INTRODUÇÃO
A prova calórica propicia a avaliação e o registro da função de cada labirinto separadamente, permitindo definir qual é o lado comprometido1,2. A resposta calórica envolve conexões com o sistema nervoso central, o que é importante na diferenciação entre vestibulopatias centrais e periféricas.
Por ser parte da bateria de testes da avaliação otoneurológica, a prova calórica merece destaque pela sua importância, justificando esta revisão de literatura.
Na realização do exame, peculiaridades relacionadas à semiotécnica devem ser bem conhecidas a fim de evitar erros na interpretação do resultado.
Além disso, parece haver controvérsias em relação à interpretação da prova calórica. Exemplos são: valor de referência para preponderância direcional e predomínio labiríntico que podem variar de serviço para serviço, significado clínico do predomínio direcional e vantagens/desvantagens da irrigação com ar em relação à irrigação com água.
A presente revisão sistemática teve como principal objetivo descrever os principais aspectos referentes à realização, interpretação e utilidade clínica da prova calórica.
MÉTODOS
A busca bibliográfica incluiu a revisão de pontos estratégicos para o domínio da técnica do exame, a saber:
1) prova calórica com estímulo a ar ou a água; 2) prova calórica monotermal; 3) prova calórica com gelo; 4) preponderância direcional e predomínio labiríntico: conceitos, valores de referência e doenças associadas; 5) arreflexia, hiporreflexia e hiperreflexia: conceitos, valores de referência e doenças associadas; 6) variáveis e artefatos que afetam a resposta calórica: iluminação, temperatura, habituação, ansiedade, estado da membrana do tímpano, uso de drogas, piscada de olhos, fenômeno de Bell.
As bases de dados pesquisadas foram: CENTRAL (The Cochrane Controlled Trials Register), MEDLINE (Medical Literature, Analysis and Retrieval System on Line), LILACS (Literatura Latino Americana de Ciências da Saúde) e periódicos CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) em artigos publicados entre dezembro de 1905 a janeiro de 2006. Os descritores utilizados na pesquisa foram: caloric testing, nystagmus, vestibular system, directional preponderance, vestibular weakness, monotermal caloric testing, abnormal reflex, ice water caloric test and Bell's phenomenon e seus equivalentes em português ou espanhol.
Incluíram-se estudos clínicos transversais, longitudinais prospectivos e retrospectivos, artigos de revisão e meta-análise. Excluíram-se revisões de papeleta, relatos de caso e editoriais.
RESULTADOS
Nas diversas bases de dados pesquisadas, foram encontrados 818 resumos de artigos científicos a partir da busca pelos descritores dessa pesquisa. Desses, 93 foram selecionados a partir dos critérios de inclusão. A leitura integral resultou na seleção final de 55 artigos. Nesta fase, a seleção baseou-se na conformidade dos limites dos assuntos aos objetivos deste trabalho, desconsiderando aqueles que, apesar de aparecerem no resultado da busca, não abordavam o assunto sob o ponto de vista da realização e interpretação da prova calórica.
DISCUSSÃO
Fundamentos da prova calórica
O princípio da prova calórica baseia-se na criação de variação térmica no conduto auditivo externo que, alcançando o canal semicircular lateral, através da mudança na temperatura do ouvido médio, modifica a densidade da endolinfa nele contida e provoca correntes de convecção, que estimulam as células sensoriais localizadas na crista ampular. O paciente é posicionado de modo a manter o decúbito dorsal em inclinação de 30° com o plano horizontal. Essa posição coloca o canal lateral no sentido vertical, como se fosse uma coluna de líquido, e posiciona a crista ampular superiormente1,2,3.
A mudança de temperatura da orelha média para valores acima da temperatura corporal produzirá um movimento da endolinfa com tendência a subir, gerando uma corrente endolinfática do canal em direção a ampola, denominada corrente ampulípeta. Quando a temperatura de estimulação for mais baixa do que a corporal, ocorrerá o oposto, gerando uma corrente da ampola em direção ao canal, denominada corrente ampulífuga. A ação dessas correntes de convecção sobre a crista ampular altera o potencial de ação desse receptor sensorial, causando estimulação ou inibição para as correntes ampulípeta e ampulífuga, respectivamente. O estímulo dá inicio ao reflexo vestíbulo ocular (RVO), um arco reflexo simples do núcleo vestibular aos núcleos oculomotores, gerando o nistagmo vestibular. A resposta nistagmográfica é avaliada, sendo comparada com a de um padrão de normalidade. A prova calórica não avalia a função do sáculo, do utrículo e dos canais verticais.
A estimulação calórica pode ser feita com água ou com ar e gera uma corrente endolinfática no canal lateral estimulado análoga a de um movimento angular na freqüência de 0,003 Hz4. Sabendo-se que os canais semicirculares respondem de forma mais eficiente a movimentos angulares nas freqüências de 1 a 6Hz, pode-se concluir que a prova calórica avalia o labirinto em freqüência considerada não fisiológica4,5.
Estimulação: água ou ar
A estimulação calórica com água foi descrita por Barany6 e seu protocolo padrão estabelecido por Fitzgerald e Hallpike7. A orelha é irrigada com água por 40 segundos nas temperaturas de 44°C e 30°C, que estariam 7°C acima e 7°C abaixo da temperatura corporal, gerando a corrente endolinfática4. A estimulação com água induz a respostas calóricas mais robustas, além de apresentar menor variabilidade entre indivíduos, quando comparada com a estimulação com ar8,9. Por outro lado, a estimulação com água provoca reações neurovegetativas de forma mais freqüente, quando comparada com a estimulação com ar10.
Na estimulação com ar, utiliza-se corrente de ar durante 60 segundos, com fluxo de 8 l/min, nas temperaturas de 50°C e 24°C, que estariam 13°C acima e 13°C abaixo da temperatura corporal, gerando uma corrente endolinfática semelhante àquela gerada com água nas temperaturas de 44°C e 30°C9,11. Como o ar não é um bom condutor de calor, modificações na profundidade da estimulação no conduto auditivo externo podem diminuir a fase lenta do nistagmo de 20% a 40%8. Portanto, essa técnica demanda maior experiência quando comparada com a estimulação feita com água8,9. Posteriormente, outros padrões de estímulo foram considerados: temperaturas de 45,5°C e 27,5°C, durante 100 segundos, com fluxo de ar de 13 l/min8, ou, temperaturas de 18°C e 42°C, durante 80 segundos, com fluxo de ar de 7 a 8 l/min12.
Interpretação
O princípio da estimulação calórica é que labirintos normais tendem a resposta calórica simétrica e mensurável dentro de uma faixa de normalidade previamente conhecida. A assimetria de resposta estaria relacionada a doenças atuais ou pregressas2. A ausência ou redução da resposta indicaria deficiência de função vestibular periférica2,4. Nesse contexto, a interpretação da prova calórica deve considerar a análise comparativa de um lado em relação ao outro e a análise dos valores absolutos.
Na análise comparativa, busca-se avaliar se há assimetria na resposta calórica e interessa a análise da paresia labiríntica (PL) e do predomínio direcional (PD)2. Na análise dos valores absolutos, interessa avaliar se os valores estariam abaixo ou acima da faixa de normalidade. Esse dado cresce em importância quando a PL e PD estiverem normais, porém com valores absolutos fora da faixa de normalidade. Na análise dos valores absolutos, a hiperrreflexia seria definida como respostas nistagmográficas maiores do que a esperada, hiporreflexia menores e arreflexia, a ausência de resposta calórica1,2,3.
Predomínio Labiríntico
Na avaliação comparativa da função vestibular periférica, Jongkees13 publicou a fórmula para o cálculo da paresia labiríntica (PL), ou seja, perda ou redução da função de um labirinto em relação à do par contralateral. Utilizou estimulação com água a 30°C e 44°C, a um fluxo de 250 ml por minuto e estabeleceu que a paresia labiríntica seria uma diferença de resposta nistagmográfica maior que 20% entre os 2 lados, sendo o pior labirinto o que tivesse a resposta calórica mais deficiente1,2,13.
Atualmente, o padrão de normalidade para a definição da paresia vestibular varia de serviço para serviço, sendo descritos valores de 20% a 33%, dependendo de normalizações internas12-14. Nacionalmente, o termo paresia ou fraqueza do labirinto é menos comum, preferindo-se nomear o labirinto com a melhor resposta, denominando-se o predomínio labiríntico. Logicamente, o resultado final não muda, dependendo apenas da visão do processo.
As causas mais comuns de déficit unilateral da função vestibular são as doenças relacionadas aos tumores do 8º nervo craniano15, neuronite vestibular16, doença de Ménière17. O déficit unilateral pode também ocorrer nos casos de migrânea18, e em doenças cérebro-vasculares19.
Preponderância Direcional
A preponderância direcional (PD) foi inicialmente definida por Jongkees13 como uma tendência a maior intensidade de nistagmo para uma determinada direção em comparação à outra. Assim como a PL, os valores normais de PD variam conforme o serviço, sendo descritos valores de 22% a 33%12-14.
O significado clínico da PD tem sido fonte de controvérsias. A PD é comumente observada em pacientes que apresentam nistagmo espontâneo, ocorrendo na mesma direção deste20. Pode também ser observada em vestibulopatias centrais, periféricas ou lesões corticais7,21-23. Pode também ser observada em indivíduos normais21. Por causa dessa variabilidade, a PD nem sempre representa evidência de doença do sistema vestibular e não tem valor para localização do sítio da lesão22,23.
Nas síndromes deficitárias periféricas unilaterais, uma PD contra-lateral é freqüentemente observada21-23. Após a fase aguda e o desaparecimento do nistagmo espontâneo, uma PD pode permanecer na direção contrária a do lado comprometido21. Pacientes jovens que foram vítimas de síndrome deficitária periférica unilateral, com visão e propriocepção preservadas, apresentam PD temporária contra-lateral à lesão durante o processo de compensação vestibular, que tende a desaparecer tão logo ocorra a compensação completa21,22. O mesmo não ocorre com pacientes idosos e/ou com limitações para uma completa compensação, podendo permanecer nesse grupo uma PD contralateral ao lado lesado permanente22. Na doença de Ménière, PD tem sido relatada, porém sem valor para determinar o lado da lesão17,24.
Em doenças centrais, a PD tem sido observada nas alterações encontradas em ramificações do VIII nervo craniano, tronco cerebral e córtex23.
Hiperreflexia
A hiperreflexia pode estar associada a um quadro de vestibulopatia central ou de periférica e se refere ao nistagmo calórico induzido que excede os limites de normalidade. Alguns pesquisadores consideram que a hiperreflexia é a resposta nistagmográfica acima de 40º/seg a 80º/seg25.
Nas vestibulopatias periféricas, hiperreflexia pode ser encontrada no lado contra-lateral ao labirinto com resposta deficitária22,26.
Nas vestibulopatias centrais, hiperreflexia bilateral pode ser observada. Em um estado de normalidade, o flóculo nodular do cerebelo possui influência inibitória sobre os neurônios do núcleo vestibular, de modo a exercer ação inibitória sobre o RVO23,26. Lesões nessa região afetariam essa função inibitória, aumentando o estado excitatório do núcleo vestibular e levando a uma hiperreflexia bilateral. Esse mecanismo explicaria a hiperreflexia bilateral comumente observada nos pacientes com esclerose múltipla27,28. Assim, a hiperreflexia bilateral, sem causa aparente para a resposta aumentada, como por exemplo, ansiedade ou ingestão de drogas psicoativas, e com sintomas neurovegetativos menores do que o esperado para a hiperreflexia observada, pode ser um indicativo de lesão central26,27,28.
Ressalta-se que alterações otológicas não relacionadas à lesão periférica ou central do labirinto podem gerar hiperreflexia. As mais comuns são aquelas que favorecem a transferência de estímulo calórico para a orelha interna, como, por exemplo, mastoidectomia, perfuração/atrofia/retração da membrana timpânica. O estado de ansiedade por parte do paciente é outra causa de hiperreflexia26,29. De fato, temor em relação ao exame parece ser uma das causas mais comuns de hiperreflexia26,30.
Hiporreflexia
Para se considerar déficit bilateral da função vestibular, alguns autores consideram que o paciente deva apresentar uma combinação de respostas calóricas menores que 11º/seg para a irrigação morna e 6º/seg para a estimulação fria bilateralmente31. Neste caso, a PL e PD estariam normais, pois não haveria assimetria de função. Isso não indicaria, contudo, função vestibular normal. A redução bilateral das respostas calóricas pode ser observada durante o uso de drogas depressoras da função do labirinto, como, por exemplo, a cinarizina e a flunarizina32. Causas de hiporreflexia persistente estariam associadas a ototoxidade, com resposta calórica variando de hiporreflexia a arreflexia de acordo com o tempo e dose de exposição33,34; infecções sistêmicas, como a sífilis congênita ou adquirida35; doenças do sistema nervoso central, como tumores supra-tentoriais36; hipertensão intracraniana benigna37; ataxia de Friedreich, que é uma doença neurodegenerativa, hereditária, progressiva, predominantemente na medula espinhal, com comprometimento da junção medulo-cervical38. Das doenças metabólicas que podem causar hiporreflexia, destaca-se a encefalopatia de Wernicke-Korsakoff, associada à deficiência de tiamina no alcoolismo crônico37. A síndrome de Cogan, doença rara que afeta o ligamento espiral da cóclea, causando perda auditiva sensório-neural, zumbido e ceratite intersticial, pode cursar com hiporreflexia bilateral40.
Arreflexia
A ausência de resposta na prova calórica caracteriza a arreflexia. Entretanto, as doenças do labirinto que causam arreflexia não estariam relacionadas, necessariamente, à perda total de função daquele órgão. As provas rotatórias são a referência para definir falência vestibular periférica bilateral3. Arreflexia pós-calórica bilateral com ausência de resposta nas provas rotatórias, associa-se com comprometimento do equilíbrio corporal, que é mais intenso nos casos em que há visão deficitária31. Dentre as queixas relacionadas, a oscilopsia, que seria a percepção dos movimentos do ambiente durante a deambulação, parece ser a mais incômoda41. Essa queixa decorre da deficiência do RVO, reflexo este necessário para a estabilização da visão durante a movimentação4,5.
O uso sistêmico de drogas ototóxicas, como por exemplo, a gentamicina, podem causar arreflexia bilateral34. Para cerca de 20% dos casos de arreflexia bilateral, não há causa estabelecida31,41.
Falha na Supressão do Nistagmo
Doenças neurológicas que causam falha da supressão do nistagmo pós-calórico relacionam-se comumente com alterações dos movimentos oculomotores (sacade, rastreio e optocinético)42. Quando a falha é bilateral, alteração difusa no tronco ou no cerebelo é uma possibilidade. Nesses casos, devem estar presentes outros sinais neurológicos que possam confirmar a suspeita clínica43.
Inversão Calórica
A resposta calórica com direção oposta à esperada é denominada inversão calórica17. É achado raro e tem sido associado a doenças do tronco cerebral44. Logo, antes de firmar a alteração, recomenda-se que a possibilidade de erros técnicos cometidos durante a realização do exame e que podem induzir a essa alteração sejam avaliados. O mais comum destes é a colocação incorreta dos eletrodos. Outras possibilidades são presença de nistagmo congênito em direção oposta à esperada para a estimulação calórica realizada, ou presença de perfuração da membrana timpânica durante a estimulação com ar29.
Perversão Calórica
A observação de nistagmo vertical durante a prova calórica tem sido referida como perversão do nistagmo44. Alteração rara, esse fenômeno tem sido associado a doenças que afetam a estrutura do assoalho do 4º ventrículo no tronco cerebral45. A esclerose múltipla é um exemplo28,45.
Disritmia do Nistagmo Calórico
É definida como a irregularidade do traçado em relação a sua amplitude e freqüência. O achado tem sido relacionado a doenças do neurônio motor46. Pode também ser alteração observada em pacientes ansiosos ou com fadiga30. O uso de exercícios de alerta inadequados ou a presença do fenômeno de Bell podem resultar em perda periódica da resposta calórica47.
Variáveis e artefatos
Temperatura
A calibração da temperatura deve ser a mais acurada possível. Na estimulação com água, por exemplo, uma variação de 1ºC da temperatura ideal de 44°C ou 33°C resultará em uma diferença de 14% na magnitude do estímulo12.
Habituação
Irrigações repetitivas no mesmo ouvido com o mesmo estímulo calórico tem como resultado uma diminuição gradual na resposta calórica, levando à habituação vestibular48.
Estado de alerta
O padrão do nistagmo pode variar de acordo com o estado de alerta do paciente, uma vez que a falta de atenção e a sonolência podem provocar ausência ou intermitência das respostas calóricas, que podem ser inadvertidamente interpretadas como redução da função vestibular31,49. Para que o paciente permaneça em estado de alerta, sem levar à ansiedade, uma simples conversa mostra-se mais efetiva do que uma série de questões aritméticas49.
Ansiedade e Nervosismo
Estudos revelam que 10% dos sujeitos com hiperreflexia não apresentam evidência de doenças orgânicas26,30. Ansiedade frente a um exame desconhecido tem sido a explicação mais aceita. Por isso, as orientações sobre as etapas da prova calórica e a previsibilidade da vertigem são importantes para o paciente30.
Alterações na Membrana Timpânica
A estimulação com água não é indicada para pacientes com perfuração do tímpano29. Alternativa para esses casos seria a estimulação com ar. Entretanto, a perfuração timpânica na estimulação com ar é fator de confusão na análise do resultado do exame. A questão diagnóstica nos casos de perfuração da membrana timpânica é apenas em relação à existência ou não de função do sistema vestibular. Os cálculos de simetria do sistema vestibular não têm valor, uma vez que a estimulação será diferente comparando-se um lado com o outro. Além disso, o uso da irrigação com ar, nesses casos, pode resultar em nistagmo com resposta calórica contrária à esperada29. Teoricamente, o ar quente evaporaria na orelha média durante a estimulação e a umidade criada provocaria um efeito de resfriamento, levando à inibição da resposta calórica, ao invés de gerar resposta excitatória29.
Iluminação do ambiente
A prova calórica é usualmente conduzida sob uma das três condições ambientais:
1) com os olhos abertos em uma sala completamente escura;
2) com os olhos fechados em uma sala semi-escura;
3) com os olhos abertos, usando os óculos de Frenzel em uma sala semi-escura ou usando o Vídeo-Frenzel. Este é um modelo de óculos conectado a um sistema de vídeo, de modo que se obtêm vedação completa da luz, enquanto os olhos do paciente são mantidos abertos e o registro do nistagmo é realizado pelo vídeo50. A condição ambiental que melhor avalia a função vestibular é o paciente manter-se com os olhos abertos em uma sala completamente escura2,50.
Realizar a prova calórica em uma sala semi-escura, mantendo o paciente com os olhos fechados é válido. Entretanto, caso ocorra ausência de nistagmo pós-calórico com os olhos fechados, associado ao aparecimento deste quando o paciente é orientado a abrir os olhos para a fixação ocular, o fenômeno de Bell é um artefato que deve ser considerado47. Isto pode ser feito comparando-se os resultados da prova calórica conduzida com o paciente de olhos fechados, com os resultados obtidos com o paciente de olhos abertos em uma sala completamente escura ou utilizando o Vídeo-Frenzel50,51.
Fenômeno de Bell
Define-se como desvio e adução do globo ocular que pode ocorrer em alguns indivíduos devido ao fechamento dos olhos, inibindo o aparecimento do nistagmo pós-calórico. Em conseqüência, indivíduos normais teriam resposta pós-calórica ausente com os olhos fechados e, presente quando o mesmo é aberto. O quadro pode mimetizar ausência de efeito inibidor da fixação ocular (EIFO), que é considerado um sinal de lesão de origem central50,51.
Drogas
Certas drogas de uso contínuo podem afetar o controle dos movimentos oculomotores e podem invalidar ou complicar a interpretação dos achados da prova calórica52. Exemplos são medicamentos antipsicóticos, antidepressivos, anticonvulsivantes52. Alterações no rastreio, nos movimentos sacádicos e presença de nistagmo espontâneo podem surgir2. Como essas alterações são associadas a doenças do sistema nervoso central e como a suspensão da droga nem sempre é possível antes do teste vestibular, a análise do exame deve sempre levar em conta a interferência dos medicamentos que vem sendo usados pelo paciente2,42,52. Outras alterações associadas a uso de medicamentos são a supressão da resposta calórica ou a perda da habilidade de inibição do nistagmo pós-calórico com a fixação ocular42. Por causa disso, drogas que inibem a função vestibular e que, ao mesmo tempo, podem ser retiradas abruptamente sem dano para o paciente, devem ser suspensas 48 horas antes da realização da prova calórica2. Enquadram-se nesse grupo cinarizina, flunarizina, dimenidrinato e ingestão de bebidas alcoólicas2,51.
Em relação à cafeína e seus derivados, a ingestão moderada (até 3 xícaras/24 horas) pode ser permitida, com restrição para última ingestão até 6 horas antes do exame53. Para chá, chocolate ou fumo, o mesmo princípio se aplicaria. A justificativa para não retirar abruptamente essas substâncias 48 horas antes do exame é que a retirada súbita poderia causar no paciente um estado de ansiedade, que, sabidamente, alteraria o teste26,30,53. Além disso, a meia vida dessas substâncias é curta, variando no organismo de 4 a 6 horas52,53.
Sumarizando, medicamentos de uso contínuo para tratamento de doenças neurológicas, psiquiátricas e cardiovasculares não devem ser suspensos2,52.
Caso alterações venham a ser observadas no exame, sendo estas possivelmente relacionadas às drogas que porventura não tenham sido suspensas, o exame deve ser repetido com a ciência da suspensão da droga pelo médico que acompanha o paciente2.
Posição da cabeça/corpo
Coats e Smith conduziram um meticuloso estudo da resposta calórica em relação à posição do corpo variando em 360°. A resposta calórica máxima ocorreu quando a cabeça era posicionada entre 0° e 60° na posição supina para ambas as irrigações quente e fria. Assim, desvios na posição ideal da inclinação da cabeça têm pouco efeito na magnitude da resposta calórica54.
Piscadas de olhos
As piscadas de olhos podem interferir na interpretação das respostas calóricas. Entretanto, o movimento bifásico de olho gerado pela piscada possui a forma de um "pico aguçado" sem definição de fase lenta ou rápida. Este achado auxilia na distinção entre piscada de olhos e nistagmo vestibular2,51.
Superposição do nistagmo congênito
O nistagmo congênito pode complicar a interpretação dos nistagmos espontâneo, optocinético, posicional, de posicionamento e pode dificultar a interpretação da prova calórica1,2. A superposição do nistagmo congênito deve ser algebricamente adicionada ou subtraída a do nistagmo pós-calórico evocado1.
Prova calórica monotermal
Barber et al. foram os primeiros a investigar a eficiência do uso da prova calórica utilizando apenas a temperatura quente55. Os resultados falso-negativos são a limitação dessa técnica51. A utilização do estímulo monotermal como método de triagem estaria indicada para pacientes que apresentam queixas vagas, de origem provavelmente não-vestibular e em crianças com suspeita de déficit vestibular unilateral55. Apenas para esses casos individuais que a prova calórica monotermal foi desenvolvida51.
Prova calórica com gelo
Historicamente, reservava-se essa técnica para casos de pacientes que não apresentavam respostas após as estimulações calóricas com água nas temperaturas de 30 e 44°C. Ao avaliar-se a resposta em temperaturas mais baixas, fazia-se uma aproximação qualitativa, isto é, observa-se apenas a presença ou ausência do nistagmo e a simetria entre a irrigação em ambos os lados2. Considerando que a definição de falência bilateral é estabelecida pelas provas rotatórias, a prova calórica com gelo vem sendo menos utilizada3,4.
COMENTÁRIOS FINAIS
A presente revisão demonstrou que esse assunto vem sendo amplamente estudado e que existe conformidade em relação ao que se pode esperar da prova calórica. Após anos de utilização para avaliar a função vestibular, a prova calórica mantém-se como principal teste utilizado para avaliar a função vestibular periférica. A tecnologia da modernidade trouxe melhor acuidade e maior sensibilidade para esse exame. Por isso, é importante conduzir a prova calórica com precisão técnica, estando sempre atento para as possíveis fontes de erro.
AGRADECIMENTOS
Agradecemos às fonoaudiólogas Patrícia Cotta Mancini, Andreza Baptista Cheloni Vieira e Renata Jacques Batista pela leitura crítica na fase inicial de preparação desse manuscrito.
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1 Doutora, médica otorrinolaringologista, Professora Adjunto do Departamento de Oftalmologia, Otorrinolaringologia e Fonoaudiologia da Faculdade de Medicina da UFMG. Coordenadora do ambulatório de vertigem do Serviço de Otorrinolaringologia do Hospital das Clínicas da UFMG. 2 Fonoaudióloga do Hospital das Clínicas da UFMG. Aluna do curso de mestrado da Pós-Graduação em Ciências da Saúde: Infectologia e Medicina Tropical da UFMG. 3 Doutora, médica otorrinolaringologista, Professora Adjunto do Departamento de Oftalmologia, Otorrinolaringologia e Fonoaudiologia da Faculdade de Medicina da UFMG. Diretora Geral do Hospital das Clínicas da UFMG. Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais. Programa de Pós-Graduação em Ciências da Saúde: infectologia e medicina tropical. Endereço para correspondência: Denise Utsch Gonçalves - Av. Prof. Alfredo Balena 190 bairro Santa Efigênia Belo Horizonte MG 30130-100. E-mail: deniseg@medicina.ufmg.br PRPq, CAPES, FAPEMIG. Este artigo foi submetido no SGP (Sistema de Gestão de Publicações) da RBORL em 14 de agosto de 2006. cod. 3339. Artigo aceito em 17 de novembro de 2006.
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