INTRODUÇÃOPapilomas constituem um grupo de neoplasias benignas, porém localmente invasivas, que normalmente surgem da laringe e trato nasossinusal1. Estas neoplasias são identificadas por características histomorfológicas próprias e possuem uma tendência a recorrer se forem inadequadamente excisadas. De forma incomum, lesões com características histológicas e biológicas semelhantes podem surgir fora do trato nasossinusal, como faringe, saco lacrimal e orelha média2. Postula-se que o envolvimento da orelha média e mastóide seja explicado por dois mecanismos: (1) extensão direta da cavidade nasossinusal via tuba auditiva ou (2) envolvimento primário da orelha média secundário à mudança metaplásica da mucosa de revestimento3.
Devido à raridade destes tumores na orelha média, não existem estimativas de incidência destas lesões nesta localização, havendo relatos na literatura de alguns poucos casos4,5. Nós relatamos aqui um caso de papiloma de orelha média primário, sem nenhuma história de patologia nasal prévia, em que a paciente evoluiu com paralisia facial e, após realização de mastoidectomia radical, vem se mantendo assintomática nos últimos seis meses de seguimento.
RELATO DE CASOA paciente J.P.A., 27 anos, branca, procedente de Salvador, procurou o serviço de Otorrinolaringologia do Hospital Universitário Professor Edgard Santos da Universidade Federal da Bahia com história de otorréia à direita, há cerca de 12 anos, de caráter persistente, associado à hipoacusia e zumbido ipsilaterais. Negou otalgia, otorragia ou vertigem. Evoluiu com paralisia facial completa à direita há cerca de 10 anos que permaneceu inalterada até o momento da cirurgia. Não fez referência a problemas nasais ou orofaríngeos.
Os achados otoscópicos não revelavam nenhuma alteração em orelha esquerda, enquanto na direita observava-se perfuração central ampla de membrana timpânica com presença de bolsa de retração a nível atical e tecido de granulação em mucosa de orelha média. A paciente não apresentava fechamento palpebral à direita, nem desvio de comissura labial ipsilateral. O exame do nariz e orofaringe não apresentava alterações dignas de nota.
Realizou audiometria tonal e vocal em 16/08/2004, que revelou orelha esquerda sem alterações e perda auditiva mista profunda em orelha direita. A tomografia computadorizada de ossos temporais (Figura 1) realizada em 15/06/2004 mostrava opacificação de caixa do tímpano e células mastóideas à direita sem evidência de processo agressivo (destruição óssea).
Figura 1. Papiloma de orelha média direita - Aspecto tomográfico pré-operatório.
Também foi submetida à endoscopia nasal com fibra rígida de 30º que não mostrou nenhuma alteração sugestiva de papiloma nasal ou outras alterações importantes.
Foi então submetida a mastoidectomia radical à direita em 21/08/2004 com remoção de fragmento de tecido friável envolvendo toda mastóide, colocação de fáscia de músculo temporal sobre a cavidade remanescente e meatoplastia ampla.
Estudo anatomopatológico (20/09/2004) revelou que o fragmento obtido era um papiloma com hiperceratose.
Durante os seis meses de acompanhamento pós-operatório, a paciente evoluiu com otorréia intermitente à direita nos dois primeiros meses consecutivos ao procedimento cirúrgico que cessou espontaneamente, não referindo mais episódios de otorréia nos últimos quatro meses. Relatou melhora importante da paralisia facial, sobretudo com relação ao fechamento ocular à direita, porém com pouca alteração do desvio de comissura labial. A otoscopia de orelha direita mostrava meatoplastia ampla com cavidade mastóidea seca, completamente epitelizada, pega satisfatória do enxerto e ausência de crostas.
DISCUSSÃOOs papilomas constituem um conjunto de neoplasias epiteliais benignas do trato nasossinusal que podem ser agrupadas em três categorias principais: (1) invertido (endofítico), (2) cilíndrico e (3) fungiforme (exofítico). São neoplasias que têm o potencial de recorrência se não forem adequadamente excisadas pelo cirurgião e, em raras ocasiões, podem sofrer transformação maligna para carcinomas não-queratinizados. Em vista disso, todos os esforços devem ser feitos no sentido de visualizar toda a extensão do tumor para sua ressecção completa, diminuindo assim sua recorrência.
A patogênese dos papilomas permanece controvertida. Vários autores tentaram correlacionar sua etiologia com fatores neoplásicos, virais, inflamatórios, alérgicos e exposição ambiental. Papiloma vírus humano (HPV) tipos 6 e 11 têm sido identificados em associação com papilomas do trato nasossinusal. Embora nenhuma relação de causa-efeito tenha sido proposta entre a presença de HPV e o desenvolvimento de papiloma, esta possibilidade deve ser fortemente considerada. É mais provável que o desenvolvimento de papiloma não seja resultado de um único fator, como infecção pelo HPV, mas da confluência de vários fatores. Existe a possibilidade de propagação do papiloma do trato nasossinusal para a orelha média através da tuba auditiva. Entretanto, esta é uma possibilidade remota, especialmente na ausência de identificação de papilomas nasofaringeanos colonizando a tuba auditiva. Esta noção é apoiada por Wenig2, Kaddour e Woodhead4 e também por nós que não constatamos nenhum papiloma do trato nasossinusal antecedendo ou coexistindo com o papiloma de orelha média, fato que nos conduz a pensar numa origem primária multicêntrica para esta patologia.
Embora incomuns, papilomas podem ocorrer fora do trato nasossinusal, como nasofaringe, saco lacrimal e orelha média. Até o momento, poucos casos envolvendo a orelha média foram relatados. Wenig2 relatou uma série de cinco pacientes com diagnóstico de papiloma de orelha média. Todos os pacientes eram do sexo feminino, sendo os sintomas relatados, nestes casos, em orelha esquerda. A queixa mais comum foi de diminuição da acuidade auditiva na orelha afetada. Em todos havia uma história antecedente ou concomitante de otite média crônica, em conformidade com o caso que relatamos, embora não houvesse relato de paralisia facial em nenhum destes casos.
O diagnóstico diferencial primário deve ser feito com adenoma de orelha média. Diferentemente dos adenomas, os papilomas não são tumores com padrão glandular, nem demonstram características citomorfológicas vistas nos adenomas. Reatividade imuno-histoquímica com marcadores epiteliais como citoqueratina não diferenciam papilomas de adenomas, pois ambos são citoqueratina-reativos. Outros tumores de orelha média, como paraganglioma jugulotimpânico, neurinoma do acústico e meningioma não apresentam confusão diagnóstica com papiloma em vista de características histomorfológicas próprias destas condições.
O tratamento dos papilomas é eminentemente cirúrgico, sendo a timpanomastoidectomia o procedimento de eleição. Cirurgias mais conservadoras como miringotomia e simples excisão mostraram-se ineficaz no controle da doença, conforme relatado por Wenig2. Como o índice de recidiva para esta patologia pode ser elevado, como mostrado por este mesmo autor, mastoidectomia radical deve ser considerada já como abordagem inicial, conforme realizado no caso que relatamos.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS1. Filippis C, Marioni G, Tregnaghi A, Marino F, Gaio E, Staffieri A. Primary inverted papilloma of the middle ear and mastoid. Otol Neurotol. 2002 Jul;23(4):555-9.
2. Wenig BM. Schneiderian-Type Mucosal Papillomas of the Middle Ear And Mastoid. Ann Otol Rhinol Laryngol 1996 105(3):226-33.
3. Jones ME, Wackym PA, Said-Al-Naief N, Brandwein M, Shaari CM, Som PM, Zhang DY, King WA. Clinical and molecular pathology of aggressive Schneiderian papilloma involving the temporal bone. Head Neck Surg. 1998 Jan;20(1):83-8.
4. Kaddour HS, Woodhead CJ. Transitional papilloma of the middle ear. J Laryngol Otol 1992 Jul;106(7):628-9.
5. Hyams VJ, Batsakis JG, Michaels L. Papilloma of the upper respiratory tract. In: Hyams VJ, Batsakis JG, Michaels L, eds. Tumors of the upper respiratory tract and ear. Fascicle 25, second series. Washington, DC: Armed Forces Institute of Pathology 1988:34-51.
1 Especialista pela SBORL, Professor Substituto da Residência de ORL da UFBA, Preceptor da Residência de ORL da Fac. Med. UFBA.
2 Médico Residente de Otorrinolaringologia do HC-UFBA.
3 Otorrinolaringologista Membro da ABORL-CCF, Professor Associado da Disciplina de Otorrinolaringologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.
4 Otorrinolaringologista Membro da ABORL-CCF, Professor Adjunto da Faculdade de Medicina HC-UFBA, Chefe do Serviço de Otorrinolaringologia do HC-UFBA.
Serviço de Otorrinolaringologia HUPES-HC-UFBA da Faculdade de Medicina da UFBA.
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Este artigo foi submetido no SGP (Sistema de Gestão de Publicações) da RBORL em 16 de junho de 2005. cod.437.
Artigo aceito em 3 de maio de 2006.