INTRODUÇÃODesde a descoberta do ácido acetil salicílico em 1897, vários relatos de reações adversas após ingestão de aspirina foram observadas. Essas reações manifestavam-se por urticária e/ou angioedema ou por broncoespasmo, que podiam evoluir para óbito. Em 1922, Widal et al.1 foram os primeiros a associar a IA (intolerância aspirínica) com asma e PNS (polipose nasossinusal) e Samter & Beers2 observaram que a aspirina poderia causar ataques fatais nos pacientes portadores de PNS não-atópicos. A partir desta época, a tríade clínica # asma, PNS e IA # foi descrita, na literatura mundial, como Síndrome de Fernand Widal, Tríade Aspirínica ou Doença de Samter.
A intolerância aspirínica (IA) ocorre também após ingestão de outros antiinflamatórios não- esteróides, inibidores de COX-1, corantes e aditivos alimentares e álcool. A IA e a outros antiinflamatórios não-esteróides (AINE) associada a PNS não é mediada por IgE, (ou seja, não é uma reação alérgica verdadeira, uma vez que decorre da inibição da ciclooxigenase) e manifesta-se três a quatro vezes mais freqüentemente por broncoespasmo do que por urticária/angioedema, oposto do encontrado na população em geral2,3.
A fisiopatologia da intolerância aspirínica3,4 sugere que a hipersensibilidade à aspirina estava relacionada à inibição da biossíntese de prostaglandina. Normalmente, durante a biossíntese de prostaglandinas, o ácido araquidônico da membrana celular lipídica é direcionado através da ciclooxigenase (COX) para formar prostaciclinas, prostaglandinas (PG) e tromboxano (TX) ou através da lipooxigenase (LOX) para formar ácidos hidroxieicosatetraenóicos (HETE) e, finalmente, para formar leucotrienos (LT) C4 e D4, os dois componentes da substância de reação lenta da anafilaxia (SRS-A). Os corticosteróides inibem a liberação de ácido araquidônico da membrana fosfolipídica, diminuindo os produtos tanto da LOX quanto da COX. Em pessoas sensíveis, a aspirina e os AINE apresentariam uma ação farmacológica inibitória sobre a atividade da prostaglandina sintetase inibindo as COX-1 e as ciclooxigenase-2 (COX-2) em todas as células, resultando em interrupção da síntese da PGE2 e seus efeitos moduladores nas células inflamatórias e na superprodução de cisteinil leucotrienos (Cis-LT) pelo direcionamento para a via da LOX (Figura 1). Os leucotrienos são substâncias broncoconstritoras e quimiotáxicas, portanto inflamatórias. Os pólipos nasais nestes pacientes apresentam uma grande infiltração de eosinófilos, principal célula provedora de LT. Crescentes evidências indicam que os AINE inibidores altamente seletivos de COX-2 são bem tolerados por esses pacientes, revelando que é a inibição da COX-1 que desencadeia o broncoespamo em pacientes susceptíveis.
As reações adversas a analgésicos podem ser divididas em dois grupos: reação alérgica verdadeira e reação pseudo-alérgica5. Na reação alérgica verdadeira, a reação anafilática é a manifestação mais freqüente. Outras manifestações incluem angioedema, urticária e rash maculopapular. Ataques de asma ocorrem em apenas 8% neste grupo. A reação alérgica verdadeira ocorre provavelmente por um mecanismo imunológico. Ao contrário, pacientes com reações pseudo-alérgicas, geralmente, apresentam ataques de asma, provavelmente através da inibição da COX. Reconhecem-se, pois, duas formas clínicas de IA: a forma respiratória que se manifesta por broncoespasmo e/ou obstrução nasal e a forma cutânea, com urticária ou edema de Quincke.
A IA e a outros AINE pode ser detectada através de anamnese ou através de teste de provocação oral6.
Mais da metade dos pacientes (58%) com a tríade aspirínica apresentam intolerância a outra droga, especialmente AINE7. Com o aparecimento de antiinflamatórios mais seletivos de COX-2, a análise do espectro inibitório dos antiinflamatórios sugeria que a inibição da COX-1 era responsável pela broncoconstrição nos pacientes sensíveis. Assim, mesmo baixas doses de aspirina, indometacina e piroxicam precipitariam o ataque de asma em pacientes com IA por serem muito mais potentes inibidoras da COX-1 que da COX-2. As drogas inibidoras preferencialmente da COX-2, nimesulida e meloxicam seriam mais bem toleradas. Os inibidores seletivos de COX-2, celecoxib e rofecoxib não produziram reação cruzada, podendo ser usados nos pacientes com PNS e IA8,9. (Tabela 1)
A intolerância ao acetaminofen é rara, pois inibe pouco a COX-1 e a COX-2. Corantes e aditivos alimentares e álcool também podem ocasionar broncoespasmo nestes pacientes3,8,10,11.
A dipirona foi relatada como precipitante de ataques de asma em pacientes portadores de intolerância à aspirina e aos AINE, provavelmente por inibição da COX, embora esta incidência e estimativa de risco sejam desconhecidas5,12.
Intolerância a xilocaína, codeína, antibióticos contendo metabisulfito como agente conservador manifestada por sintomatologia respiratória foi observada em 42% dos pacientes que apresentavam IA e PNS3,13.
O objetivo deste estudo é analisar o risco do uso de aspirina e outros analgésicos e antiinflamatórios em pacientes portadores de polipose nasossinusal tolerantes e intolerantes a aspirina.
MATERIAL E MÉTODO Realizou-se um estudo transversal no período de novembro de 1997 a março de 2000, no Serviço de Otorrinolaringologia do Hospital das Clínicas da UFMG, selecionando-se adultos não alérgicos divididos em grupos de 15 pacientes:
· Grupo 1-IA (intolerantes a aspirina), composto por portadores de PNS eosinofílica e história clínica de IA manifestada por broncoespasmo, sendo 6 do sexo masculino, com idade variando de 19 a 58 anos.
· Grupo 2-TA (tolerantes a aspirina), composto por portadores de PNS eosinofílica e ausência de IA, sendo 7 do sexo masculino, com idade variando de 27 a 69 anos.
· Grupo controle, composto por pacientes sem PNS, sem eosinofilia da mucosa nasal e ausência de IA, portadores de desvio do septo nasal de etiologia traumática, sendo 13 do sexo masculino, com idade variando de 17 a 69 anos.
A presença de alergia nasal foi excluída por história clínica e teste cutâneo. A presença de PNS foi confirmada por endoscopia nasossinusal. A eosinofilia do pólipo nasal (>30%) foi observada após coloração por hematoxilina-eosina.
A todos os pacientes desta investigação foi indagada a presença de reações aos analgésicos (aspirina, dipirona e acetaminofen), aos AINE, ao álcool, aos corantes alimentares bem como de alguma outra droga ou químico. A intolerância aspirínica, manifestada por broncoespasmo, foi diagnosticada por história clínica nos pacientes do grupo 1-IA, assim como as demais intolerâncias aos outros analgésicos e antiinflamatórios nos grupos 1-IA e 2-TA. O teste de provocação oral à aspirina foi realizado nos pacientes com história pregressa negativa de IA (grupos 2-TA e controle) para se confirmar a ausência de IA. Utilizando-se um espirômetro KOKO-TREK® da Pulmonary Data Service Instrumentation, Inc., USA, realizou-se uma espirometria basal. Após ingestão de 100 mg de aspirina foram realizadas espirometrias seriadas com ½, na 1ª, 2ª e 3ª hora. Considerou-se positiva a redução do volume expiratório forçado em um segundo igual ou superior a 20%.
Antes de submeter os pacientes ao teste cutâneo e às biópsias nasais para a histopatologia, observou-se a não utilização de corticóide tópico ou sistêmico e anti-histamínicos por pelo menos 30 dias.
RESULTADOS Após ingestão de aspirina, todos os 15 pacientes do grupo 1-IA (100%) apresentavam reação de broncoespasmo, sendo que dois (13%) mostravam concomitantemente obstrução nasal e outros dois (13%), coriza, e nenhum dos pacientes relatava a presença de angioedema ou urticária.
A IA associada à PNS eosinofílica manifestou-se principalmente por broncoespasmo e esta manifestação relacionou-se também em ordem decrescente de ocorrência, com a ingestão de AINE nove pacientes (60%), dipirona em sete pacientes (47%), álcool em seis pacientes (27%), e acetaminofem em três pacientes (20%). Um paciente apresentou broncoespasmo com injeção endovenosa de hidrocortisona. Nenhum dos pacientes relatou a presença de reações após a ingestão de alimentos.
No grupo 2-TA, um paciente relatou apresentar reação urticariforme por dipirona, outro por cefalosporina e um terceiro apresentava reação broncoespástica por álcool e alergia a látex. No grupo controle, apenas um paciente referia reação urticariforme por dipirona.
Tabela 1. Espectro de inibição dos antiinflamatórios
DISCUSSÃOA PNS apresenta uma associação positiva com reação broncoespástica e/ou com obstrução nasal e negativa com a manifestação urticariforme da IA14. Na presente investigação foram observados resultados similares aos encontrados na literatura mundial, de acordo com os quais os pacientes portadores de PNS e asma manifestaram a IA por broncoespasmo e em 26% dos casos associou-se com obstrução nasal e coriza. Nenhum dos pacientes apresentou manifestação cutânea de IA, ou seja, urticária e angioedema. Poder-se-ia questionar que o broncoespasmo após ingestão de aspirina nestes pacientes era um critério de inclusão e não poderia ser avaliado. Entretanto, nenhum paciente com PNS e IA que procurou o nosso serviço durante o período deste estudo foi excluído por apresentar outro tipo de reação que não o broncoespasmo.
A extensão da intolerância aos antiinflamatórios não esteróides (AINE) foi demonstrada por e Szczeklik et al.(1975)4. Nesta avaliação, foi observado que nove pacientes (60%) portadores da IA manifestavam broncoespamo após a ingestão de AINE e dentre estes um paciente apresentava concomitantemente urticária e outro, angioedema. É interessante observar que as manifestações de angioedema e urticária não foram observadas após ingestão de aspirina. O diclofenaco foi responsável por oito casos e o tenoxicam, por um caso. Um dos pacientes com reação ao diclofenaco teve também reação ao ácido mefenâmico. Embora já se tenha evidências de que as drogas inibidoras preferencialmente da COX-2, nimesulida e meloxicam seriam mais bem toleradas e que os inibidores seletivos de COX-2, celecoxib e rofecoxib não produziram reação cruzada, podendo ser usados nos pacientes com PNS e IA8,9, neste estudo, nenhum paciente relatou já ter feito uso destas drogas.
O acetaminofen foi considerado como um bom substituto da aspirina em pacientes com IA, pois a intolerância por ele foi observada em apenas 4 a 18% desses pacientes9. No presente estudo, também se observou que 20% dos pacientes do grupo IA tinham intolerância ao acetaminofen manifestada sempre por broncoespasmo.
A intolerância à dipirona, manifestada por urticária e/ou angioedema e até mesmo por reação anafilática, é decorrente de reação mediada por IgE. A intolerância à dipirona em pacientes com IA é citada apenas por Szczeklik (1986)5 e Levy (2000)11, ao relatarem que ela podia provocar broncoespasmo nesses pacientes, provavelmente também pela inibição da COX, embora desconhecessem a sua incidência. Surpreendentemente, detectou-se no presente estudo que 47% dos pacientes do grupo IA apresentavam também intolerância à dipirona e sempre manifestada por broncoespasmo. Nos grupos TA e Controle, a intolerância à dipirona foi observada em um paciente (7%) de cada grupo, manifestada por urticária.
Intolerância ao álcool foi observada em 14% a 20% dos pacientes com IA3,13. Neste estudo, 40% dos pacientes portadores de IA evidenciaram também intolerância ao álcool, manifestada por broncoespasmo em 27%, por urticária em 6,5% e por angioedema em 6,5% dos casos. Pode-se questionar se o aumento da freqüência de intolerância ao álcool, detectado nesta investigação em relação à descrita na literatura, seja decorrente da interrogação sistemática desta intolerância e não apenas ao relato espontâneo pelo paciente. No grupo TA, apenas um paciente relatou a presença de broncoespasmo após ingestão de álcool.
Durante a internação hospitalar, um paciente do grupo IA manifestou broncoespasmo imediatamente após uma injeção de succinato de hidrocortisona. Acredita-se que esta intolerância trata-se de uma reação mediada por IgE à molécula de succinato e não uma reação à hidrocortisona5.
A intolerância à tartrazina é geralmente encontrada apenas nos pacientes com IA, sendo detectada em 4 a 50% dos casos3. No entanto, outros autores9,13 observaram que a intolerância à tartrazina era extremamente rara entre os pacientes portadores de asma induzida por aspirina e ocorria, provavelmente, por reação mediada por IgE. Intolerância aos aditivos (benzoato de sódio e metabisulfito) foi detectada em 18,5 a 23% dos pacientes com IA através de teste de provocação oral13. Nesta casuística, não se observou intolerância à tartrazina, nem a outros aditivos alimentares.
CONCLUSÃOEsses resultados mostram a importância do diagnóstico de intolerância a outras drogas em pacientes portadores de polipose nasossinusal intolerantes a aspirina, uma vez que a manifestação por broncoespasmo presente na intolerância aspirínica relacionou-se também, em ordem decrescente de ocorrência, com a ingestão de antiinflamatórios não-esteróides, dipirona, álcool e acetaminofem.
Os pacientes portadores de polipose nasossinusal e/ou asma brônquica grave devem ser orientados a não utilizarem aspirina e outros antiinflamatórios não-esteróides, inibidores de COX-1.
O uso de dipirona e álcool merece atenção já que se observou intolerância a essas drogas em quase metade e um terço dos pacientes respectivamente. Salienta-se que tais intolerâncias não são muito destacadas na literatura mundial, merecendo observação em futuras pesquisas.
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[1] Professor(a) Adjunto(a) do Departamento de Otorrinolaringologia, Oftalmologia e Fonoaudiologia da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais.
[2] Professor Adjunto do Departamento de Parasitologia do Instituto de Ciências Biológicas da Universidade Federal de Minas Gerais.
[3] Médico Otorrinolaringologista, Doutorando em Oftalmologia pela Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais.
[4] Acadêmica de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais. Residente de Otorrinolaringologia, Minas Gerais, Brasil.
Instituição à qual o trabalho está vinculado: Faculdade de Medicina - UFMG
Endereço para Correspondência: Helena M. Gonçalves Becker # Av. Pasteur 88, 4º andar Belo Horizonte MG 30170-2900
Tel (0xx31) 3222-2891 # E-mail: mailto:hbecker@medicina.ufmg.br
Trabalho apresentado no 36o Congresso Brasileiro de Otorrinolaringologia (SBORL) em Florianópolis/SC, no período de 19 a 23 de novembro de 2002.