INTRODUÇÃOA voz humana é fascinante e complexa. Apesar de a laringe ter se desenvolvido filogeneticamente para funções de preservação das espécies, ou seja, primordialmente para proteger as vias respiratórias de aspiração, sua função fonatória não deixa de ser menos importante no desenvolvimento da raça humana. Os distúrbios da voz têm se tornado cada vez mais freqüentes frente a uma sociedade que faz intenso uso vocal profissional e pessoal1-5. Estatísticas nacionais estimam que até 40% da população brasileira economicamente ativa faz uso profissional da voz1-2. O Brasil também figura entre as maiores incidências mundiais de câncer de laringe1. Estes dados motivaram as Campanhas Nacionais da Voz que têm tido grande sucesso em orientar a população quanto aos cuidados com a saúde vocal e como prevenir doenças laríngeas.
Muito se debateu sobre o perfil que estas campanhas da voz deveriam ter: seriam puramente informativas, constariam de triagem vocal previamente a exame laringoscópico ou haveria uma avaliação conjunta da equipe médico/fonoaudiólogo. Apesar da experiência adquirida nestes oito anos de campanhas ainda não conseguimos estabelecer a forma mais efetiva de avaliar a população com queixas laringofaríngeas.
Apesar de os médicos otorrinolaringologistas não serem tradicionalmente treinados para reconhecer, quantificar, descrever e documentar as informações ricas e sutis que a voz transmite, o desenvolvimento e praticidade das fibras ópticas permitem uma rica e relativamente fácil avaliação da laringe e suas estruturas adjacentes2-5. Cada vez mais o treinamento dos laringologistas envolve associar características perceptivo-auditivas da voz aos achados laringoscópicos usando a plêiade de informações para formular diagnósticos anatômicos e funcionais e propor tratamentos mais compatíveis com a fisiologia normal do órgão.
O trabalho do médico otorrinolaringologista, principalmente daquele voltado para a laringologia, não é possível sem o papel fundamental de re-habilitação vocal e treinamento do fonoaudiólogo. Equipes multidisciplinares são essenciais para o exercício pleno desta sub-especialidade, mas torna-se necessário caracterizar os limites de atuação de cada profissional para que juntos possam atuar de forma orquestrada e harmônica.
O objetivo deste trabalho foi rever a sensibilidade e a especificidade da avaliação perceptivo-auditiva efetuada por equipe de fonoaudiólogos como método de triagem de alterações laríngeas na população geral.
MATERIAL E MÉTODOUm total de 540 pacientes que procuraram espontaneamente um serviço universitário terciário para avaliação "da voz" durante a Campanha Nacional da Voz de 2005 foi submetido à avaliação perceptivo-auditiva da voz seguida de videolaringoscopia. O instrumento utilizado foi o protocolo de atendimento oficial fornecido pela Academia Brasileira de Laringologia e Voz acrescido de alguns parâmetros adicionais de análise perceptivo-auditiva. A avaliação da voz foi feita pela equipe de fonoaudiólogos da instituição, sendo esta constituída de fonoaudiólogos alunos do curso de especialização em voz supervisionadas por professoras deste curso. O exame videolaringoscópico foi feito por médicos otorrinolaringologistas residentes supervisionados por médicos professores do setor de Laringologia do Departamento de Otorrinolaringologia da Instituição. Este trabalho foi aprovado pela comissão de ética em pesquisa médica da Instituição (CEP 124/05).
Análise Perceptivo-AuditivaApós assinar consentimento esclarecido o paciente era entrevistado brevemente sobre os motivos que o trouxeram ao serviço, suas queixas e tempo de duração. Durante esta entrevista o fonoaudiólogo avaliava a voz encadeada, ou seja, a voz emitida durante a fala espontânea, e suas características. A seguir, o sujeito emitia as vogais /i/ e /e/ sustentadas, /i/ em glissando (escala contínua) ascendente e descendente para avaliação de características perceptivo-auditivas. Seguindo as normas propostas, usou-se a escala GRBASI (G=grau de disfonia; R= aspereza; B= soprosidade; A= astenia; S=tensão)3-4, sendo também avaliados o pitch, loudness, ressonância e coordenação pneumofonoarticulatória (CPFA)3-5. O pitch (a percepção do examinador sobre a freqüência da voz) foi considerado adequado, agudizado ou agravado3-4. O loudness (a percepção do examinador sobre o volume da voz) foi considerado adequado, aumentado ou diminuído3-4. A CPFA foi considerada coordenada ou incoordenada3-4.
Exame VideolaringoscópicoO exame laringoscópico foi feito com fibras ópticas rígida ou flexível em todos os pacientes que participaram da Campanha. Anestesia tópica com xilocaína spray a 10% somente foi usada naqueles pacientes que não toleraram o exame sem anestésicos. Os pacientes foram submetidos ao exame com a fibra rígida ou flexível aleatoriamente, com exceção daqueles com reflexo nauseoso exacerbado ou anatomia de difícil acesso com o laringoscópio rígido, sendo estes também submetidos à laringoscopia flexível. Aqueles sujeitos que se recusaram a fazer o exame laringoscópico ou aqueles em que não foi possível a visualização da laringe foram excluídos desta casuística.
Análise EstatísticaForam estabelecidos a sensibilidade, especificidade, valor preditivo positivo e valor preditivo negativo da análise perceptivo-auditiva comparando-a aos achados laringoscópicos usando software Epi Info For Windows versão 3.0.
RESULTADOSFoi avaliado um total de 567 indivíduos conjuntamente pela equipe médica e fonoaudiológica durante cinco dias de atendimento integral. A maioria dos avaliados era adultos (88%), sendo 339 mulheres e 160 homens. Das 68 crianças avaliadas, 41 eram meninas e 27 eram meninos.
Quanto ao diagnóstico laringoscópico inicial tivemos: 219 exames normais (38,6%), 97 exames com suspeita de lesão benigna da prega vocal (17%), 4 exames com suspeita de lesão maligna (1%) e 247 sujeitos com sinais e sintomas sugestivos de Refluxo Laringofaríngeo (43,5%) (Tabela 1).
A sensibilidade da avaliação perceptivo-auditiva para avaliar alterações laríngeas foi maior nos casos de lesão nas pregas vocais, sendo de 91% para as lesões benignas e 100% para as lesões malignas. No entanto, a especificidade desta avaliação foi de 48%, considerando que vários indivíduos com exame laringoscópico normal e sem queixas de disfonia foram considerados como portadores de alterações vocais pela avaliação perceptivo-auditiva (Tabela 2).
A avaliação da voz mostrou sensibilidade de 76% para os pacientes com diagnóstico de suspeição de Refluxo Laringofaríngeo (RLF).
No geral o valor preditivo positivo da avaliação perceptivo-auditiva da voz foi de 71,2% e o valor preditivo negativo foi de 61,3%. A acurácia (total de acertos) da análise perceptivo-auditiva isolada foi de 68%.
DISCUSSÃOA avaliação do indivíduo com queixas vocais exige um ouvido treinado e olhos capazes de interpretar as informações visuais frente àquelas obtidas pela audição. Qualquer profissional habilitado pode fazer uma avaliação perceptivo-auditiva da voz, mas o fonoaudiólogo por vocação e tradição é o profissional mais treinado no dia-a-dia de suas atividades para tal avaliação. Mesmo assim, o trabalho conjunto multiprofissional somente enriquece o conhecimento e a capacidade de atuar em indivíduos que muitas vezes têm queixas vocais complexas e que não correspondem aos achados laringoscópicos superficiais.
No entanto, muita cautela deve ser exercida em se atribuir a uma avaliação subjetiva a capacidade de estabelecer ou não a presença de lesões ou alterações funcionais nos órgãos deglutofonatórios.
No trabalho em questão observamos uma sensibilidade relativamente baixa da avaliação perceptivo-auditiva em estabelecer a presença de RLF. Certamente contribui para este fato a baixa incidência de lesões orgânicas na laringe fonatória destes indivíduos, sendo a maioria das alterações localizadas na laringe posterior (respiratória)6-11. No entanto, alterações laríngeas sugestivas de Refluxo Laringofaríngeo estiveram presentes em 43.5% dos pacientes, sendo a doença prevalente desta população avaliada. Lembrando que o RLF é considerado fator de risco para o desenvolvimento de câncer de laringe6,7 e que causa grande morbidade10-11, é de fundamental importância diagnosticá-lo o mais precocemente possível para o controle da doença.
Já para lesões das pregas vocais, a análise perceptivo-auditiva mostrou-se bastante sensível e específica, sendo flagrados 91% dos casos de lesões benignas e todos os casos suspeitos de lesão maligna. Surpreende o grande número de falsos positivos, ou seja, indivíduos sem lesões orgânicas ou funcionais da laringe e faringe considerados disfônicos na avaliação perceptivo-auditiva. Um número destes casos poderia ser atribuído a quadros funcionais, mas a maioria destes indivíduos sequer tinha queixas vocais. Possivelmente a maior tolerância social a alterações vocais em nossa sociedade tenha interferido na capacidade de os indivíduos observarem qualquer alteração vocal em si próprios3,5,12-14. As queixas que motivaram este grupo de indivíduos a procurarem o atendimento foram curiosidade ou queixas da garganta e não da voz.
CONCLUSÕESO baixo valor preditivo positivo e negativo da avaliação perceptivo-auditiva da voz comparada ao exame videolaringoscópico para avaliação e triagem de alterações laringofaríngeas sugere que, mesmo sendo fundamental para a avaliação global do paciente com queixas desta região, não serve como instrumento único de triagem.
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1 Doutora em Medicina pela FCMSCSP, Fellow em Voz Profissional Thomas Jefferson University - Philadelphia (Professora Assistente).
2 Mestre em Fonoaudiologia da Pontifícia Universidade Católica, Chefe do Setor de Voz da Santa Casa de São Paulo.
3 Doutor em Medicina pela Santa Casa de SP. Professor Instrutor do Departamento de Otorrinolaringologia da Santa Casa de SP.
Departamento de Otorrinolaringologia da Santa Casa de SP.
Endereço para correspondência: Claudia Eckley - Rua Joaquim Floriano 101 3º andar Itaim Bibi São Paulo SP.
Este artigo foi submetido no SGP (Sistema de Gestão de Publicações) da RBORL em 18 de janeiro de 2007. cod.3608.
Artigo aceito em 05 de março de 2007.