INTRODUÇÃOOtite média crônica pode ser considerada como problema de saúde pública. Estima-se que nos Estados Unidos da América mais de dois bilhões de dólares são gastos anualmente com infecções otológicas agudas e crônicas1. Em países em desenvolvimento, a prevalência de infecções de ouvido médio alcança 72 casos por 1.000 habitantes e otite crônica é a principal causa de perda auditiva na infância2. No Brasil, estudos epidemiológicos demonstraram associação entre otite média crônica e perda auditiva em crianças em idade escolar3.
Em se tratando de otite média crônica supurativa (OMCS), esta pode estar ou não associada à evolução para colesteatoma e a perda auditiva condutiva é a alteração audiológica característica4.
Associação entre otite média crônica e perda auditiva sensório-neural (PASN) tem sido amplamente estudada e permanece como tema controverso. Estudos apresentam freqüência que varia de nenhuma significância clínica5-9 a 10%10. Variação na seleção da amostra justificaria essa diferença. Alguns estudos não distinguem entre OMCS com e sem colesteatoma5,11. Outros avaliaram OMCS sem considerar separadamente a presença ou ausência de colesteatoma6,7,12. Há controvérsias sobre a correlação entre PASN com idade do paciente e tempo de duração da infecção crônica no ouvido médio5-12. O ambiente sócio-econômico poderia também ser um possível fator influenciando a evolução para PASN2,3.
O objetivo do presente estudo foi correlacionar PASN associada a OMCS com presença de colesteatoma, com idade do paciente e com duração da doença.
MÉTODOSO presente estudo foi realizado através da análise de prontuários médicos de pacientes submetidos a cirurgia otológica devido a OMCS com ou sem colesteatoma. Como critério de inclusão considerou-se otorréia crônica unilateral com orelha contralateral normal em pacientes com menos de 60 anos de idade. Como critérios de exclusão consideraram-se história familiar de PASN congênita ou adquirida, história de exposição a ruído, de traumatismo crânio-encefálico, de cirurgia otológica prévia, ou possibilidade de fístula perilinfática. O nível sócio-econômico foi controlado pelos critérios: ter plano de saúde privado e ter sido submetido à cirurgia otológica em hospital não-conveniado com o Sistema Único de Saúde no Brasil.
Todos os pacientes foram avaliados, tratados e acompanhados por um mesmo profissional com vasta experiência profissional em otologia. No mês que antecedeu a cirurgia otológica, os exames de audiometria foram realizados em duplicata por dois profissionais de forma independente e que não sabiam sobre a história clínica do paciente ou sobre a presença ou ausência de colesteatoma. Os exames foram realizados em um mesmo equipamento e em cabina com proteção para som. Na análise da audiometria, a diferença ósseo-aérea considerada foi de 10 dB para a definição de perda auditiva condutiva13. Para definir ocorrência de PASN, considerou-se perda de 30dB ou acima para o limiar de audição por via óssea. Esse ponto de corte foi utilizado para eliminar a inclusão de casos que não representassem dano significativo da orelha interna10. Com o propósito de aumentar a especificidade de análise, avaliou-se a perda na audição por via óssea isolada em 4 KHz e a média das freqüências de 0,5, 1 e 2 KHz10.
Avaliou-se a correlação de PASN com as seguintes variáveis: idade, duração da doença otológica e presença ou ausência de colesteatoma. O critério para definir a presença de colesteatoma foi a descrição anatomopatológica da peça cirúrgica. No caso da doença não-colesteatomatosa, considerou-se o critério de otorréia contínua, resistente ao tratamento com antibióticos, por no mínimo dois meses, associada à perfuração central da membrana timpânica, e com comprovação da ausência de colesteatoma no per-operatório.
O tamanho da amostra calculado foi de no mínimo 95 pacientes, considerando a freqüência de PASN em pacientes com OMCS como sendo de 10%10,14. O controle utilizado foi a orelha contra-lateral (pareado) com otoscopia normal. O nível de significância adotado foi de 5% e o poder de 80%. A hipótese nula formulada foi de que presença ou ausência de colesteatoma em pacientes com OMCS não interfere na evolução para PASN. Essa pesquisa foi classificada como de risco nulo para o pacientes (Cap. II, Art. 13) da Resolução 196, de 10 de outubro de 1996, do Ministério da Saúde, que rege pesquisa clínica em seres humanos no Brasil e aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da instituição, nº de registro ETIC 128/04.
RESULTADOSOs prontuários de 115 pacientes foram avaliados. A idade média foi de 26,3 (DP=15,66), variando de 4 a 59 anos, sendo 58 homens e 57 mulheres.
O limiar médio da audição foi de 40 dB na orelha com OMCS e 22 dB na orelha normal contra-lateral (P=0,002, IC=14,00-28,48).
A duração média da doença otológica foi de 12,4 (DP=10,9), variando de 1 a 42 anos. A Tabela 1 apresenta o modelo de regressão linear para avaliar a correlação de PASN com idade e duração da doença. A correlação com duração não foi observada (P=0,458), mantendo-se a ausência de associação estatística quando a análise foi estratificada para a presença ou ausência de colesteatoma. A correlação com idade ajustada foi observada (P=0,003), de modo que para cada 4 anos de aumento na idade, um decréscimo de 1 dB na condução óssea foi observado, considerando uma dispersão de dados de 7% e controlando-se a variável colesteatoma.
Na orelha com OMCS, observou-se audiometria com via aérea normal em 25 (21,7%) casos, perda leve em 43 (37,4%), moderada em 41 (31,7%) e severa ou profunda em 6 (5,2%) casos. Considerando a via óssea, PASN foi observada em 15 (13%) casos, sendo 8 de perda isolada em 4 KHz e 7 de perda em 0,5, 1, 2, além de 4 KHz.
Na orelha contralateral com otoscopia normal (controle pareado), a via aérea foi normal em 100 (86,9%) casos, perda auditiva leve em 13 (11,3%) e moderada em 2 (1,3%) casos.
Considerando a via óssea, observaram-se 5 (4,3%) casos de PASN leve e isolada em 4 KHz.
Na análise da perda auditiva por via óssea isolada em 4 KHz, não se observou diferença estatisticamente significante entre as orelhas com OMCS e a orelha normal contra-lateral (P=0,19; OR=2,04; IC=0,60-6,75). Quando se comparou a alteração no limiar de audição por via óssea para a média das freqüências de 0,5, 1, 2 KHz nos dois grupos, observou-se que não havia perdas na orelha normal e na orelha com OMCS, PASN moderada foi observada em 1 caso e severa ou profunda em 6 casos.
Em relação à presença de colesteatoma, este foi observado em 37 (32%) e não observado em 78 (68%) casos. Em relação à análise da interferência do colesteatoma na evolução para PASN, a Tabela 2 apresenta os 15 casos observados no grupo com OMCS, podendo ser constatado que colesteatoma associou-se com limiar de audição por via óssea (p=0,01), de modo que PASN foi mais intensa no grupo com OMCS sem colesteatoma.
DISCUSSÃONo presente estudo, a perda auditiva média de 40 Db foi maior do que a observada em outras séries de casos, cuja média variou de 19 a 33 Db nas freqüências da fala6,15. A maior duração da doença otológica (12,4 anos) até a intervenção cirúrgica, com provável maior freqüência de interrupção de cadeia ossicular poderia justificar tal diferença11.
Na orelha com OMCS, a freqüência de PASN foi de 13% (15 casos). Em estudo similar, realizado com pacientes com perfil sócio-econômico semelhante ao selecionado para o presente estudo, PASN foi observada em 10% dos casos revistos12. Possivelmente, a ocorrência de PASN associada a OMCS é maior em populações de pior condição sócio-econômica2. Dificuldade de acesso ao tratamento com antibióticos, seguimento inadequado dos pacientes e piores condições de higiene e educação corroborariam essa hipótese.
A duração da doença não se correlacionou com PASN (Tabela 1). Em estudo com metodologia semelhante ao aqui apresentado, MacAndie & O'Reilly observaram a mesma ausência de correlação, porém não relataram o tempo médio de duração da doença otológica de seus pacientes9. A ausência de correlação observada neste estudo deve ser avaliada com ressalva. O tempo médio de duração da doença foi de 12,4 anos. Logo, predominaram casos de doença otológica de longa duração, de modo que a correlação da evolução da PASN com maior ou menor tempo de duração da doença ficou limitada, visto que eram poucos os casos com menor tempo de doença otológica. A correlação de duração de OMCS e PASN foi previamente demonstrada por vários autores5,11,12. Considerando que todos os estudos avaliados, incluindo o aqui apresentado, são revisões de prontuários médicos, é plausível especular que variação no tempo de duração da doença, condição sócio-econômica e presença de colesteatoma explicariam os diferentes resultados encontrados. A associação observada entre PASN e idade ajustada reforça a idéia de que variáveis relacionadas ao tempo poderiam influenciar a tendência para PASN em pacientes com OMCS.
A ocorrência de PASN foi observada na OMCS com e sem colesteatoma (Tabela 2). Em vários estudos, a ocorrência de PASN associada a OMCS sem colesteatoma foi negada ou pouco considerada5,6,7,9. Importa comentar que nesses estudos foram considerados casos de otite média crônica que tiveram a otorréia interrompida com o tratamento antibiótico. Os casos avaliados no presente estudo incluíram otorréia crônica que não cessou após tratamento antibiótico. A avaliação de PASN em orelhas com infecção crônica com otorréia persistente e não persistente deve ser diferente. Toxinas geradas por bactérias presentes numa secreção purulenta crônica na orelha média causarão maior dano a orelha interna do que quando a otorréia não é persistente e a produção de toxinas não é contínua16,17. Paparella et al. demonstraram, em elegante estudo experimental, associação entre PASN e OMCS18. Enfatizaram as conseqüências deletérias da otorréia crônica para a orelha interna. O dano coclear tem sido atribuído a passagem de toxinas através da janela redonda, causando lesão das células ciliadas, especialmente na base da cóclea16,17. A inflamação persistente, associada a otorréia crônica, aumentaria a permeabilidade da janela redonda às toxinas bacterianas17,18. A ocorrência de PASN na OMCS não-colesteatomatosa deve ser considerada na análise de casos cujo tratamento cirúrgico seja, por qualquer razão, postergado. A explicação para a maior intensidade de PASN nos casos sem colesteatoma observada nesse estudo seria meramente especulativa: a presença do tumor epitelial causaria um espessamento na mucosa da orelha média, dificultando o acesso das bactérias à orelha interna.
CONCLUSÃODe acordo com o presente estudo, a OMCS com ou sem colesteatoma pode evoluir para PASN, que foi observada em 13% dos casos e correlacionou-se com aumento da idade, mas não com a presença de colesteatoma ou com maior duração da doença otológica.
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1 Mestre, Otorrinolaringologista. Preceptor do Serviço de Otorrinolaringologia da Santa Casa de Misericórdia de Belo Horizonte.
2 Otorrinolaringologista, Residente do Serviço de Otorrinolaringologia da Santa Casa de Misericórdia de Belo Horizonte.
3 Mestre, Otorrinolaringologista. Chefe do Serviço de Otorrinolaringologia da Santa Casa de Misericórdia de Belo Horizonte.
4 Doutor. Professor Titular do Departamento de Clínica Médica da Faculdade de Medicina da UFMG, Médico. Orientador pleno do Programa de Pós-Graduação em infectologia e medicina tropical da Faculdade de Medicina da UFMG.
5 Doutora. Professora Adjunta do Departamento de Oftalmologia, Otorrinolaringologia e Fonoaudiologia da Faculdade de Medicina da UFMG. Otorrinolaringologista. Orientadora plena do Programa de Pós-Graduação em infectologia e medicina tropical da Faculdade de Medicina da UFMG.
Faculdade de Medicina da Universidade Federal de minas Gerais. Programa de Pós-Graduação em Ciências da Saúde: infectologia e medicina tropical.
Endereço para correspondência: Denise Utsch Gonçalves Departamento de Oftalmologia, Otorrinolaringologia e Fonoaudiologia da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais - Av. Prof. Alfredo Balena 190 sala 3005 Belo Horizonte MG 30100-130.
Tel./Fax: (0xx31) 3248-9767 - E-mail: deniseg@medicina.ufmg.br
CNPq/Capes/Fapemig.
Este artigo foi submetido no SGP (Sistema de Gestão de Publicações) da RBORL em 31 de julho de 2006. cod. 3308.
Artigo aceito em 5 de fevereiro de 2007.