INTRODUÇÃOCâncer de cabeça e pescoço é um termo coletivo definido por bases anatômico-topográficas para descrever tumores malignos do trato aerodigestivo superior. Esta região anatômica inclui a cavidade oral, faringe e laringe. Um subgrupo maior dos carcinomas de cabeça e pescoço é referido como "câncer oral" surgindo nas mucosas da boca (lábios, base da língua, língua, assoalho bucal e palato duro) e faringe (compreende a orofaringe, a hipofaringe e a nasofaringe). Cerca de 40% dos cânceres de cabeça e pescoço ocorrem na cavidade oral, 15% na faringe, 25% na laringe e o restante nos demais sítios remanescentes (glândulas salivares, tireóide)1. O tipo histológico mais freqüente é o carcinoma espinocelular, presente em mais de 90% dos casos2.
Esta doença é responsável por uma grande incidência de óbitos em todo o mundo, constituindo a sexta causa de morte por câncer. No mundo, aproximadamente 200 mil casos novos de câncer de cabeça e pescoço são diagnosticados por ano3. No Brasil, estima-se aproximadamente 13.470 novos casos de câncer de cavidade oral por 100 mil habitantes, com taxas de 10.060 para o sexo masculino e 3.410 para o sexo feminino4. A incidência do câncer bucal no Brasil representa 2% de todos os cânceres, sendo uma das mais altas do mundo e de importante expressividade na América Latina5. A taxa de mortalidade é estimada em aproximadamente 12.300 mortes por ano6, e a sobrevida é de apenas 40 a 50% para pacientes diagnosticados7,8.
Evidências epidemiológicas mostram que a incidência do câncer de cabeça e pescoço aumenta com a idade. Na Europa, 98% dos pacientes têm mais de 40 anos de idade1. Este tipo de tumor é raro em pacientes jovens. Apenas 4 a 6% ocorrem em indivíduos com menos de 40 anos, mas essa incidência vem aumentando em vários países9, e os mecanismos envolvidos na carcinogênese nesta faixa etária são pouco conhecidos1,8,10.
O fumo e o álcool são fatores de risco bem estabelecidos para o câncer de cabeça e pescoço11. Embora essa neoplasia atinja preferencialmente os pacientes do sexo masculino, nos últimos anos houve um aumento notável na incidência entre mulheres, o que deve refletir a mudança nos hábitos tabagistas e etilistas12.
O objetivo desse trabalho é traçar um perfil dos dados sociodemográficos e clínicos dos pacientes com câncer de cabeça e pescoço atendidos em um hospital universitário e identificar os fatores de risco (tabagismo e etilismo) envolvidos para um posterior auxílio em programas de prevenção da doença.
CASUÍSTICA E MÉTODOSInicialmente, o projeto de pesquisa foi aprovado pela Comissão de Ética de Pesquisa da Instituição (protocolo 5566/2005).
Foi realizado um estudo retrospectivo por meio da análise de prontuários médicos dos pacientes com câncer de cabeça e pescoço atendidos no Serviço de Otorrinolaringologia do hospital em um período de 6 anos (2000 a 2005).
As variáveis analisadas incluíram idade, sexo, profissão, cor da pele, hábitos tabagista e etilista, sítio primário do tumor, estadiamento clínico, grau de diferenciação histológica, tratamento e mortalidade dos pacientes.
Os tumores foram classificados quanto à localização anatômica em cavidade oral, faringe e laringe. Os subsídios da cavidade oral incluem: lábios, 2/3 anterior da língua, palato, mucosa oral, gengiva, trígono retromolar e palato duro. A faringe é subdividida em três regiões distintas: orofaringe (palato mole e úvula, tonsilas e paredes laterais e posteriores da orofaringe); hipofaringe (seios piriformes, paredes hipofaringeanas, regiões pós-cricóides e não pós-cricóides) e nasofaringe (paredes laterais, coanas). A laringe é representada pela supraglote, glote e subglote13.
O estadiamento do tumor (TNM) foi classificado de acordo com as normas de American Joint Committee on Cancer (AJCC)14,15. Foram analisados 427 pacientes iniciais, mas apenas 372 prontuários foram analisados quanto a TNM.
Os dados foram compilados em programa Microsoft Excel e analisados por estatística descritiva exploratória.
RESULTADOSForam obtidos dados de 427 pacientes atendidos no período de 2000 a 2005.
Em relação ao gênero, 367 pacientes (86%) são do sexo masculino e 60 (14%), do sexo feminino. A idade dos indivíduos variou entre 30 a 94 anos, com média de 61,77 anos e desvio padrão de 11,44. A Tabela 1 mostra a distribuição do número de pacientes de acordo com a faixa etária. A cor da pele foi analisada e subdividida em dois tipos (branca e não-branca). Foram considerados indivíduos com a cor de pele não-branca, os pardos, negros e orientais. Neste estudo, predominou a cor da pele branca (90%).
As ocupações profissionais mais freqüentes no sexo masculino foram representadas pela atividade rural (lavrador - 24,25%), seguida pelas profissões de pedreiro (13,9%) e motorista (11,17%). Para o sexo feminino houve predomínio de atividades domésticas (60%) e rurais (lavradora - 8,3%). Aposentadoria, sem especificação profissional anterior, foi referida para 8,17% homens e 15% mulheres (Tabela 2 e 3).
Em relação ao consumo de cigarro e álcool, 83,37% são tabagistas, 65,8% são etilistas, 55,27% possuem os dois hábitos e 6,18% não possuem estes hábitos. Nos prontuários não constam as quantidades consumidas.
A Tabela 4 mostra os sítios primários de tumores nos 427 pacientes. A cavidade oral foi a mais representativa, com freqüência de 35,37% (151 dos 427 casos).
As Tabelas 5, 6 e 7 apresentam o estadiamento dos tumores de acordo com a classificação de tumores malignos (TNM) e sua freqüência nos sítios primários de tumor. Em 55 casos, essa informação não constava no prontuário.
Quanto ao grau de diferenciação histológica, houve predominância do carcinoma espinocelular (CEC) em 96,7% dos casos. Também foram detectados outros tipos histológicos, tais como, linfoma não-Hodgkin, carcinoma indiferenciado e outros. (Tabela 8).
De modo geral, as indicações para radioterapia ou cirurgia equilibram-se para os tumores classificados como T1 e T2, entretanto, a maioria dos tumores T3 e T4 requer a terapêutica multimodal geralmente cirurgia mais radioterapia adjuvante. Por outro lado, alguns fatores podem ter influência relativa na escolha da terapêutica, como a idade dos pacientes, uso profissional da voz, tabagismo e etilismo incontroláveis e alguns fatores sócio-econômicos que possam exigir soluções de curta duração. Em nosso serviço são realizados os tratamentos com cirurgia, quimioterapia e radioterapia. A maioria dos pacientes foi submetida à cirurgia em conjunto com a radioterapia (33,25%).
Para a análise da mortalidade desses pacientes, foi observado que nos 427 casos analisados ocorreram 164 óbitos, não sendo possível levantar as causas de sua maioria por falta de informação nos prontuários.
DISCUSSÃOEm nosso estudo foi observada a predominância de indivíduos na faixa etária de 51 a 70 anos, o que está de acordo com os dados do Serviço de Cabeça e Pescoço do Centro de Oncologia do Hospital Universitário Oswaldo Cruz em Pernambuco, que também relata freqüência de 55,82% deste tipo tumoral nessa faixa etária16.
Em relação ao gênero, os nossos corroboram com os já existentes na literatura que evidenciam maior incidência de neoplasia de cabeça e pescoço no sexo masculino2. Esta doença é relativamente rara em mulheres17. Particularmente em países em desenvolvimento, os homens são mais afetados que as mulheres18, embora, nos últimos anos, tenha havido um aumento notável na incidência entre mulheres, que deve ser resultante da mudança nos hábitos tabagistas e etilistas12. Foi observada uma maior incidência de ocupação profissional relacionada à atividade rural no sexo masculino e nas mulheres predominou as atividades domésticas domiciliares. Em estudo realizado no Serviço de Cirurgia de Cabeça e Pescoço do Hospital Heliópolis em São Paulo, no sexo masculino predominou a ocupação de pedreiro, enquanto a atividade rural atingiu o sexto lugar. No sexo feminino também predominou a atividade domiciliar, seguida de atividade rural19. É importante salientar que na atividade rural os indivíduos estão em constante exposição ao sol e em contato com substâncias carcinogênicas o que contribui para o desenvolvimento de câncer19,20. Um estudo realizado no Serviço de Cabeça e Pescoço do Hospital Heliópolis mostrou que aproximadamente 85% dos pacientes possuem cor da pele branca, tanto do sexo feminino como masculino19. No presente estudo também se verificou o predomínio da cor branca (90%).
Em nosso estudo a maioria dos pacientes são tabagistas (83,37%) e etilistas (65,8%) o que reforça a associação entre o consumo de álcool e fumo para o desenvolvimento do câncer de cabeça e pescoço1. Vários estudos têm mostrado uma relação consistente do fumo e do álcool com câncer de laringe e cavidade oral1,21-23.
Em relação ao sítio anatômico, em nosso estudo prevaleceu o câncer de cavidade oral, seguido de laringe (35,37 e 31,15%, respectivamente). Estudos epidemiológicos também indicam a ocorrência de 40% dos cânceres de cabeça e pescoço na cavidade oral1. Este achado parece refletir os hábitos tabagista e etilista dos pacientes, podendo aumentar de duas a três vezes o risco desta doença na cavidade oral9,11.
Em relação ao TNM, 25% dos casos pertencem à categoria T3, 35,65% apresentam comprometimento dos linfonodos e 2% apresentam metástase, mostrando um grau avançado da doença ao diagnóstico. A literatura mostra freqüência elevada de câncer de cabeça e pescoço em estágio avançado24, o que está de acordo com os nossos resultados. Um estudo realizado no Brasil, país em desenvolvimento, revela diferenças estatisticamente significantes dessas características quando comparadas àquelas de pacientes provenientes de instituições de países desenvolvidos17.
O carcinoma espinocelular foi o tipo histológico mais representativo (96,7% dos casos). Estudo realizado em Pernambuco refere o carcinoma espinocelular como o mais freqüente16. Além disso, a literatura revela que mais de 90% dos casos de câncer de cabeça e pescoço são do tipo carcinoma espinocelular22.
A cirurgia aberta e a radioterapia externa são estratégias fundamentais no tratamento de carcinomas25. Foi observado em nosso estudo o predomínio da associação de radioterapia e cirurgia (33,25%) e também da utilização de somente radioterapia para o tratamento (28,10%). Em estudo, 528 casos de 1010 foram submetidos à cirurgia, 335 foram tratados com cirurgia associado à radioterapia e 67 foram tratados com cirurgia, radioterapia e quimioterapia25. Em nosso estudo, apenas 23 casos foram tratados com cirurgia associado à quimioterapia.
Em relação à mortalidade, encontramos 164 óbitos (38,4%) entre o período de 2000 a 2005. Esta doença caracteriza-se pela agressividade local e pelo alto índice de ocorrência de tumores secundários com uma alta taxa de mortalidade10.
Populações em alto risco deveriam ser alvos de programas educacionais e de rastreamento. Portanto, o estabelecimento destes programas e destas medidas pode atenuar o resultado em pacientes com câncer oral e diminuir os riscos de desenvolvimento de tumores secundários.
CONCLUSÃOA análise dos 427 pacientes atendidos neste hospital universitário no período de 2000 a 2005 está de acordo com os dados da literatura que revelam que essa doença é mais freqüente em homens, tabagistas e com idade acima de 40 anos. Os dados clínicos revelam que a maioria dos pacientes tem como sítio primário mais representativo a cavidade oral. A identificação dos fatores de risco aos quais estão submetidos os pacientes poderá viabilizar estratégias para a implementação de programas de prevenção para esta doença.
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1 Graduação, Enfermeira.
2 Mestre em Ciências Biológicas, Bióloga - Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto.
3 Doutora em Ciências Biológicas, Professora Adjunta de Genética - Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto.
4 Médico Especialista em Otorrinolaringologia e Cirurgia de Cabeça e Pescoço.
5 Livre-docente em Otorrinolaringologia e Cirurgia de Cabeça e Pescoço, Professor de Otorrinolaringologia e Cirurgia de Cabeça e Pescoço.
6 Livre-docente em Genética Humana e Médica, Professora Livre-Docente da Disciplina de Genética da Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto.
Endereço para correspondência: Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto - FAMERP UPGEM - Unidade de Pesquisa em Genética e Biologia Molecular. Av. Brigadeiro Faria Lima 5416 Bloco U-6 São José do Rio Preto SP 15.090-000.
Bolsa de Iniciação Científica - CNPq/PIBIC.
Este artigo foi submetido no SGP (Sistema de Gestão de Publicações) da RBORL em 4 de dezembro de 2006. cod. 3543.
Artigo aceito em 11 de agosto de 2007.