INTRODUÇÃOEstima-se que 16% dos casos de surdez no Brasil tenham causas genéticas confirmadas, sendo que em 70% dos casos a surdez é não-sindrômica. Em 80% das perdas auditivas hereditárias não-sindrômicas a herança é autossômica recessiva, em 10 a 20% a herança é autossômica dominante, de 2 a 3% é ligada ao cromossomo X e em apenas 1% é de herança mitocondrial1. A deficiência auditiva sensorioneural não-sindrômica apresenta-se como um desafio para o médico, o audiologista e o geneticista por não se acompanhar de características físicas que apontem para transmissão genética, podendo ser de difícil diagnóstico etiológico, sendo necessário ter um alto grau de suspeição clínica e obter informações adequadas sobre membros da mesma família.
As mutações e deleções no DNA mitocondrial têm sido identificadas em casos de perda auditiva sensorioneural não-sindrômica. A mutação mais comum associada à herança exclusivamente materna é a A1555G no gene 12S rRNA, relativamente freqüente em população asiática: aproximadamente 3% dos pacientes japoneses com deficiência auditiva sensorioneural, 5,3% na Indonésia e de 0,5% a 2,4% em europeus2.
Apesar de muito discutido na literatura, os mecanismos patogênicos dessa mutação são ainda desconhecidos3. Nos quadros não-sindrômicos, a deficiência auditiva sensorioneural de origem mitocondrial é o único sintoma presente. Nestes casos, alguns autores relatam sua correlação com a hipersensibilidade aos aminoglicosídeos1,4. Nos Estados Unidos, essa mutação está presente em 15% dos pacientes que apresentam perda auditiva induzida por aminoglicosídeos5.
A mutação A1555G tem sido apresentada como a principal causa de deficiência auditiva induzida pelos aminoglicosídeos2. O DNA mitocondrial de 62 membros de nove famílias de sujeitos deficientes auditivos por uso de aminoglicosídeos foi analisado e encontraram a mutação A1555G no gene 12S rRNA em 20 membros de cinco famílias. Concluíram que há relação entre as alterações audiovestibulares e a susceptibilidade genética à ototoxidade por aminoglicosídeos6.
Um estudo sobre as características audiológicas associadas à mutação no DNA mitocondrial de uma família chinesa com 41 membros portadores de surdez encontrou que a deficiência auditiva estava relacionada à mutação mitocondrial A1555G no gene 12S rRNA. Os achados revelaram perda auditiva sensorioneural, bilateral, simétrica, muitas vezes de caráter progressivo, com grande variação na época de manifestação da perda. Os autores mencionaram, também, que fatores ambientais podem ser determinantes na expressividade clínica da mutação7.
Os mesmos aspectos audiológicos foram constatados em outro estudo realizado com 21 famílias japonesas que apresentavam essa mutação. Acrescentaram que havia variação individual das características da perda auditiva, associação com zumbido permanente, com ou sem história de uso de antibióticos aminoglicosídeos, sendo a perda auditiva mais severa com o uso do antibiótico8.
Em estudo semelhante com 55 membros de 6 famílias afetados por deficiência auditiva não-sindrômica decorrente dessa mutação residentes na Calábria, a perda auditiva, geralmente simétrica, afetou principalmente as freqüências altas, o grau variou de leve a moderado e foi lentamente progressiva. Nos casos de história prévia de tratamento com drogas ototóxicas, a perda auditiva era severa e um deles era surdo-mudo9.
Numa população dinamarquesa, a prevalência da disacusia sensorioneural por essa alteração do DNA mitocondrial e os sinais clínicos evidenciaram que a deficiência auditiva causada por essa mutação apresenta fenótipos bastante variados no que se refere às características audiológicas, como o grau, configuração e época da manifestação da perda auditiva10.
Em estudo realizado no Brasil sobre a prevalência da mutação mitocondrial A1555G e de outras mutações no gene mitocondrial RNAtSer(UCN) (MT-RNR-1) numa casuística de 203 indivíduos com deficiência auditiva, foi verificado que a mutação A1555G ocorreu em 2% (4 famílias) da casuística. As demais mutações não foram encontradas nesse estudo11,12.
Dos estudos citados, os que se dedicaram à análise audiológica trazem informações e questões ainda pouco estudadas em trabalhos brasileiros. Eles sugerem, por exemplo, que o estudo de famílias de afetados permite que se obtenha um panorama mais amplo das características audiológicas e do seu percurso histórico, assim como de possíveis papeis de fatores ambientais. O presente estudo teve como objetivo descrever os achados audiológicos e genéticos de uma família brasileira que apresenta a mutação A1555G no gene mitocondrial 12SrRNA.
CASOS CLÍNICOSDescrevemos uma família de sujeitos que apresentam deficiência auditiva não-sindrômica com padrão de herança mitocondrial. A partir do atendimento foniátrico de um caso (III-8) no qual se suspeitou de surdez hereditária, foram avaliados clinicamente outros membros da família. Nove indivíduos passaram por exames médicos otorrinolaringológico e foniátrico, audiológico (audiometria tonal, logoaudiometria e em alguns casos PEATE) e estudo genético. Outros membros compareceram somente para estudo genético ou para os exames clínicos descritos. Este estudo descreverá e analisará os achados audiológicos somente dos nove indivíduos que compareceram à bateria de exames citada, ou seja, estudo genético e exames otorrinolaringológico, foniátrico e audiológico. O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisas com Seres Humanos do Instituto de Ciências Biomédicas sob o parecer 023/CEP.
O estudo genético incluiu a análise do DNA extraído de linfócitos. A pesquisa da mutação mitocondrial A1555G foi realizada por meio da PCR seguida da digestão do DNA com a enzima de restrição Hae III, de acordo com o protocolo descrito em Estivill et al. (1998)13.
As avaliações foniátricas e audiológicas foram realizadas no ambulatório de Otorrinolaringologia da Universidade de São Paulo (USP) e na clínica da Divisão de Ensino e Reabilitação dos Distúrbios da Comunicação da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (DERDIC/PUC-SP). Os estudos genéticos foram realizados no Centro de Estudos do Genoma Humano, do Departamento de Genética e Biologia Evolutiva do IBUSP.
Todos os indivíduos com DNA estudado na família mostraram a presença da mutação A1555G no gene do RNAr 12S do DNA mitocondrial (Figura 1).
Figura 1. Heredograma da família. A seta indica propósito. Os indivíduos assinalados em preto apresentam perda auditiva de grau variável. Os indivíduos com uma barra horizontal acima de seus símbolos passaram por avaliação foniátrica e audiológica. Os indivíduos indicados com asterisco foram testados e apresentam a mutação mitocondrial.
Quanto à caracterização audiológica, um sujeito (III-9) foi assintomático, isto é, apresentou audição normal até o momento da aplicação da bateria de exames. Os outros oito membros da família apresentaram perda auditiva sensorioneural bilateral que diferia quanto ao grau, variando de moderada a profunda (Figura 2). As informações dos nove sujeitos, os resultados de logoaudiometria e os dados do quadro clínico, especialmente do desenvolvimento da linguagem, indicaram tratar-se de alteração da audição pós-lingual. As perdas simétricas prevaleceram, tal como em estudos citados7,9, com exceção do caso do sujeito (II-12). Foram observados quase todos os tipos de configuração de perda, planas, descendentes e ascendentes. No entanto, o tipo de configuração que prevaleceu foi a descendente, com acometimento maior nas freqüências altas, assinalada também em outros estudos8,9. Os resultados dos outros exames quando presentes foram coerentes com os dados clínicos.
Figura 2 . Limiares tonais audiométricos e logoaudiometria dos casos estudados
Foi possível fazer monitoramento audiológico somente nos casos III-8 e III-10, dois irmãos afetados, e observou-se progressão da perda auditiva com padrão de variação flutuante/progressiva na orelha direita e esquerda (Figura 3). A progressão da perda auditiva está de acordo com outros estudos7,8,9. Nesses dois irmãos, a perda auditiva não prejudicou severamente o desenvolvimento de linguagem, ou por ser pós-lingual ou por se tratar de perda parcial com preservação da audição nas freqüências da fala. No caso III-8 a perda auditiva manifestou-se partir dos 4 anos com informações dos pais de que havia nascido ouvinte, e no III-10 foi submetido à primeira avaliação audiológica aos 5 anos e 3 meses, por suspeita de início da deficiência auditiva. Nos outros casos, I-2, II-3, II-5, II-7, II-9 e II-12 a perda auditiva manifestou-se na idade adulta.
Figura 3. Perda auditiva flutuante/progressiva dos casos III-8 e III-10 das orelhas direita (OD) e esquerda (OE) - As legendas coloridas indicam as idades dos sujeitos na época da avaliação
O resultado das avaliações audiológicas, considerando o grau da perda auditiva, mostrou como apontado na literatura que o fenótipo clínico variou consideravelmente entre os membros da família estudada, cujas perdas variaram de grau moderado a profundo, todas bilaterais e pós-linguais. Também, como já foi citado, não houve uma época de manifestação prevalente. Muitos dos afetados na idade adulta apresentavam zumbido e aqueles que foram submetidos à tratamento tiveram resultados pouco satisfatórios8.
Quanto ao uso de aminoglicosídeos, não pôde ser estabelecida a relação entre o desencadeamento ou agravamento da perda auditiva pelo uso desse antibiótico, pois os membros da família não souberam informar com precisão sobre esse aspecto.
Apenas um sujeito (II-3) com perda auditiva tinha história de exposição a ruído no local de trabalho, um dos possíveis fatores ambientais na expressividade da mutação7. O indivíduo I-2 apresentou deficiência auditiva leve restrita a altas freqüências aos 61 anos de idade, o que pode estar relacionado à presbiacusia.
Foram dadas orientações a respeito da importância do acompanhamento auditivo e do risco associado ao uso de aminoglicosídeo a todos os pacientes atendidos. Aqueles nos quais se adaptou aparelho de amplificação sonora individual tiveram grande benefício na comunicação oral, e conseqüentemente, na qualidade de vida. O grande benefício alcançado com o uso de aparelho de amplificação sonora individual na melhora dos limiares auditivos tonais e vocais confirmou o comprometimento coclear sem comprometimento de vias auditivas centrais, no caso das perdas auditivas de origem mitocondrial.
COMENTÁRIOS FINAISVários estudos têm sido feitos visando ao aperfeiçoamento do diagnóstico etiopatológico das perdas auditivas. O desenvolvimento tecnológico, a introdução de novas técnicas de exames e o estudo genético têm trazido grandes contribuições para que o diagnóstico das perdas auditivas seja realizado o quanto antes e de forma mais precisa, permitindo em muitos casos o esclarecimento da etiologia.
Sabendo que as mutações no DNA mitocondrial representam uma causa importante de perda auditiva, é imprescindível o cuidado por parte de clínicos na realização do diagnóstico etiopatogênico, para o qual muito contribui o estudo genético. Dessa forma, o clínico pode contribuir na tentativa de evitar o aparecimento precoce da perda auditiva e mesmo seu agravamento, bem como diminuir o aparecimento do zumbido, orientando o paciente quanto ao risco do uso de aminoglicosídeos e da exposição prolongada ao ruído.
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1 Doutora em Distúrbios da Comunicação pela UNIFESP, Professora do Departamento de Clínica Fonoaudiológica da Faculdade de Fonoaudiologia da PUC-SP
2 Doutora em Medicina pela Universidade de São Paulo.
3 Doutor em Ciências, Distúrbios da Comunicação pela PUC-SP.
4 Doutora em Ciências pela Universidade de São Paulo
5 Doutora em Ciências pela Universidade de São Paulo - Professora do Instituto de Biociências da USP..
6 Fonoaudióloga Especialista em Audiologia pela PUC-SP - Fonoaudióloga do Hospital Modelo .
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP e Universidade de São Paulo -USP
Autora responsável pela correspondência: Lisandra Sousa Macedo - Rua Rui Barbosa, 646 apt. 56 - Bela Vista - São Paulo-SP CEP: 01326-010 Telefone: (11) 3285-6391 - e-mail: lisandra_macedo@yahoo.com.br
Este artigo foi submetido no SGP (Sistema de Gestão de Publicações) da RBORL em 16 de agosto de 2005. cod. 657
Artigo aceito em 12 de setembro de 2005.