INTRODUÇÃOA trombose do seio sigmóide é uma entidade rara e geralmente secundária a trombofilia, trauma craniano, neoplasias, uso de drogas injetáveis e principalmente doenças infecciosas.1,2 Quando de etiologia infecciosa é denominada trombose séptica do seio sigmóide (TSSS) e tem as doenças agudas ou crônicas da orelha média como as causas mais freqüentes. Após a introdução e melhora da eficácia dos antibióticos, não apenas a incidência da TSSS como sua mortalidade reduziram bastante.3
No tratamento da TSSS são utilizados antibióticos de largo espectro por tempo prolongado e que tenham boa penetração no sistema nervoso central. Nos casos secundários à otite média crônica, a abordagem cirúrgica do foco infeccioso é fundamental, geralmente com realização da mastoidectomia. Porém, a abordagem do trombo gera controvérsia na literatura. Há autores que propõe abertura do seio com realização da trombectomia e ligadura da veia jugular1,4,5,6 e outros preconizam apenas a limpeza cirúrgica em torno do seio sigmóide, associada à drenagem cirúrgica do foco infeccioso.7 Ainda mais controverso é sobre o uso dos anticoagulantes como heparina ou anticoagulantes orais, pois esta terapia que para alguns autores tem sido recomendada para prevenir complicações relacionadas à persistência do trombo ou a propagação do mesmo, para outros existem poucos estudos realizados nos casos de trombose otogênica do seio sigmóide confirmando seu benefício.1,5-10 Em relação a possível embolização, infartos venosos e tromboflebite séptica têm se demonstrado um decréscimo tão acentuado na sua incidência apenas com cobertura antibioticoterápica adequada, não justificando os risco da anticoagulação principalmente: sangramentos, interações medicamentosas, trombocitopenia, osteoporose e necrose hemorrágica da pele.11.
Neste trabalho relatamos nossa experiência no diagnóstico, tratamento e evolução dos casos de TSSS ocorridos num período de10 anos em nosso serviço.
MÉTODOSFoi realizada uma análise retrospectiva relatando a experiência no tratamento dos casos de TSSS que ocorreram entre os anos de 1993 a 2003. Todos os pacientes tinham confirmação diagnóstica da TSSS através de angiorressonância ou arteriografia e tiveram um acompanhamento prolongado que variou de seis meses até 6 anos.
RESULTADOSEntre 1993 e 2003, seis casos de TSSS foram diagnosticados e tratados em nossa instituição (Quadros 1 e 2). A maioria dos pacientes era jovem, com idade média de 26 anos e extremos de 10 e 50 anos. O lado esquerdo foi o mais freqüentemente acometido, com cinco pacientes, e o direito com um doente. Houve predomínio de homens, com quatro casos e apenas duas mulheres.
Todos os pacientes tinham doença crônica da orelha média, sendo cinco casos de otite média crônica colesteatomatosa (OMCC) e 1 de otite média crônica supurativa (OMCS). Em todos pacientes havia outras complicações presentes além da própria TSSS. Todos os seis pacientes apresentavam no momento da internação mastoidite aguda, sendo que quatro casos também tinham abscessos intracranianos, três doentes meningite, um paciente tinha paralisia facial periférica e outro, paralisia do nervo abducente. Os pacientes apresentavam sintomas clínicos mais relacionados às outras complicações, principalmente aos abscessos cerebrais e meningite, como cefaléia, rigidez de nuca, febre alta e prostração. Não identificamos sintomas específicos ou que em algum momento sugerissem especificamente o diagnóstico de TSSS.
A cultura da secreção da orelha média foi positiva em 3 casos com crescimento de Enterococcus sp, Pseudomona Aeruginosas e Proteus Mirabilis e negativa nos outros três; acreditamos que este resultado foi devido ao uso de antibióticos previamente. Os pacientes foram tratados com antibióticos de amplo espectro como ceftriaxone associada a clindamicina e todos foram abordados cirurgicamente com mastoidectomia aberta nos casos de OMCC e fechada na OMCS. Na cirurgia também foi realizada a limpeza em torno do seio sigmóide com retirada de tecido de granulação e seqüestro ósseo, porém sem abertura do seio e abordagem direta do trombo. Quando o diagnóstico da TSSS já era conhecido, o mesmo foi confirmado no intra-operatório através de punção com agulha fina do seio sigmóide. Os três primeiros casos foram tratados com heparinização e os últimos três sem heparinização ou anticoagulação oral. Apesar de todos os pacientes terem realizado tomografia computadorizada do crânio e ossos temporais na chegada ao nosso serviço, a suspeita diagnóstica da TSSS só ocorreu no pré-operatório em metade dos doentes e no restante, o diagnóstico ocorreu no intra-operatório ou no pós-operatório. Na confirmação diagnóstica da TSSS foi utilizado angiorressonância em 5 casos (Figura 1) e arteriografia em 1.
Figura 1. Angiorressonância demonstrando dois casos distintos de trombose do seio sigmóide. A figura da esquerda mostra ausência de fluxo no seio sigmóide à direita e a figura da direita demonstra a falta do fluxo no seio à esquerda confirmando o diagnóstico de trombose.
Todos tiveram boa evolução clínica, com melhora do quadro infeccioso e controle cirúrgico da doença otológica, tendo apenas um caso de recidiva da OMCC cerca de quatro anos depois que necessitou de nova abordagem cirúrgica. Em 5 pacientes foram realizados estudos com angiorressonância posteriormente e apenas um paciente havia recanalizado o seio sigmóide. Curiosamente esse paciente não tinha feito tratamento com heparina ou anticoagulantes. Tivemos uma evolução clínica extremamente satisfatória em todos os seis pacientes independentemente da recanalização do seio sigmóide.
DISCUSSÃOA TSSS é uma grave complicação das doenças infecciosas da orelha média. No passado apresentava altos índices de mortalidade que foi inicialmente reduzido com a melhora do tratamento cirúrgico, mas principalmente com advento dos antibióticos.3
Acredita-se que a infecção da orelha média estende-se diretamente ou através da veia emissária da mastóide para o seio sigmóide, resultando inicialmente em microabscessos perivascular e com a persistência do processo infeccioso, os microabscessos acabam envolvendo o sistema venoso, causando um trombo infectado.11
Em nossa casuística, os sintomas clínicos foram mais associados às outras complicações como meningite e abscesso intracraniano ou ao quadro otológico como mastoidite e otorréia. Parece não existir sintomas clínicos específicos da TSSS,1 porém nos quadros mais extensos, geralmente ocorre aumento da pressão intracraniana pela dificuldade de drenagem venosa podendo levar à cefaléia, alteração do nível de consciência e papiloedema. Às vezes, pode progredir anterogradamente para veia jugular interna ou retrogradamente para o seio transverso, petroso superior ou inferior. Quando atinge o seio cavernoso, geralmente através do seio petroso inferior, podemos ter paralisa do nervo abducente.10 Como em nossos casos o diagnóstico de TSSS esteve sempre associado com outras complicações, provavelmente não estamos diagnosticando os casos isolados e de menor extensão.
A tomografia computadorizada sem contraste é o exame de imagem mais largamente utilizado pelos otorrinolaringologistas na avaliação dos pacientes portadores de otite média crônica, pois é um excelente exame para avaliar alterações ósseas, mas infelizmente sua sensibilidade é muito ruim para avaliação dos casos de trombose. Este foi o primeiro exame realizado em nossos doentes, já que todos tinham doença crônica da orelha média e iniciaram o quadro com mastoidite. Ainda assim, em 3 casos a possibilidade de TSSS surgiu a partir desse exame (Figura 2), devido à evidência de extensa destruição óssea na região da dura-máter da fossa posterior atingindo diretamente o seio sigmóide. Nos casos de complicações das otites médias deve-se solicitar a tomografia com contraste (Figura 3), pois o aparecimento da imagem denominada "triângulo vazio" que se localiza no nível do seio sigmóide circundada pelo contraste dural também chamado de "delta sign" é descrito como sinal típico da trombose.5 Entretanto, este sinal nem sempre é detectado e nem todos os casos de trombose são documentados com a tomografia. O exame de ressonância magnética é mais sensível para detectar a trombose com capacidade superior para avaliar o fluxo sanguíneo sendo capaz de demonstrar obstrução do seio, podendo delinear a extensão da lesão e envolvimento das estruturas vizinhas (Figura 4), mas para a confirmação diagnóstica é necessária à realização da angiorressonância ou arteriografia. Classicamente, a arteriografia é considerada o exame com melhor sensibilidade e especificidade no diagnóstico para TSSS, mas apresenta algumas restrições em função de ser invasiva e pelo risco de alergias ao contraste. O exame de angiorressonância é bem mais sensível que a tomografia computadorizada5,6,10 e menos invasivo que a arteriografia no diagnóstico da TSSS, motivos que tornam este exame o de nossa preferência e atualmente é usado rotineiramente em nossa instituição quando temos casos com suspeita de TSSS.
Figura 2. Tomografia Computadorizada de Ossos Temporais sem contraste demonstrando extensa destruição óssea em região do seio sigmóide (dura-máter da fossa posterior).
Figura 3. Tomografia Computadorizada de crânio com contraste demonstrando realce de contraste em torno do seio sigmóide e ausência do realce no seu interior com erosão óssea para a fossa posterior.
Figura 4. Ressonância Magnética de ossos temporais com contraste demonstrando realce do contraste em torno do seio sigmóide e sem realce no seu interior sugerindo presença de trombo.
Todos os nossos pacientes foram tratados com mastoidectomia e quando o diagnóstico de TSSS era suspeitado no pré-operatório, o seio sigmóide era puncionado com agulha fina no intra-operatório para confirmação diagnóstica. Não realizamos abordagem direta do trombo em nenhum paciente. Existem autores que preconizam o tratamento cirúrgico agressivo como abertura, drenagem do seio sigmóide e tamponamento com músculo temporal ou fascia lata.1,4-6 Todavia, outros preconizam uma abordagem mais conservadoras, identificando e realizando a limpeza do tecido de granulação e osteíte da mastóide, sem puncionar com agulha ou abrir o seio sigmóide.7
A abordagem cirúrgica do trombo apresenta riscos próprios como embolia séptica, violação da dura-máter com extensão do processo para o espaço subaracnóideo, além de dificultar a ocorrência da recanalização espontânea que pode ocorrer em alguns casos. Por isso, e devido a maior eficácia dos antibióticos, há uma tendência atual de maior conservadorismo entre ou autores americanos.7
Em relação ao uso de trombolíticos, há grande controvérsia. Alguns autores os preconizam rotineiramente1,6,8,9 e outros não acreditam na eficácia dos mesmos.5,7,10 Mesmo entre os autores que preconizam rotineiramente o uso de trombolíticos, há o reconhecimento de que o nível terapêutico ideal da anticoagulação não é atingido na maioria dos pacientes tratados com heparina.1 Já a recanalização do seio sigmóide pode ocorrer mesmo sem uso de trombolíticos ou anticoagulantes orais.7
Realizamos tratamento trombolítico nos três primeiros casos; porém, havia prolongamento do período de internação e o controle do nível terapêutico da anticoagulação era irregular e como não estava havendo recanalização do seio sigmóide nesses pacientes, deixamos de realizá-lo nos casos mais recentes.
Alguns autores sugerem que apenas em situações de declínio neurológico, incluindo alteração do nível de consciência e que deve ser tentado medidas como tratamento trombolítico ou trombectomia cirúrgica10 e a ligadura da veia jugular interna deve ser reservada apenas aos casos onde há embolismo séptico, a despeito do tratamento com antibióticos.1
CONCLUSÕESEm nossa casuística, o diagnóstico de TSSS tem sido realizado em pacientes com otite média crônica sempre associada com outras complicações, principalmente mastoidite aguda e abscessos intracranianos. Acreditamos que a trombose do seio sigmóide esteja sendo subdiagnosticada. Apesar de ser um quadro grave, o prognóstico clínico tem sido bom com o tratamento clínico e cirúrgico instituídos. Mastoidectomia em associação com a antibioticoterapia de largo espectro tem sido nosso tratamento de escolha. Não observamos nenhum beneficio nos pacientes que receberam anticoagulantes em comparação com os que não receberam apesar de ser um numero restrito de pacientes. A recanalização do seio sigmóide não tem ocorrido na maioria dos casos, mesmo nos pacientes que realizaram tratamento trombolítico.
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1 Doutor em Medicina, Professora afiliada Unifesp-Epm.
2 Mestre em Otorrinolaringologia pela UNIFESP, Doutorando em ciências pela UNIFESP.
3 Otorrinolaringologista, Pós-graduanda nível mestrado. UNIFESP-EPM.
4 Livre-docente, Professor do departamento de Otorrinolaringologia da Universidade Federal de São Paulo - Escola Paulista de Medicina. UNIFESP-EPM.
5 Doutor em medicina, Professor do departamento de Otorrinolaringologia da Universidade Federal de São Paulo - Escola Paulista de Medicina. UNIFESP-EPM.
6 Livre-docente, Professor do departamento de Otorrinolaringologia da Universidade Federal de São Paulo - Escola Paulista de Medicina. UNIFESP-EPM.
Departamento de Otorrinolaringologia e Cirurgia de Cabeça e Pescoço Universidade Federal de São Paulo - Escola Paulista de Medicina.
Endereço para correspondência: Norma de Oliveira Penido - Rua René Zanlutti 160 apt. 131 Chácara Klabin 04116-260 São Paulo SP. E-mail: nopenido @ terra.com.br
Este artigo foi submetido no SGP (Sistema de Gestão de Publicações) da RBORL em 18 de maio de 2006. cod. 1941.
Artigo aceito em 20 de julho de 2006.