INTRODUÇÃOAs órbitas podem ser definidas como compartimentos ósseos, pares craniofaciais situados simetricamente de cada lado do nariz. O conteúdo orbitário, formado pelos olhos e todo um conjunto de estruturas a estes relacionados, é intimamente associado aos seios paranasais, especialmente aos seios maxilar, etmóide e frontal. Anatomicamente, a órbita é separada das pálpebras superior e inferior pelo septo orbitário que se constitui então no limite anterior da cavidade orbitária. O septo nada mais é do que uma continuidade do periósteo que recobre as paredes orbitárias (também denominado de periórbita), que no rebordo orbitário muda de direção, funde-se com os elementos retratores palpebrais, funcionando, assim, como um diafragma que impede o prolapso anterior do conteúdo orbitário1.
As complicações agudas das doenças dos seios paranasais parecem ser mais freqüentes nas crianças do que nos adultos, e são diretamente relacionadas às íntimas relações anatômicas entre os seios paranasais e outras estruturas da cabeça, pescoço e tórax2.
A rinossinusite é uma doença grave que freqüentemente apresenta sérias complicações orbitárias, as quais necessitam de uma abordagem multidisciplinar rápida, pois a demora no diagnóstico pode levar à morte do paciente. Ognibene et al.4 relataram uma prevalência de 83,1% de complicações orbitárias em 65 pacientes estudados em um período de 10 anos. Mortimore e Wormald5 encontraram 80% numa população estudada em 5 anos. Antes do advento da antibioticoterapia, a prevalência de complicações orbitárias pós-rinossinusites era bastante elevada. Algumas séries chegam a citar taxas de mortalidade de 17-19% e prevalência de amaurose de 20-33%6,7. Felizmente essas taxas não têm passado de 5% nos dias atuais.
O estadiamento e a classificação das complicações orbitárias das rinossinusites são de extrema importância para a eleição de uma correta conduta terapêutica. A análise da terminologia atualmente utilizada para a classificação das infecções orbitárias de origem sinusal é confusa e imprecisa. Se o termo "celulite", empregado de maneira genérica para se nomear qualquer tipo de acometimento infeccioso orbitário é tecnicamente correto, o mesmo não se pode dizer do qualificativo "pré-septal", que, por definição exprime algo que não se passa na órbita. Assim, a expressão "celulite pré-septal", usada por alguns autores5-7, só faz sentido se for usada para designar infecção palpebral e nunca orbitária. Problemas semelhantes existem com as designações "celulite periorbitária" e "retro-orbitárias" de uso corrente na prática clínica para nomear infecções intraorbitárias. De maneira similar, "tromboflebite do seio cavernoso" não pode ser uma categoria de celulite orbitária, pela simples razão que o seio cavernoso é uma estrutura intracraniana e não orbitária.
O objetivo do presente trabalho foi revisar as tomografias computadorizadas de pacientes com rinossinusite aguda complicada por infecção orbitária e, a partir dos achados tomográficos, propor uma classificação mais coerente para as diferentes modalidades de apresentação das celulites orbitárias.
MATERIAL E MÉTODOO presente estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa de acordo com o processo nº 1930/97.
Foram revisadas tomografias computadorizadas (TC) e prontuários de 83 pacientes, com idades variando de 26 dias a 77 anos, atendidos no hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto-USP, entre os anos de 1995 a 2005. Em todas as TC foram realizados cortes coronais e axiais da órbita e seios paranasais, com espessura de 3mm, antes e depois da administração de contraste endovenoso. As grafias de cada caso foram minuciosa e cuidadosamente avaliadas por um oftalmologista, um radiologista e um rinologista, havendo concordância absoluta entre os observadores.
RESULTADOSTrês tipos principais de alterações intra-orbitárias puderam ser detectados em 66 pacientes:
a) infiltração difusa;
b) abscesso subperiosteal;
c) abscesso orbitário. Dezessete casos foram tratados como infecção palpebral.
A infiltração difusa da gordura foi caracterizada por um aumento da densidade da gordura extra ou intraconal. Os limites de transição entre a gordura normal e a gordura com densidade aumentada foram tipicamente graduais e não bem definidos (Figura 1). Essa celulite difusa foi vista como uma característica isolada em 31 pacientes (46,9%), com idades variando de 2 meses a 71 anos, acometendo a órbita direita em quinze casos (48,3%). Nove pacientes não tiveram uma boa evolução em 48 horas com antibiótico endovenoso, sendo realizada drenagem cirúrgica.
Figura 1. Tomografia computadorizada de órbita em corte axial evidenciando celulite orbitária à direita.
Abscesso subperiosteal foi diagnosticado quando a periórbita estava elevada, no mínimo, de uma parede óssea orbitária adjacente ao seio paranasal (vinte e sete casos -40,9%, com idades entre 1 a 77 anos; 48,1% desses na órbita direita) (Figura 2). O periósteo destacado estava bem demarcado, definindo a borda da coleção de fluído. Inicialmente os pacientes foram internados e tratados com antibiótico endovenoso. Foram rigorosamente avaliados pelo oftalmologista em relação aos sinais flogísticos, motilidade ocular, proptose, e principalmente a função visual. Na vigência de deterioração visual ou ausência de melhora do quadro como um todo em 12 a 24 horas, a cirurgia de drenagem do abscesso foi realizada (66,6% dos casos).
Figura 2. Tomografia computadorizada de órbita em corte axial evidenciando abscesso subperiosteal à esquerda.
Abscesso orbitário foi definido sempre que uma densidade heterogênea foi encontrada (com ou seu aspecto de círculo) dentro da gordura orbitária. (Figura 3). Ocorreu em oito casos (12,2%), com idades entre 26 dias a 77 anos, mais freqüente na órbita direita (50%). Todos foram submetidos à drenagem cirúrgica e o abscesso confirmado (Figura 4).
Figura 3. Tomografia computadorizada de órbita em corte axial evidenciando abscesso orbitário à direita.
Figura 4. Freqüência das complicações orbitárias.
Dessa forma, uma nova classificação é proposta de acordo como está na Tabela 1. Dos sessenta e seis casos, quarenta e três (65,1%) eram do sexo masculino. As órbitas direita e esquerda foram igualmente acometidas, sendo dois casos bilaterais.
DISCUSSÃODesde 1937, quando Hubert8 publicou a primeira classificação das complicações das rinossinusites, até 1997, quando Mortimore e Wormald5 propuseram uma nova classificação das celulites orbitárias, uma grande confusão se estabeleceu na nomenclatura das infecções orbitárias, demonstrada pelo fato de que os autores usam os termos pré-septal ou periorbitário, que por definição se referem a patologias extra-orbitárias, para estagiar as infecções intraorbitárias.
Em 1937, Hubert8 publicou uma classificação que incluía doenças palpebral, orbital e intracraniana. Segundo o autor elas poderiam ser estagiadas como:
I- edema inflamatório de pálpebra,
II- abscesso subperiósteo de órbita,
III- celulite orbitária difusa,
IV- abscesso orbitário e
V- tromboflebite do seio cavernoso.
Esta última não é, obviamente, uma forma de celulite orbitária, pois é uma complicação intracraniana de sinusite e não deve ser classificada como um subtipo de celulite orbitária. A descrição de Hubert do grupo I estava confusa, incluindo sinais orbitários e palpebrais na mesma categoria. Textualmente, ele diz: "no primeiro grupo a infecção está confinada ao seio e há somente um edema inflamatório da pálpebra... o edema deve, entretanto, se estender ao tecido orbitário. Quando isso ocorre aparece exoftalmia e limitação do movimento do globo ocular". Em 1948, Smith & Spencer9 mantiveram a mesma imprecisão do grupo I, mas definiram a categoria como edema inflamatório da pálpebra com ou sem edema da órbita. Em 1970, Chandler et al.6 usaram a classificação de Hubert, Smith & Spencer. Deve ser notado que Chandler manteve a definição do grupo I, mas, provavelmente percebendo a inconsistência teórica de rotular como edema palpebral uma categoria que inclui exoftalmia e restrição da motilidade ocular, ele removeu a palavra pálpebra dessa categoria. Chandler também modificou a definição da categoria III. Enquanto para Smith ela era devido à flebite das veias orbitárias, Chandler usou a expressão "celulite difusa" para descrever infiltração da gordura orbitária por células inflamatórias.
A classificação original de Chandler et al.6, publicada em 1970, é a mais aplicada desde então, e divide a celulite orbitária nas seguintes categorias:
1) edema inflamatório,
2) celulite orbitária,
3) abscesso subperiosteal,
4) abscesso da órbita e
5) trombose do seio cavernoso.
O emprego do termo pré-septal para designar a categoria I de Chandler apareceu pela primeira vez na literatura com o trabalho de Moloney et al.10. Essa expressão é utilizada para descrever patologias palpebrais e deve ser abandonada para a descrição das infecções orbitárias. A última categoria de Chandler (trombose do seio cavernoso) também não se refere a nenhuma estrutura orbitária, mas menciona uma das mais temidas complicações intracranianas da celulite, e, portanto não deve ser considerada como um tipo de celulite orbitária.
A denominada classificação de "Groote Schuur Hospital" publicada por Mortimore e Wormald11 aumenta a confusão terminológica existente no estadiamento e classificação das diferentes de formas de celulite orbitária. Os autores reincidem no problema de usar a expressão pré-septal para designar algo que, por definição é retrosseptal. Os autores dividem as genuínas infecções orbitárias (pós-septais) em subperiosteais e intraconais. Essa divisão é irreal. Se a categoria subperiosteal é verdadeira, o mesmo não se pode dizer da utilização do termo intraconal como sinônimo de pós-septal. Tecnicamente, "intraconal" significa dentro do espaço delimitado pelos músculos extra-oculares. Atrás do septo não há somente esse espaço. Há também o espaço extraconal que é definido pelo compartimento existente entre o cone e a periórbita. A classificação ainda incorre em um erro grave ao considerar como intercambiáveis as expressões "celulite pós-septal localizada" e "síndrome do ápice orbitário". O significado dessa última é apenas localizador, ou seja, designa qualquer processo que esteja ocorrendo na fissura orbitária superior e não necessariamente infecção. Ao contrário, as principais etiologias da síndrome do ápice orbitário, são de origem auto-imune, tumoral ou traumática.
As novas modalidades diagnósticas, como a TC, a Ressonância Nuclear Magnética (RNM) e a endoscopia nasal contribuem para o diagnóstico precoce e permitem a identificação do estágio da complicação, tornando possível a instituição de uma terapêutica mais eficaz. Portanto, após uma anamnese detalhada e exame físico, o exame radiológico é fundamental12.
A TC permite uma localização tridimensional do tamanho do abscesso, assim como estabelece uma relação clara com o globo ocular, musculatura extrínseca e o nervo óptico. Nas crianças a distinção entre celulite orbitária e abscesso subperiosteal é crítica. De acordo com Clary et al.13, a correlação entre achados radiológicos e cirúrgicos, embora não seja absoluta, aponta a TC como método diagnóstico indispensável. Nos casos de abscesso subperiosteal, a TC revela um edema da musculatura ocular extrínseca e uma opacificação homogênea entre as paredes orbitárias e a periórbita deslocada, somando-se a isso, o globo ocular é deslocado de uma maneira não-axial. No caso dos abscessos orbitários, a TC revela obliteração da musculatura extrínseca e do nervo óptico, e uma massa homogênea compatível com um abscesso.
CONCLUSÃOA infiltração difusa da gordura periorbitária, o deslocamento da periórbita ou um abscesso orbitário verdadeiro podem ser detectados pela TC em todos os casos. Nós propomos uma nova e simples classificação, baseada em termos mais específicos para ajudar o médico a estabelecer as condutas em cada caso de forma linear. O uso da expressão "pré-septal" para se designar celulites orbitárias é inexato e dever ser abandonado.
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13. Clary RA, Cunningham MJ, Eavey RD. Orbital complications of acute sinusitis: Comparison of computed tomography scan and surgical findings. Ann Otol Rhinol Laryngol 1992;101:598-600.
1 Professor Titular da Disciplina de Oftalmologia do Departamento de Oftalmologia, Otorrinolaringologia e Cirurgia de Cabeça e Pescoço da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo.
2 Mestre, Médico Assistente da Disciplina de Otorrinolaringologia do Departamento de Oftalmologia, Otorrinolaringologia e Cirurgia de Cabeça e Pescoço da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo.
3 Mestre, Médico Assistente da Disciplina de Otorrinolaringologia do Departamento de Oftalmologia, Otorrinolaringologia e Cirurgia de Cabeça e Pescoço da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo.
4 Professor Doutor, Professor Doutor da Disciplina de Radiologia e Ciências das Imagens da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo.
5 Livre Docente, Professora Associada da Disciplina de Otorrinolaringologia do Departamento de Oftalmologia, Otorrinolaringologia e Cirurgia de Cabeça e Pescoço da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo.
6 Médica residente do terceiro ano da Disciplina de Otorrinolaringologia do Departamento de Oftalmologia, Otorrinolaringologia e Cirurgia de Cabeça e Pescoço da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo.
Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo.
Endereço para correspondência: Wilma Terezinha Anselmo-Lima. Departamento de Oftalmologia, Otorrinolaringologia e Cirurgia de Cabeça e Pescoço da FMRP-USP - Avenida Bandeirantes 3900 Ribeirão Preto SP 14049-900.
Tel. (0xx16) 3602-2863 - (0xx16) 3602-2862 - Fax(0xx16)3602-2860.
E-mail: ramancio@fmrp.usp.br
Este artigo foi submetido no SGP (Sistema de Gestão de Publicações) da RBORL em 30 de agosto de 2005. cod. 941.
Artigo aceito em 13 de maio de 2007.