comparativa entre os grupos. O percentual de células normais e lesadas nas três primeiras espiras de cada cóclea era registrado para estudo nos diferentes grupos e posteriormente comparado com as emissões otoacústicas produto de distorção.
Figura 2. Cocleograma representando um campo de estudo das células ciliadas externas à microscopia eletrônica.
Quanto às EOAPD foi considerada a situação presente ou ausente. Foi também realizado um estudo estatístico para determinar possível correlação entre redução da amplitude das EOAPD e aumento da intensidade de lesão de CCE. A amplitude da resposta foi mensurada pela medida da intensidade média das EOAPD nas freqüências de 2 kHz a 5 kHz estabelecidas nos exames inicial e final, comparadas e classificadas em 4 tipos, lembrando que todas as cobaias apresentavam EOA presentes no exame inicial. Os tipos de respostas determinados para estudo foram:
Resposta A: EOA presentes no exame final com amplitude (intensidade média de respostas) variando até 25% em relação ao exame inicial.
Resposta B: EOA presentes no exame final com redução de amplitude de respostas variando de mais de 25% até 50% em relação ao exame inicial.
Resposta C: EOA presentes no exame final com redução de amplitude de respostas variando mais que 50% em relação ao exame inicial.
Resposta D: Ausência de EOA no exame final.
Os quatro tipos de respostas foram comparados com os achados morfológicos (CCE normais e lesadas à MEV) e a correlação entre estes dados analisada estatisticamente.
Análise EstatísticaOs dados foram analisados estatisticamente utilizando-se os programas SPSS. - Statistical Package for Social Scienses - Versão 10.0 e R Program Statistical Computing - Versão 2.2.1.
Para efeitos estatísticos foi considerada na comparação dos resultados e padronizada para análise a contagem das CCE normais e lesadas no terço médio das três primeiras espiradas cocleares, em um campo com aumento de 500 vezes à microscopia eletrônica de varredura (MEV).
RESULTADOSO Grupo 1 (Soro Fisiológico 0,9% - 30 dias) e o Grupo 2 (Gentamicina 10 mg/kg/dia - 30 dias) não apresentaram lesões significativas de células ciliadas externas à MEV em nenhuma cóclea. No Grupo 1, 100% das CCE mantiveram-se normais ao final do experimento, enquanto no Grupo 2, 94,2% das CCE também mantiveram-se normais. Na avaliação funcional, as EOAPD mantiveram-se presentes ao final dos 30 dias de experimento em ambas as orelhas em todas as cobaias incluídas nestes dois grupos (Figuras 3 e 4).
Figura 3. Fotomicrografia de órgão de Corti normal de cobaia do Grupo 1. CCI: célula ciliada interna; CCE: célula ciliada externa; F1: fileira 1; F2: fileira 2; F3: fileira 3. Aumento de 750x.
Figura 4. Teste de EOAPD (emissões otoacústicas produto de distorção) normal de cobaia do Grupo 1.
Nas cobaias do Grupo 3 (amicacina 12 dias) e do Grupo 4 (gentamicina 30 dias amicacina 12 dias) houve lesão de CCE em todas as cócleas examinadas nos dois grupos, em graus variados (Figura 5).
Figura 5. Fotomicrografia de órgão de Corti de cobaia do Grupo 3 mostrando lesão extensa, nas 3 fileiras, com ausência de quase todas as células ciliadas externas. Aumento de 500x.
No Grupo 3 as lesões variaram de 4,3% a 96,9%, com média de 46,4% de lesão de CCE (53,5% de células normais) para as 18 cócleas do grupo. As lesões ocorreram predominantemente nas 2 primeiras espiras que, desta forma, apresentaram um menor número de CCE normais do que a espira 3. As lesões foram também mais intensas na 1ª fileira de CCE, seguida pela 2ª fileira.
No Grupo 4 as lesões variaram de 5,7% a 100%, com média de 53,2% de lesão de CCE (46,8% de CCE normais) para as 20 cócleas do grupo. As lesões ocorreram predominantemente nas 2 primeiras espiras que, desta forma apresentaram um menor número de CCE normais. Foi também mais intensa na 1ª fileira de CCE, seguido pela 2ª fileira (Tabela 1).
Nos grupos 1 (soro fisiológico) e 2 (gentamicina), sem lesões morfológicas significativas, como já reportadas, as EOAPD estavam presentes e normais. No grupo 3 (n=18; lesão aguda por amicacina) elas estavam presentes em 11 orelhas, cuja média de CCE normais para estas 11 orelhas foi de 75,5%. Estavam ausentes ao fim do experimento em 7 orelhas, cuja média de CCE íntegras foi de 21,6% (Figura 6). Já no grupo 4 (n=20; uso de subdoses de gentamicina previamente a amicacina) as EOAPD estavam presentes em 12 orelhas, cuja média de CCE íntegras para estas orelhas foi de 68%. Estavam ausentes ao fim do experimento em 8 orelhas, cuja média de CCE íntegras foi de 18,9%. A relação entre CCE normal ou lesada e EOAPD presente ou ausente está demonstrada na Tabela 2.
Figura 6. Teste de EOAPD (emissões otoacústicas produto de distorção) de cobaia do grupo 3, mostrando ausência de respostas após aplicação da droga.
No total foram avaliadas 20.100 células ciliadas externas em 60 cócleas divididas nos 4 grupos, uma média de 335 CCE por cóclea.
Com relação à manutenção da arquitetura ciliar verificamos que nas células ciliadas externas lesadas os principais tipos de alterações encontradas foram: ausência de cílios (alteração mais comum), distorção do padrão em "v" para "w", tumefação e fusão ciliar (Figuras 7 e 8).
Figura 7. Fotomicrografia de órgão de Corti de cobaia mostrando estereocílios normais ao lado de célula com estereocílios alterados tumefeitos. Aumento de 7.500x.
Figura 8. Fotomicrografia de órgão de Corti de cobaia mostrando estereocílios fundidos. Aumento de 3.500x.
As lesões ocorreram em padrão decrescente de gravidade da 1ª e 2ª espiras para o ápice e da 1ª fileira de CCE para a 3ª. Não houve diferença significativa entre o grau de lesão entre as duas primeiras espiras no nosso trabalho. As células ciliadas internas (CCI), observadas, porém não consideradas para este estudo, apresentaram-se pouco lesadas nos grupos.
Não consideramos a espira apical por ser um local responsável pelos sons graves e os ototóxicos comprometem principalmente os sons agudos e também porque esta espira tem um desarranjo natural das células ciliadas que dificultam uma análise anatômica criteriosa. Da mesma forma não foi considerada para efeito de estudo as CCI por serem células menos susceptíveis à lesão por ototóxico e também por serem de difícil individualização e contagem, comparativamente com as CCE.
Um dos objetivos deste estudo era comparar o Grupo 3 (dose ototóxica de amicacina) com o Grupo 4 (dose ototóxica de amicacina precedida de dose de habituação de gentamicina) para avaliar se havia otoproteção pela gentamicina contra a ototoxidade da amicacina neste último grupo.
Para análise estatística, estes dois grupos (3 e 4) foram submetidos a um teste de distribuição de normalidade (Shapiro-Wilk Test). Neste teste o grupo 3 não apresentou distribuição normal. Por este motivo, no estudo estatístico, foi utilizado o teste não paramétrico U - Mann Whitney.
O teste comparativo entre CCE normais e lesadas nos grupos 3 e 4 encontrou p=0,501 aceitando-se desta forma a hipótese da nulidade, ou seja, não havia diferença estatística entre os dois grupos (Tabela 3). Portanto a gentamicina não protegeu as CCE da cobaia contra a ação ototóxica da amicacina. Realizamos também uma análise estatística do resultado encontrado entre as espiras 1 nestes dois grupos e repetimos o teste para as espiras 2 e 3. Da mesma forma não houve diferença estatística entre os grupos (p=0,65 entre as espiras 1; p=0,83 entre as espiras 2; p=0,36 entre as espiras 3). Finalmente realizamos um teste estatístico comparativo entre presença ou ausência de EOAPD entre os Grupos 3 e 4. Para efeito de cálculo estatístico, todas as EOA presentes, ainda que com redução de amplitude em relação ao exame inicial, eram consideradas como presentes. Neste caso, como se tratava de variável categórica, utilizamos o teste do qui-quadrado. O resultamos foi: p= 0,793 mostrando também não haver diferença entre os grupos 3 e 4 com relação a avaliação funcional das orelhas por EOAPD, coincidindo com a análise morfológica.
Para determinarmos se havia correlação estatisticamente significativa entre a diminuição da amplitude/intensidade das respostas de EOAPD e o aumento do grau de lesão de CCE, aplicamos o cálculo do coeficiente não-paramétrico de Spearman, cujo resultado (r = 0,81) mostrou haver correlação alta e significativa (p<0,001) entre diminuição da amplitude/intensidade das EOA e diminuição do número de CCE normais na orelha interna da cobaia (Tabela 4).
A comparação dos valores morfológicos entre as categorias de respostas de EOA foi realizada através da aplicação do Teste de Kruskal-Wallis (ANOVA não-paramétrica) que mostrou X2 = 39,75 (p<0,001), portanto, com diferença significativa entre os valores morfológicos dos diferentes tipos de respostas (Tabelas 5 e 6).
Para verificarmos quais diferenças eram significativas entre os diferentes tipos de respostas utilizamos o Teste Post Hoc de Dunn. Constatamos que a Resposta A possui valor equivalente a Resposta B e ambas são significativamente superiores às Respostas C e D, e que a Resposta C tem valores significativamente superiores aos de D: (A=B)>C>D, o que demonstra haver correlação entre a diminuição da amplitude das EOAPD e o aumento de lesão ou diminuição do número de CCE normais (Tabela 7).
DISCUSSÃOApesar de não haver dados fidedignos sobre a incidência de perda auditiva induzida por drogas na população mundial, sabemos que ainda hoje ela é significativa, principalmente pelo uso continuado dos aminoglicosídeos e quimioterápicos. Não obstante, a hipoacusia provocada por estas drogas tem um caráter de irreversibilidade, o que traz graves conseqüências sociais e psicológicas à população acometida, motivo este que justifica a continuidade das pesquisas que abordam ototoxicidade e otoproteção.
Dentre as drogas ototóxicas, os aminoglicosídeos são os mais estudados, seja por razões históricas ou por sua importância clínica11,12. Os inúmeros trabalhos de pesquisa sobre ototoxicidade utilizando estas drogas nos possibilitaram aprimorar o conhecimento sobre anatomofisiologia e bioquímica da orelha interna, sendo este o passo inicial para a descoberta de drogas menos tóxicas e meios de prevenção e proteção mais eficientes do Órgão de Corti.
Ainda segundo Oliveira e Bernal11, as lesões provocadas pelos aminoglicosídeos no órgão de Corti são predominantemente nas células ciliadas externas (CCE) e progridem da base para o ápice da cóclea. Nas espiras basais, a primeira fileira de CCE é também a primeira a ser lesada, seguindo-se para a segunda e terceira fileiras. Esta seqüência de lesões também coincide com a altura das CCE, sendo a espira basal a primeira a ser lesada, seguindo a segunda, terceira e por último as células apicais1. A estria vascular também pode estar envolvida, podendo haver mudança estrutural das células marginais11.
A identificação de mecanismos endógenos de autodefesa das células sensoriais do órgão de Corti, representado pelas enzimas de destoxificação e antioxidantes como a catalase, superóxido-dismutase e as glutationas-peroxidase, redutase e S-transferase e também a glutationa deu novo impulso às pesquisas sobre ototoxicidade e otoproteção, notadamente na proteção contra substâncias oxigênio-reativas13,14.
Recentemente foi demonstrado que pequenas doses de habituação (doses não-tóxicas) de um aminoglicosídeo administrado previamente à exposição a uma dose sabidamente ototóxica da mesma droga utilizada na habituação protege a cóclea contra o efeito lesivo desta. Este efeito foi comprovado para a amicacina5,8 e para gentamicina6. A explicação inferida foi de que pequenas doses não-tóxicas de um agente potencialmente ototóxico estimularia a cóclea a produzir substâncias endógenas de autodefesa de tal forma que quando ela recebesse a dose tóxica ela estaria melhor preparada para se defender, desta maneira conseguindo reduzir as lesões. Nestes estudos foi utilizada a microscopia eletrônica de varredura para exame do Órgão de Corti após administração das drogas, associado ao estudo funcional por emissões otoacústicas (EOA).
O nosso estudo buscou pela primeira vez analisar, aos moldes destes últimos trabalhos, o efeito do uso de um aminoglicosídeo utilizado em doses não tóxicas de habituação, sobre a ação potencialmente lesiva de outro aminoglicosídeo que não o mesmo utilizado na habituação, sendo este o ponto divergente em relação às pesquisas realizadas pelos autores anteriormente citados. As drogas utilizadas em nossa pesquisa foram a gentamicina, um aminoglicosídeo predominantemente vestibulotóxico, como droga de habituação, e a amicacina, um droga predominantemente cocleotóxica, como agente lesivo agudo. A avaliação funcional foi realizada através do estudo por emissões otoacústicas produto de distorção, ao final do tratamento, seguindo a metodologia de trabalhos anteriores6,9. Na avaliação morfológica, as lesões nas células ciliadas externas eram identificadas pela ausência ou deformações de estereocílios, após análise à microscopia eletrônica de varredura, fotografadas, transferidas para um cocleograma, contadas e tabuladas.
Diferentemente das publicações anteriormente citadas, não encontramos no nosso trabalho diferença estatisticamente significativa entre o grupo que utilizou apenas amicacina (lesão aguda) e o grupo que utilizou gentamicina como habituação previamente a amicacina, tanto na análise geral da cóclea como na análise individualizadas das espiras 1, 2 e 3, comparativamente entre os dois grupos. A média de lesão de CCE foi de 46,5% (56,5% normais) para o Grupo 3 (tratado apenas com amicacina) e de 53,2% (46,8% normais) para o Grupo 4 (tratado com subdoses de gentamicina previamente à amicacina), o que estatisticamente não mostra diferença significativa (p=0,501). Não houve, portanto, proteção pela gentamicina contra a ototoxicidade da amicacina. A análise individualizada de cada espira comparativamente entre os dois grupos também não mostrou diferença estatística significativa (p=0,656 entre espiras 1; p=0,833 entre espiras 2; p=0,364 entre espiras 3). A explicação entendida pela divergência de resultados foi a combinação de drogas utilizadas. Ao utilizarmos a gentamicina como droga de habituação, sendo ela predominantemente vestibulotóxica, a mesma não teria conseguido estimular a orelha interna a produzir substâncias endógenas autoprotetoras em quantidade suficiente para se proteger contra as doses altamente lesivas da amicacina, predominantemente cocleotóxico, contra o órgão de Corti. Analisamos um total de 60 cócleas e 20.100 CCE (média de 335 CCE por cóclea). No nosso estudo, também diferentemente das publicações citadas, não houve predomínio de lesão na espira basal em relação à espira 2 nos Grupos 3 e 4. A explicação para tal achado deve-se ao alto grau de lesão apresentado nestes dois grupos já que à medida que progride a intensidade das lesões perde-se este padrão, havendo espiras com 100% de lesão das CCE nas 3 fileiras, chegando a acometer também, em alguns casos e em menor intensidade, as células ciliadas internas.
A análise morfológica mostrou que o tipo de lesão de CCE mais comum encontrado foi a ausência de estereocílios, seguido pela deformidade do mesmo (fusão e tumefação). Este achado coincide com aqueles descritos em outras publicações5,6,9.
As EOAPD vêm sendo utilizadas como método de avaliação da função auditiva em cobaias há algum tempo9,15-18. Trata-se de método de fácil execução, baixo custo e alta reprodutibilidade. Adicionalmente, quando comparado com a análise morfológica do órgão de Corti, tem mostrando grande correlação.
O estudo funcional da orelha interna das cobaias pesquisadas por emissão otoacústica produto de distorção (EOAPD) de fato mostrou uma grande fidelidade com os achados morfológicos à microscopia eletrônica de varredura (MEV). Nos grupos 1 (soro fisiológicos) e 2 (gentamicina), sem lesões morfológicas significativas, as EOAPD estavam presentes em todos os casos. No grupo 3 (n=18; lesão aguda por amicacina) quando estavam presentes, a média de CCE normais foi de 75.5%. e quando ausentes a média de CCE íntegras reduziu para 21,6%. Já no grupo 4 (n=20; uso de subdoses de gentamicina previamente a amicacina) quando as EOAPD estavam presentes a média de CCE íntegras foi de 68% para este subgrupo. Quando estavam ausentes a média de CCE íntegras reduziu para 18,9%.
Verificamos também que entre as cobaias que apresentavam EOAPD presentes ao término do experimento havia, em parte deste grupo, uma diminuição da amplitude das respostas de EOA no exame final, comparativamente com o inicial (Figura 9A, 9B). E que estas cobaias que apresentavam diminuição da amplitude das EOA também apresentavam um grau de lesão de CCE maior que aquelas sem esta variação. Classificados em 4 tipos de respostas, conforme esta variação da amplitude ou intensidade de EOA e comparados com a análise de integridade das CCE, verificamos haver uma correlação alta e significativa entre diminuição da amplitude/intensidade de EOA e diminuição do número de CCE normais. A existência desta forte correlação é de grande relevância por mostrar que não somente a presença, mas também a variação da amplitude deve ser observada. Acreditamos que tal fato reveste-se também de grande importância clínica se consideramos a possível aplicação no monitoramento de ototoxicidade por drogas em humanos.
Figura 9A. Teste de EOAPD pré-tratamento de cobaia mostrando exame normal
Figura 9B. Teste de EOAPD pós-tratamento da mesma cobaia da figura 9 B mostrando redução da amplitude da resposta em relação ao exame anterior.
A coincidência observada entre normalidade das EOAPD com boa integridade morfológica e a redução da amplitude ou ausência das emissões com lesões celulares leves ou extensas fortalecem os resultados encontrados e vão de encontro também com a afirmação de Chambers19 quando diz que "o grau de disfunção permanente correlaciona-se com o número de células ciliadas sensoriais destruídas ou alteradas".
Acreditamos que a linha de pesquisa que estuda os mecanismos endógenos de autodefesa das células ciliadas do órgão de Corti, concomitantemente com as pesquisas genéticas20-22 e avaliação funcional, é o caminho racional para chegarmos a resultados concretos que nos possibilitem ter um melhor controle sobre a lesão e a prevenção da toxicidade na orelha interna.
CONCLUSÃOConcluímos que a gentamicina, em doses não-tóxicas, na forma de habituação, não protege as células ciliadas externas da orelha interna da cobaia contra a ototoxicidade da amicacina e que a redução na amplitude das emissões otoacústicas produto de distorção correlaciona-se fortemente com o aumento do número de células ciliadas externas lesadas, de forma estatisticamente significativa, em cobaias.
AGRADECIMENTOSAgradecemos às equipes do Laboratório de Microscopia Eletrônica do Departamento de Biologia Celular e Molecular e Bioagentes Patogênicos e Laboratório de Técnica Cirúrgica e Cirurgia Experimental do Departamento de Cirurgia e Anatomia, da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto. Agradecemos também a Flávia Fiacadori Salata e Francisco Holanda, do Departamento de Oftalmologia, Otorrinolaringologia e Cirurgia de Cabeça e Pescoço, pelo auxílio na fase experimental do estudo.
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1 Doutor Pela USP / FMRP, Departamento de Oftalmologia, Otorrinolaringologia e Cirurgia de Cabeça e Pescoço da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo.
2 Livre-Docente Pela Universidade de São Paulo, Professor Titular do Departamento de Oftalmologia, Otorrinolaringologia e Cirurgia de Cabeça e Pescoço da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo.
3 Técnica Especializada Em Audiologia, Departamento de Oftalmologia, Otorrinolaringologia e Cirurgia de Cabeça e Pescoço da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo. Departamento de Oftalmologia, Otorrinolaringologia e Cirurgia de Cabeça e Pescoço da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo.
Endereço para correspondência: Dr. Thomaz José Marra de Aquino - Rua Elias Alves Cunha 117 Bairro Cidade Jardim Patrocínio MG 38740-000. E-mail: tjaquino@usp.br
Este artigo foi submetido no SGP (Sistema de Gestão de Publicações) da RBORL em 26 de junho de 2007. cod. 4628
Artigo aceito em 11 de agosto de 2007.